Autor: Diogo Machado, Advogado Especialista em Legislação de Recarga de Munições e Regulamentações Associadas
No universo do tiro desportivo, recarregar munições é uma prática comum e bastante importante. Essa atividade permite aos atletas ajustar suas munições de acordo com as necessidades específicas das diversas modalidades do esporte, além de ser uma forma eficiente de reduzir os custos com treinamento. Por causa de sua relevância no contexto esportivo, a promulgação do novo Decreto 11.615/2023 causou uma série de debates. Esse decreto, com suas possíveis implicações para a prática de recarga de munições no tiro desportivo, levantou questionamentos e até dúvidas se atiradores desportivos ainda teriam ou não permissão para realizar essa recarga.
Origem da dúvida
A origem dessa discussão está na suspensão, em 1º de janeiro, da venda de insumos para recarga a pessoas físicas. Essa situação perdurou até 21 de julho de 2023, com a publicação do novo decreto, que revogou a suspensão anterior, restabelecendo a possibilidade de compra desses insumos. Isso, contudo, provocou incertezas entre os atiradores desportivos sobre a continuidade de suas atividades de recarga.
As incertezas emergem principalmente da interpretação do Artigo 34, parágrafo 5º, do presente decreto, que declara:
Inicialmente, a suposta “omissão” dos atiradores desportivos neste trecho do texto, levou as pessoas a questionarem se esses atletas estariam ou não autorizados a realizar a recarga de munições.
Com um exame mais cuidadoso, pode-se perceber que a preocupação inicial de alguns talvez se deva a um erro de interpretação. O propósito central deste artigo é esclarecer que tanto os órgãos de segurança pública quanto às entidades de tiro desportivo têm permissão para realizar a recarga de munições. Tal permissão se dá em função do regulamento atual, que relaciona a aquisição de insumos à quantidade permitida por nível. Como os clubes de tiro não se enquadram nessa questão de níveis, poderiam surgir dúvidas a respeito de sua autorização para recarregar munições. O decreto surge, então, para dissipar tais incertezas.
Vale ressaltar que o propósito do Artigo 34, parágrafo 5º, não é estabelecer uma lista definitiva ou exemplificativa de quem tem permissão para recarregar munições. Não existe indicação alguma de que o objetivo seja criar restrições que extrapolem o que é expressamente apresentado neste artigo. Em vez disso, ele introduz duas categorias de entidades – órgãos de segurança pública e entidades de tiro desportivo – que serão o ponto de partida para a análise das autorizações de atividades ligadas à recarga de munições destas duas categorias, apenas. No entanto, este não é o único artigo que aborda a questão. Para uma compreensão completa, é fundamental explorar outros artigos do mesmo decreto, assunto que abordaremos a seguir.
Analisando o Decreto 11.615/2023
Ainda no Decreto 11.615/2023, particularmente no artigo 2º que delimita as definições dos termos usados, observamos uma explicitação clara da concepção dos “insumos”. É aqui que se esclarece que insumos são todos os componentes pertinentes ao processo de recarga de munições:
A permissão do legislador para que os atiradores desportivos recarreguem munições é claramente estabelecida no artigo 37, como segue:
Esta cláusula legislativa assegura de forma inequívoca o direito dos atiradores desportivos de adquirir seus insumos e, por dedução lógica e irrefutável, de realizar a recarga de suas munições. Esta determinação legal é de extrema importância, pois ratifica e esclarece que a prática de recarga de munições pelos atiradores desportivos não somente é permitida, como também é explicitamente reconhecida e normatizada pela legislação atual. Com essa análise, alcançamos um entendimento mais sólido de como a legislação vigente regula e define as atividades inerentes ao tiro desportivo. É importante ressaltar, entretanto, que o Decreto 11.615/2023 não é a única legislação pertinente – existem outras normativas, ainda em plena vigência, que complementam e robustecem o arcabouço legal em questão.
Quem de fato pode recarregar?
A delimitação precisa de quem tem autorização para recarregar munições não é claramente definida pela legislação. Essa lacuna se deve ao fato de que a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) possui a atribuição de analisar cada caso individualmente, seja pessoa física ou jurídica, para determinar se a recarga de munições é permitida. Este processo de avaliação é baseado em critérios objetivos estabelecidos pela lei e normativas complementares, bem como em critérios subjetivos derivados da interpretação da atividade.
Existem vários exemplos que ilustram essa flexibilidade interpretativa, como as escolas de formação de vigilantes, que precisam recarregar munições em grande escala; fabricantes de armas de fogo, que necessitam de uma vasta quantidade de munições para testar seus produtos; entidades de certificação e validação de normas técnicas; laboratórios que realizam testes industriais; e outras entidades civis que necessitam de munições para seus respectivos propósitos.
A base legal para essa flexibilidade interpretativa encontra-se no Decreto 10.030/2019, a normativa principal que regula o ambiente bélico no país e que ainda permanece em plena vigência. Esse decreto provê diretrizes adicionais acerca da autorização para o acesso aos componentes necessários para a recarga de munições. O texto do decreto é expresso ao afirmar:
Como resultado, a interpretação dos dispositivos mais recentes deve ser feita considerando o panorama completo do sistema normativo existente, que engloba leis, decretos e portarias, a fim de prevenir ambiguidades ou conflitos interpretativos. Este raciocínio alinha-se de maneira impecável com o Decreto 11.615/2023, que delineia as quantidades de insumos autorizadas em conformidade com o nível do atirador desportivo. Assim, constata-se uma consistência e um diálogo complementar entre as normas, que reiteram inequivocamente o direito dos atiradores desportivos de recarregar suas próprias munições.
Entendimento da DFPC sobre a Recarga para os Atiradores Desportivos
A permissão para atiradores desportivos recarregarem suas próprias munições, historicamente, tem encontrado pouca resistência. Este entendimento foi solidificado com a implementação da Portaria COLOG 56 de 2017. Esta portaria simplificou o processo ao eliminar a necessidade de apostilar separadamente a “atividade de recarga de munições” no Certificado de Registro – CR. Ao invés disso, ela incorporou esta atividade sob a rubrica de “tiro desportivo”. Esse marco simplificou a formalização das práticas, reafirmando o direito dos atiradores desportivos de recarregar suas próprias munições, enquanto evitava trâmites burocráticos desnecessários. Esse movimento regulatório significou um avanço substancial na evolução do esporte.
A Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados – DFPC respaldou esta decisão, baseando-se na premissa de que a recarga de munições é uma atividade inerente ao tiro desportivo e, portanto, seria redundante exigir um registro específico para tal. Desde então, o foco do debate mudou, concentrando-se na quantidade de munições que os atiradores desportivos podem possuir, englobando tanto os cartuchos prontos quanto os insumos necessários para a produção de suas próprias munições.
Conclusão
Como resultado, a interpretação dos dispositivos mais recentes deve ser feita considerando o panorama completo do sistema normativo existente, que engloba leis, decretos e portarias, a fim de prevenir ambiguidades ou conflitos interpretativos. Este raciocínio alinha-se de maneira impecável com o Decreto 11.615/2023, que delineia as quantidades de insumos autorizadas em conformidade com o nível do atirador desportivo. Assim, constata-se uma consistência e um diálogo complementar entre as normas, que reiteram inequivocamente o direito dos atiradores desportivos de recarregar suas próprias munições.
Para concluir, é indiscutível que, mesmo com a promulgação do Decreto 11.615/2023, a autorização para os atiradores esportivos realizarem a recarga de munições permanece inalterada. Este direito, firmemente estabelecido tanto no decreto mencionado quanto nas normativas legais anteriores que seguem em vigor e nas regulamentações precedentes do Comando do Exército, se mantém incólume.
No entanto, quanto à questão específica da aquisição de equipamentos para recarga ou de insumos, trata-se de um tópico que requer um espaço próprio, assim, este ponto será abordado de maneira dedicada e abrangente em um futuro artigo.
Autor: Diogo Machado, Advogado Especialista em Legislação de Recarga de Munições e Regulamentações Associadas