Beabadotiro por Luciano Lara
Tenho falado constantemente sobre a legítima defesa e confesso tenho evitado enfrentar esse assunto por preocupação com más interpretações.
Temos um problema muito grande na nossa área: poucas são as pessoas que lêem sobre o assunto, ao que se adiciona pouca doutrina específica existente.
Registro, e não me canso de saudar o Infoarmas, pela disposição de ser uma plataforma em que o interessado encontra disponível, com vários autores, uma enormidade de assuntos desde opinião até treinamento de alta especificidade para situações extremas.
E exatamente porque estamos tendo uma excelente aceitação e médias expressivas de acessos em nossos artigos mensais é que me vejo com liberdade de tratar desse assunto nesse momento.
Já fiz lives de 4 horas tratando sobre legítima defesa em que não consegui aprofundar o suficiente o conceito de uso moderado dos meios para alcançar a legítima defesa da propriedade e, sempre que o faço, apelo para o exemplo absurdo para dizer que não se caracterizaria a legítima defesa no caso de o cidadão ver alguém furtando-lhe a bicicleta e contra esse efetuar 10 disparos pelas costas.
Ainda que alerte da posição de tribunais superiores por exemplo ao emprego de força em caso de esbulho possessório, nunca avancei a explanação e por isso me penitencio com o presente artigo, também o fazendo por ter sido provocado muito efetivamente por inscrito do canal que me disse: estamos sendo dominados pelos desarmamentistas na legítima defesa?
E não podemos estar sob pena de descaracterização do instituto e esvaziamento da previsão de enfrentamento do crime por desforço próprio pela vítima.
Sem mais delongas já pontuo: a legislação ao estabelecer o direito de defesa legítima no artigo 25 não faz qualquer distinção sobre qual direito se protege, e, se o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo.
Quero com isso dizer que o legislador não limitou a legítima defesa à proteção da vida e integridade física apenas, ainda que quanto a esses dois direitos fundamentais não se questione o emprego de arma para sua efetivação.
Com isso conclui-se que sim pode haver legítima defesa da propriedade e sendo a arma de fogo o instrumento equiparador de forças por excelência e sendo esse instrumento o meio garantidor e necessário a repulsa da injusta agressão, a verdade é que pode sim haver legítima defesa da propriedade com o emprego da arma de fogo.
Destacamos um capítulo específico do livro LDA, Legítima Defesa Armada, a ser lançado na Shot Fair em Joinville no mês de agosto de 2022 para trabalhar o instituto mas adianto ao leitor aqui que a garantia da legítima defesa autoriza o cidadão a não tolerar ser vítima de seus bens mais caros, aí incluídos a vida, a segurança e a propriedade.
Dispõe o artigo 5º da Constituição Federal:
TÍTULO II
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Fundamento sempre o direito a legítima defesa e ao porte de arma, garantidor do meio necessário a efetivação dessa defesa legítima, nesse artigo 5º, caput, da CF, e com base nisso é que temos que fazer a leitura do disposto no Código Penal quando define o que é e quais os requisitos da legítima defesa.
Os artigos 23 e 25 do Código Penal assim estabelecem:
Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato: (…)
II – em legítima defesa;
Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Destacamos em negrito e sublinhado o final da previsão do artigo 25, do Código Penal, eis que não há qualquer diferenciação quanto a quais direitos podem ser protegidos em legítima defesa.
Basta que o cidadão esteja sofrente injusta agressão atual ou iminente a qualquer direito seu.
Quando avaliamos a reação armada, invariavelmente vem a mente a defesa da vida e da integridade física do cidadão e de sua família. 100% correto e indiscutível.
Quando avaliamos o emprego do meio necessário e cotejamos o emprego de disparos de arma de fogo quanto a atentado a sua pessoa, agressão ou grave ameaça (de morte com emprego de arma qualquer p. ex.) não sobra muita margem para apreciação dessa necessidade – matei para não morrer, atirei para não apanhar, disparei para não ser violentado.
Ocorre que quando se trata de emprego da arma de fogo para defender um bem, uma defesa patrimonial, também sem dificuldade encontraremos quem de plano já diga – aí não cabe, desnecessário atirar para proteger uma subtração de um carro, de uma moto, de um celular.
Aqui que mora o perigo. Aí é que se confunde a necessidade do meio com a proporção entre os bens comparados – vida ou integridade do agressor e propriedade do cidadão atacado.
E é exatamente para não deixar margem para essa avaliação que em Lives e conversas sobre o tema preferi até o momento não enfrentar a obrigação dessa análise mais apropriada do fato, e legítima defesa é essencialmente análise do fato.
De imediato necessário destacar que não se trata de cotejar o valor do bem protegido e a utilização da arma de fogo nesse contexto: não é isso apenas que caracterizará ou não a defesa legitimamente desempenhada.
Ocorre que muitos procuram analisar proporcionalidade na comparação entre o bem protegido e o resultado da reação defensiva mesmo cientes que não há na legislação nem no instituto legítima defesa existe essa previsão.
É que o cidadão não tem obrigação de aceitar que um seu direito seja lesado, um seu bem levado, podendo agir por esforço pessoal se houver necessidade dessa reação para evitar a inversão da posse do objeto, por exemplo.
Se o assaltante me rende sob mira de uma arma de fogo, me tira de meu veículo, nele adentra e começa a sair com arma em punho eu, cidadão de bem, não preciso deixar que ele leve meu veículo se, estando armado e não tendo tempo de ligar para 190 e comunicar a ocorrência deixando o bandido me privar de minha propriedade, saco minha arma e efetuo disparo contra o meliante: estarei agindo em legítima defesa da minha propriedade, ainda que nesse caso eu estaja agindo também em defesa de minha vida já que o roubador pode ainda disparar na maldade quando saindo com o carro.
Já vimos várias vezes um roubo evoluir para latrocínio com o bandido disparando contra a vítima após a subtração do bem para garantir a execução do delito em curso.
Impedir a consumação do delito de que estou sendo vítima é meu direito de defesa, e eu não sou obrigado a aceitar mansamente que o meliante termine de praticar o crime.
O que não se justifica é, por exemplo, o caso clássico de crianças que pulam o muro da casa para consumir frutas no pé da propriedade e o morador, buscando “defender suas frutas” efetuar disparos contra essas. Evidente que não há necessidade alguma do emprego da arma de fogo num caso desses.
Outra situação injustificada por falta de moderação dos meios é o caso de eu flagar furtador tentando entrar em meu veículo estacionado em frente a minha residência, sacar minha arma e efetuar 10 disparos pelas costas desse furtador.
Não é moderado o uso do meio que seria sim necessário para render esse furtador e evitar a subtração do bem.
Tem-se sempre que lembrar que o cidadão de bem pode inclusive (é faculdade) prender quem flagrar na prática de delito, nos termos do Código de Processo Penal:
Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.
Não caro leitor, nem de longe estou a sugerir que você saia prendendo pessoas em flagrante seja pela sua falta de treinamento, seja porque você sozinho terá pouca condição de render esse preso ou de efetivar a ordem de prisão de cidadão, seja porque você estará se colocando em risco desnecessário para uma faculdade da lei.
O que quero dizer é que se até prender o bandido em flagrante o cidadão pode que se o diga impedir se auto defendendo da prática desse delito.
E a jurisprudência é vasta nesse sentido, com negritos nossos:
APELAÇÃO CRIMINAL – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – CONDENAÇÃO PELO DELITO DE DISPARO DE ARMA DE FOGO – LEGÍTIMA DEFESA DE PATRIMÔNIO – EXCLUDENTE DE ILICITUDE CONFIGURADA. 1. Para o reconhecimento da excludente da legítima defesa, é necessária a existência de prova induvidosa de que o agente usando, moderadamente, dos meios necessários, repeliu injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (art. 25 do CP). 2. Qualquer bem jurídico pode ser protegido através da ofensa legítima, não se fazendo distinção entre bens pessoais e impessoais (vida, incolumidade pessoal, honra, pudor, liberdade, tranquilidade doméstica, patrimônio, pátrio poder, etc.). (TJ-MG – APR: 10521110023889001 MG, Relator: Eduardo Machado, Data de Julgamento: 10/06/2014, Câmaras Criminais / 5ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 16/06/2014)
PENAL – PROCESSUAL PENAL – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – HOMICÍDIO SIMPLES – LEGÍTIMA DEFESA DO PATRIMÔNIO – ANCIÃO COM MAIS DE OITENTA E CINCO ANOS DE IDADE QUE, POR DIVERSAS VEZES, TEM SUA PROPRIEDADE INVADIDA NA CALADA DA NOITE POR MARGINAIS – LOCAL TIDO COMO INSEGURO – DEFESA DE BEM PATRIMONIAL DESTINADO A SUA SOBREVIVÊNCIA – CRIME DE BAGATELA – INOCORRÊNCIA – LEGÍTIMA DEFESA DO PATRIMÔNIO E DA RESIDÊNCIA CARACTERIZADA – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – POSSIBILIDADE – PROVIMENTO DO RECURSO.
Age em absoluta legítima defesa, quem, a altas horas da madrugada, percebendo rumores em sua casa, arma-se de revólver para constatar os fatos e surpreende o assaltante nos limites de sua residência (na espécie no chiqueiro do porco), depois de haver tentado retirar o animal e, logo em seguida, começa abater o referido animal a pauladas e, sendo alvejado pela vítima, esta se posta no exercício do mais natural instinto de defesa. Para consignar como bagatela o crime perpetrado, impõe que se analisem as nuances do princípio da insignificância, onde o desvalor do evento deve ser considerado de acordo com a importância dos vários bens jurídicos protegidos penalmente e da intensidade da ofensa ocorrida. É necessário analisar a estrutura legal do respectivo tipo penal. Se este é constituído sobre a mera causação do evento, deve-se valorar o grau da lesão verificada. (RSE 16023/2006, DES. DIOCLES DE FIGUEIREDO, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Julgado em 31/07/2006, Publicado no DJE 04/09/2006) RECURSO OBRIGATÓRIO – HOMICÍDIO – LEGÍTIMA DEFESA PRÓPRIA E DO PATRIMÔNIO ALHEIO – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA DE UM ACUSADO E IMPRONÚNCIA DO OUTRO – SENTENÇA CONFIRMADA.
(TJ-MS – Reexame de Sentenca: 5571 MS 2001.005571-9, Relator: Des. Gilberto da Silva Castro, Data de Julgamento: 18/09/2001, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: 05/10/2001)
PENAL – PROCESSUAL PENAL – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – HOMICÍDIO SIMPLES – LEGÍTIMA DEFESA DO PATRIMÔNIO – ANCIÃO COM MAIS DE OITENTA E CINCO ANOS DE IDADE QUE, POR DIVERSAS VEZES, TEM SUA PROPRIEDADE INVADIDA NA CALADA DA NOITE POR MARGINAIS – LOCAL TIDO COMO INSEGURO – DEFESA DE BEM PATRIMONIAL DESTINADO A SUA SOBREVIVÊNCIA – CRIME DE BAGATELA – INOCORRÊNCIA – LEGÍTIMA DEFESA DO PATRIMÔNIO E DA RESIDÊNCIA CARACTERIZADA – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – POSSIBILIDADE – PROVIMENTO DO RECURSO. Age em absoluta legítima defesa, quem, a altas horas da madrugada, percebendo rumores em sua casa, arma-se de revólver para constatar os fatos e surpreende o assaltante nos limites de sua residência (na espécie no chiqueiro do porco), depois de haver tentado retirar o animal e, logo em seguida, começa abater o referido animal a pauladas e, sendo alvejado pela vítima, esta se posta no exercício do mais natural instinto de defesa. Para consignar como bagatela o crime perpetrado, impõe que se analisem as nuances do princípio da insignificância, onde o desvalor do evento deve ser considerado de acordo com a importância dos vários bens jurídicos protegidos penalmente e da intensidade da ofensa ocorrida. É necessário analisar a estrutura legal do respectivo tipo penal. Se este é constituído sobre a mera causação do evento, deve-se valorar o grau da lesão verificada. (RSE 16023/2006, DES. DIOCLES DE FIGUEIREDO, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Julgado em 31/07/2006, Publicado no DJE 04/09/2006) (TJ-MT – RSE: 00160233420068110000 16023/2006, Relator: DES. DIOCLES DE FIGUEIREDO, Data de Julgamento: 31/07/2006, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 04/09/2006)
APELAÇÃO CRIME. DISPARO DE ARMA DE FOGO (ART. 15 DA LEI Nº 10.826/03). PLEITO DE LEGÍTIMA DEFESA. DISPARO EXECUTADO COM O INTENTO DE OPERAR LEGÍTIMA DEFESA DE PATRIMÔNIO PRÓPRIO. DISPARO EM LOCAL NÃO HABITADO. TESE SUBSISTENTE. PRESENÇA DOS REQUISITOS INSERTOS DO ART. 25 DO CP. DISPARO QUE NÃO AFETOU A INCOLUMIDADE PÚBLICA, POR SER AFASTADO DA COLETIVIDADE. ZONA RURAL. REGIÃO CONSIDERADA ISOLADA. DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS QUE CORROBORAM A DECLARAÇÃO DO APELANTE. POSSIBILIDADE DE ABSOLVIÇÃO PELA Apelação Crime n. º 0001591-17.2012.8.16.0111 CARACTERIZAÇÃO DA EXCLUDENTE DE ANTIJURIDICIDADE DA LEGITIMA DEFESA. CABIMENTO. RECURSO PROVIDO. 1. Salienta-se que a causa de exclusão de antijuricidade da legítima defesa, embora dispõe da presença de materialidade e autoria, o próprio texto legal disciplina hipóteses em que o delito é classificado como tipo permissivo, considerando-o atípico. 2. Verifica-se que o disparo de arma de fogo não foi realizado em local habitado, sendo que a região é considerada isolada e as únicas casas próximas do local estão em um raio de 500 (quinhentos) metros. I. (TJPR – 2ª C.Criminal – 0001591-17.2012.8.16.0111 – Manoel Ribas – Rel.: Desembargador José Maurício Pinto de Almeida – J. 30.08.2018) (TJ-PR – APL: 00015911720128160111 PR 0001591-17.2012.8.16.0111 (Acórdão), Relator: Desembargador José Maurício Pinto de Almeida, Data de Julgamento: 30/08/2018, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 03/09/2018)
Em duas das jurisprudências trazidas tratou-se de defesa de porco sendo subtraído e carneado em propriedade da vítima que defendendo-se com emprego de arma de fogo teve sua absolvição alcançada pela legítima defesa.
Não é a desproporção entre a vida e o bem subtraído que caracterizará excesso na legítima defesa, mas é claro que qualquer que seja o direito, em especial vida, segurança e propriedade estes estão claramente tutelados pela lei.
Só não dá para dizer que não existe legítima defesa do patrimônio porque assim haveria negação ao direito posto, e também é necessária a verificação, caso a caso, da situação apresentada para avaliação da moderação do uso dos meios necessários, uma vez que por si só, buscar-se impedir defesa da vítima porque na comparação um celular vale menos que uma vida é querer deturpar a previsão legal e garantia que eu não tenha que suportar uma lesão a meu direito.
Treinem, sempre e muito, e estudem bastante e não se deixem enganar ante a propaganda pró-bandido, dispara o like e até a próxima.