Introdução
Ouvi falar pela primeira vez sobre a expressão “cifra negra” nas aulas sobre indicadores de violência, durante a pós-graduação, na Universidade Federal de Sergipe. A expressão se referia aos crimes que não apareciam corretamente nas estatísticas por serem subnotificados (estupro, roubo de celular, violência doméstica) ou por serem notificados de forma errada para suavizar uma problemática mais abrangente (classificação dos homicídios em vários Estados).
Esses números ignorados tornam mais difícil a percepção sobre a violência e mais árdua a missão de propor estratégias de atuação (Essas dificuldades são melhor abordadas no Atlas de Violência de 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA).
Bem, mas esse texto trata de outro tipo de cifra negra, que atinge os programas de formação policial em vários locais do Brasil e deve ser olhado com bastante atenção: É a cifra negra da carga horária de instrução em matérias práticas.
O problema da logística x desenvolvimento de habilidades
Quem é instrutor de matérias práticas como armamento e tiro, abordagem, defesa pessoal, técnicas e táticas, dentre outras, sabe bem que boa parte da carga horária de instrução é gasta preparando logística ou no revezamento entre alunos para garantir uma atividade segura e em que todos possam ser monitorados e assessorados. Distribuir armamento, montar linhas de tiro, montar cenários de treino e avaliação tomam tempo e isso é previsível.
Somado a isso, temos as situações onde a logística não é ideal e precisamos, por exemplo, ensinar quarenta alunos a desmontar um modelo de arma tendo apenas dez armas para isso. O tempo gasto para que cada aluno desenvolva a habilidade se torna quatro vezes maior apenas por conta dessa limitação. Quando fazemos uma instrução de tiro onde cabem apenas dez alunos por vez com segurança e temos uma turma com cinquenta alunos, levamos cinco vezes mais tempo do que levaríamos se tivéssemos apenas uma linha de tiro. O problema é que a carga horária da matéria não será ampliada pois já foi definida na malha curricular.
O que acontecerá então?
Isso mesmo que você está pensando. O aluno que treinaria oitenta horas previstas acaba treinando menos da metade disso. Vamos fazer uma conta simples para que possamos entender a dimensão dessa questão:
Imagine uma matéria de tiro avançado (realização de pistas de tiro) que possui 40 h/a previstas mas tem uma turma com trinta alunos e dois instrutores. Cada aluno tem que passar sozinho na pista de tiro e leva cerca de dez minutos para concluir toda a atividade. A cada cinco horas de instrução, cada aluno terá treinado dez minutos. No fim da matéria, terá realizado oito pistas de tiro. Não estamos considerando tempo gasto nas instruções teóricas preliminares, tempo de avaliação e outras questões.
Se essa turma tiver dez alunos, cada aluno terá trinta minutos efetivos em cada cinco horas de instrução, realizando cerca de vinte e quatro pistas de tiro com a mesma carga horária prevista na matéria. Isso é bem comum também nas instruções de técnica individual ou abordagem a veículos, pessoas e edificações, onde os alunos praticam um por vez e o restante da turma fica olhando. Boa parte das vezes os alunos passam dez vezes mais tempo esperando do que fazendo.
A pressão sofrida direta ou indiretamente pelos instrutores
Isso nos leva a outro grande problema, que é o mais sério de todos: as medidas que os instrutores são pressionados a tomar para cumprir os cronogramas de atividade. Na instrução de tiro, geralmente, isso é a fórmula da tragédia. Muitos alunos, poucos instrutores, necessidade de acelerar as séries de tiro, pouco feedback e correção dos erros, maior probabilidade de ocorrência de acidentes e menor desenvolvimento das habilidades.
Certa vez, vi um policial recém-formado (que tinha passado por “80” horas aula de armamento e tiro) que municiou um carregador de pistola ao contrário. Você pode estar pensando: -esse policial é incompetente ou desinteressado! Tudo bem, pode até ser, mas, deixa eu te falar um pouco sobre isso:
Consequências para os alunos
Esse policial passou mais de cinquenta horas dessas oitenta sem manipular sequer uma munição de treino. Depois disso foi para os treinos em estande, onde haviam ao menos quatro linhas de tiro e ele fazia uma série de dez ou de vinte disparos durante todo o dia. Com um total de quarenta disparos para sua formação, ele municiou o carregador da pistola quatro ou cinco vezes durante toda sua formação. Isso é suficiente para saber como municiar o carregador? Para muitos, sim. Para alguns, não.
Se o programa de capacitação fosse mais honesto com os meios existentes, ou esse aluno aprenderia definitivamente como municiar o carregador ou ele não deveria ter concluído a formação. Simples assim. Vale à pena citar também que hoje esse militar é uma referência técnica da instituição, tendo concluído importantes cursos operacionais e se destacando em sua rotina de serviço. Com base nessa ultima informação, podemos presumir que o problema não estava no aluno. Certamente isso deve nos levar a pensar sobre a carga horária dedicada ao desenvolvimento das habilidades práticas, por mais simples que elas possam parecer.
Conclusão
Se faz necessário e urgente colocar em discussão essas questões que afetam o processo de formação policial em todo o país e devem ser observadas com atenção pelos gestores, que devem ficar longe das flexibilizações por motivos políticos ou financeiros. Estamos falando de vidas. Não apenas dos profissionais de segurança pública, mas também dos que eles irão proteger. Entre as sugestões, destacaria a necessidade de Limitar quantidade de alunos por turma, fornecer quantidade proporcional de armas e munições, munição de manejo, viaturas para treinamento, instrutores e monitores em conformidade com o número de alunos, estrutura logística de deslocamento e uma ementa adequada ao tempo de instrução, pois esses parâmetros são vitais para o resultado da formação.
Esse esforço institucional certamente resultará na formação de profissionais melhor capacitados, mais confiantes em suas habilidades, que erram menos e promovem maior segurança para a sociedade. É isso que se espera de uma formação policial.