“As the firefighter understands fire, the warrior must understand combat.”
Dave Grossman
Existe um enorme vácuo entre as expectativas e a realidade do serviço policial, ainda mais sobre uso da força e confrontos armados. Isso atinge, de forma quase inescapável, o público leigo e os próprios profissionais de segurança pública ao longo de suas carreiras. Como policial militar no Distrito Federal, eu mesmo amarguei conflito semelhante – e não canso de me surpreender com experiências próprias ou vividas por colegas ao longo deste tempo. Para alguns, há um choque de realidade a partir do momento em que se conclui o curso de formação e se começa o serviço “de rua”. Para outros, experiências mais intensas dão conta de apresentar esta perspectiva. E este foi meu caso.
A expectativa
Como a quase totalidade das pessoas, minha visão e expectativas a respeito do serviço policial foram moldadas a partir de leituras, filmes, séries de televisão, entrevistas e conversas com alguns profissionais que já conhecia antes de ingressar na área. Ocorre que relatos desta natureza dificilmente são feitos de forma aprofundada ou expõem medos, erros, angústias. O herói de um filme, na hora do confronto, sempre age com frieza e de forma impecável. O policial entrevistado raramente relatará seus erros procedimentais e os pontos que poderiam ter sido melhor executados durante determinada ação. Os conhecidos da área dificilmente falarão de seus medos, sentimentos e sensações durante uma ocorrência de alto estresse. É natural que o foco recaia sobre a glória, sobre o heroísmo das ações, sobre o sucesso.
E, assim, criei uma imagem pessoal de que, com as ferramentas que adquiri durante meu curso de formação e com aquelas que já trazia de minha vida, conseguiria resolver qualquer situação e ocorrência. Afinal, possuía uma bagagem educacional de excelência, meu curso de formação foi bem estruturado, apresentei bons resultados no tiro, li e reli os materiais sobre abordagem policial, treinei com meus pares os procedimentos com dedicação. Uma postura autoconfiante e, até mesmo, prepotente. Muito cedo, perceberia que, durante o confronto, nada é tão claro, preto no branco, simples de solucionar, especialmente para um policial tão inexperiente como era. E foi em janeiro de 2015 que a ficha caiu.
A realidade
Após o término do curso de formação de praças, fui lotado em uma área de periferia, com índices de criminalidade elevados, para a realidade local. A fase inicial de policiamento seguiu, acredito, os mesmos padrões experimentados por todo “novinho”. Muito aprendizado e vibração. Foram, aproximadamente, 4 meses de patrulhamento ostensivo a pé, atividade que surpreendeu a todos pela produtividade.
Após esse período, gradativamente, fomos sendo escalados para o serviço em viaturas. E foi, justamente, no meu primeiro serviço nesta modalidade de policiamento, que tive uma daquelas experiências que faz o profissional atento e responsável refletir sobre perspectivas, expectativas e rumos.
Era um sábado e eu pilotava a viatura acompanhado de outro policial formado no mesmo curso que eu. Ainda sob a luz do dia, um cidadão nos fez parar e informou que, dobrando a esquina, havia “4 caras encapuzados roubando uma casa e fazendo reféns. Todos armados. Já tinham tentado ontem, mas não conseguiram”. Em um primeiro momento, duvidamos daquela narrativa. Por mais inexperientes que fôssemos, sabíamos que o cidadão, muitas vezes, narra histórias de forma passional e aumentada, quando faz contato com a polícia.
Dobramos a esquina. A rua estava calma. Visualizamos um carro vermelho parado de ré na entrada da garagem de uma casa. Havia um homem na frente do carro, com as mãos nos bolsos, sem capuz. Fora esta situação, nada chamava atenção. Parei a viatura, no momento em que o homem olhou para nós e demonstrou aquele nervosismo típico. Íamos pedir apoio pelo rádio, mas a comunicação apresentava algumas falhas na região… E nem deu tempo. Desembarcamos e verbalizamos para que ele colocasse as mãos na cabeça. Ele correu para dentro da casa. Fomos atrás. Ao chegar na entrada da garagem, disparos em nossa direção. Vi a silhueta do criminoso atrás do carro e uma senhora atrás dele.
Não conseguia acreditar que ele havia disparado contra nós, um pensamento que dominou minha mente até o final do confronto, com palavras pouco polidas.
Revidei, mas não como eu gostaria. Atirei no carro. Não tinha ângulo para atirar contra ele, fiquei extremamente nervoso e, como o cidadão relatara, havia mesmo mais gente na casa. Meu parceiro, no ímpeto de se proteger, caiu no chão e, por um breve instante, tive a certeza de que ele havia sido alvejado. Ele se levantou. Estávamos em posição totalmente vulnerável, absolutamente expostos no meio daquela rua estreita. A vantagem tática estava com quem quer que estivesse dentro daquela casa. Tentamos nos abrigar em uma chapa de metal que estava na frente da casa ao lado. Era uma chapa de zinco. Não seguraria nada. Vimos uma casa com o portão aberto do outro lado da rua. Corremos para lá e nos abrigamos. Eu continuava disparando contra o carro, enquanto meu parceiro, cujo rádio havia ficado no meio da rua, tentava um pedido de apoio pelo celular. Foi um pedido confuso. Nossa capacidade de verbalização se reduziu de forma inexplicável. No calor do momento, não soubemos informar nossa localização com precisão. Perdemos referencial.
Se os 4 criminosos relatados resolvessem entrar com tudo no confronto em uma tentativa de fugirem do local, estaríamos em um cenário ruim. Era melhor desencorajá-los, mantendo uma cadência de disparos. Foi tudo muito rápido, mas, contraditoriamente, durou uma eternidade.
Após algum tempo, que não sei precisar se segundos ou minutos, desacelerei os disparos contra o carro. Eu só enxergava o carro, como se, após aquele contato inicial, ele tivesse se tornado uma ameaça real, por representar, naturalmente, o instrumento de fuga que faria com que os criminosos saíssem de seu abrigo.
Verbalizamos pouco, eu e meu parceiro, naquela situação. Faltavam palavras. Estávamos incrédulos com a intensidade de tudo o que ocorria em nosso primeiro dia de patrulhamento em viatura. Foi então que duas mãos apareceram levantadas no canto da garagem da casa onde os criminosos estavam e quebraram este ciclo. “Eles estão se rendendo”, pensei. Saíram dois homens, um idoso e um adolescente. Mandamos que deitassem. Saiu uma senhora. Não consegui raciocinar com clareza, pois tudo parecia uma ameaça e mandei que ela deitasse também, mas ela estava nervosa demais para me obedecer. O apoio chegou, guiado pelo som dos disparos. Saímos da casa em que estávamos. Confirmamos que aqueles que saíram eram as vítimas.
Iniciou-se um cerco na casa. Mais viaturas chegaram. Entramos. Um buraco imenso no forro do telhado, telhas retiradas. Eles haviam fugido. Iniciou-se uma busca nas redondezas, com todos os policiais disponíveis na área, que resultou em 3 criminosos presos e 2 armas de fogo apreendidas. O carro nem ligava.
Um policial que chegou em apoio, o primeiro, disse que só conseguiu nos localizar pelo som dos disparos. Naquele momento, me questionei quantos havia efetuado. Não fazia a menor ideia.
Meu parceiro se aproximou de mim, após a situação acalmar, e me questionou sobre os disparos efetuados pelo criminoso que se encontrava na entrada da casa. Ele não os ouviu. Como pode? Estávamos tensos.
Em relação às reações de meu corpo, eu apresentava uma fotossensibilidade incomum, sentia minhas mãos geladas. Após a situação estar totalmente controlada, um cansaço inexplicável.
Descobrimos que a casa era um depósito de mídias piratas (havia milhares) e que os criminosos estavam lá para roubarem os lucros da atividade. Uma ocorrência intensa e que chamou a atenção por suas características.
O choque e suas lições
Aquele foi um dia que mudou minha trajetória e modulou muitos de meus passos na profissão, especialmente no que diz respeito a capacitações, treinamentos e estudos. Sobrevivemos – e inocentes também – a uma experiência que me abriu os olhos para o seguinte fato:
O confronto armado é totalmente diferente daquilo que fantasiamos e construímos em nossas imaginações alimentadas por representações irreais. É intenso, cheio de variáveis; como regra, impreciso e confuso.
Esta conclusão permitiu que buscasse conhecimento para compreender melhor sua natureza, tendo contato com trabalhos de Alexis Artwohl, Dave Grossman, David Kirkham, David Klinger e Loren Christensen, que possibilitaram contato com noções relacionadas ao universo das reações psicofisiológicas em situações de alto estresse, como visão de túnel, distorções na percepção do tempo, alterações auditivas temporárias, redução da capacidade de verbalização, pensamentos intrusivos e segue relação.
Poderia ter sido diferente?
Sim. A tomada de consciência poderia ter ocorrido antes do confronto, de forma que estivéssemos mais preparados para lidar com ele e dominar melhor corpo e mente no sentido de uma performance mais adequada. No entanto, à época, discussões e conhecimentos aprofundados sobre o tema ainda não eram tão comuns, especialmente no âmbito dos cursos de formação policiais. Mas isto está mudando e é bem provável – e necessário – que os próximos policiais a serem colocados nas ruas tenham consciência do que realmente os espera. Trabalhemos para isso!