Introdução
O estresse é uma resposta fisiológica que prepara o corpo para lutar ou fugir. Ele basicamente é estabelecido quando a nossa mente faz uma comparação entre demanda e capacidades. Quando entendemos que temos capacidade para cumprir a demanda apresentada com facilidade, o estresse não precisa atuar para “preparar” o corpo para enfrentar a ameaça. Quando nossa mente entende que existe o risco de sofrermos de alguma forma, uma série de fenômenos fisiológicos são desencadeados para preparar o corpo para a luta. Dave Grossman afirma em sua obra “On Combat” (2017) que a Inoculação de Estresse é um método eficiente para aumentar o rendimento de operadores, utilizando para isso do estresse apresentado de forma pedagógica durante o treinamento de habilidades essenciais em situações de elevada tensão. A dúvida então passa a ser: de que maneira podemos estabelecer um ambiente que reproduza as condições estressoras de uma ocorrência policial mantendo a segurança da instrução?
Para isso, muitos instrutores acabam recorrendo erroneamente apenas ao esforço físico como estressor, que apesar de elevar o ritmo cardíaco e provocar deterioração de performance, não provoca os efeitos do estresse que estão presentes em ocorrências críticas. Tal situação nos leva a uma segunda pergunta: Quais são então os fatores estressores e que causam os efeitos observados em situações reais? Procurando por essa resposta achei um livro extremamente esclarecedor e que quero compartilhar com vocês. Ele relata 13 tipos de estressores comuns e comenta sobre formas de abordar cada tipo de estressor em treinamentos simulados.
O nome do livro é “A Scientific Approach to Reality Based Training” e foi escrito por Terry N. Wollert e Jeff Quail. A partir de agora, o conteúdo apresentado neste artigo é um misto de tradução com resumo feito por mim de algumas páginas do primeiro capítulo do livro. Tentei ao máximo não fugir das ideias apresentadas pelos autores mas confesso que foi necessário adaptar algumas frases para maximizar o entendimento por parte do leitor brasileiro, que vivencia uma realidade operacional bem divergente em alguns aspectos.
Tipos de estressores
1-Compressão do tempo:
É a restrição do tempo disponível para executar uma determinada tarefa. A pesquisa sugere que a compressão do tempo pode piorar a performance por conta das demandas cognitivas e a sobrecarga de informação que precisa ser avaliada. Estudos práticos mostram que quando submetidos à restrição de tempo, as pessoas tendem a manter ou elevar a velocidade da performance, mas deterioram a precisão ou acurácia das habilidades.
Métodos para aproveitar a compressão do tempo como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Aparição repentina de agressor no cenário da simulação (pessoa armada vindo de local escondido)
- Aparição repentina de uma arma (pessoa retira uma arma de suas vestes de forma súbita no cenário de simulação)
- Mudança repentina de perfil emocional (Pessoa muda repentinamente seu comportamento de calmo para agressivo)
- Uso de exercícios de isolamento e de cenários rápidos
2-Distância:
A distância tipicamente opera lado a lado com a compressão do tempo. Quanto mais próxima uma ameaça se apresenta, menor é o tempo disponível para reagir. Grossman identificou uma correlação entre estresse e distância que diz que quanto mais próximo, fisicamente, da ameaça, maior o estresse, em parte por conta da resistência natural do ser humano em matar seu semelhante. Quanto mais próxima a ameaça, mais humana ela parece.
Distância é a variável mais direta de ajustar no cenário de treinamento. Se você quer aumentar o estresse, coloque a ameaça mais perto. Se quer diminuir o nível de estresse, coloque a ameaça mais longe.
Métodos para aproveitar a distância como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Estabeleça simulações que ocorrem em ambiente confinado (dentro de uma sala, quarto ou qualquer outro ambiente que dificulte que o aluno estabeleça distância)
- Esperar que o aluno esteja próximo para apresentar comportamento atípico (agressor escondido logo após esquina)
- Simulações que envolvam necessidade de algemação.
3-Acúmulo de tarefas:
Realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo diminui a performance e eleva o estresse do operador em virtude da necessidade de dividir a atenção entre as atividades. Esse tipo de demanda afeta com maior intensidade os operadores que possuem função de liderança em situações de alto risco, como é o caso do gerente de crise.
Métodos para aproveitar o acúmulo de tarefas como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Usar dois ou mais figurantes para interagir com o aluno (ocorrência em bar envolvendo três pessoas)
- Induzir pane no armamento do aluno para que ele precise resolver o problema da arma enquanto interage com a ameaça.
- Interferência de terceiro (figurante que tenta interferir na prisão de outro, criando duas demandas para o aluno controlar)
4-Ameaça:
Ameaça é a antecipação ou medo de uma injúria física ou psicológica. Nenhum outro fator define mais claramente o ambiente letal em que o profissional de segurança pública está inserido. A ameaça resulta em piora na performance, causada pela elevação do estresse e intensificação de respostas fisiológicas. (É importante salientar que a intensidade da ameaça não é estabelecida diretamente pelo estimulo, mas pela interpretação dada por quem a percebe. A ameaça é fruto de uma interpretação psicológica)
Métodos para aproveitar a ameaça como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Ameaça de dor feita à distância (Falar para um aluno, que está usando um traje que emite choques quando atingido por laser, que ele irá fazer a abordagem de uma edificação onde se esconde uma pessoa armada com pistola que emite laser)
- Ameaça de dor próxima (Figurante com faca de treinamento eletrificada que avança lentamente contra o aluno)
- Ameaça de luta corporal (Figurante forte que intimida o aluno anunciando que vai bater nele)
5-Ambiguidade da tarefa:
Ambiguidade da tarefa é uma propriedade do ambiente operacional, caracterizado pela falta ou imprecisão das informações disponíveis para que o sujeito consiga entender o que precisa fazer. Alguns pesquisadores definem o termo como sendo uma “lacuna de claridade situacional”. A tarefa pode se tornar ambígua pela necessidade do operador precisar fazer discriminações difíceis, pela falta de informações fundamentais para o entendimento ou por fortes expectativas não serem confirmadas.
Quando o operador não tem certeza do que está acontecendo, ele também não consegue definir com segurança uma forma de atuar. Essa incerteza eleva o estresse e pode ser destacada em um exemplo clássico onde temos uma pessoa suspeita que se aproxima do policial escondendo suas mãos, mesmo com a determinação explicita do policial para que as mostre imediatamente. O policial precisa confirmar se existe uma arma ou não nas mãos do suspeito para poder definir com segurança o nível de uso da força que utilizará nessa ocorrência.
Métodos para aproveitar a ambiguidade da tarefa como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Mãos escondidas (Figurante com as mãos escondidas avança contra o aluno que não sabe se existe arma no cenário)
- Gritos de vítima escondida (Aluno do lado de fora de uma edificação onde está havendo uma ocorrência de crise com refém e de repente começa a ouvir uma série de gritos de dor provenientes de possível refém dentro da edificação)
- Protocolo ambíguo (Aluno armado de dispositivo elétrico de incapacitação se depara com suspeito agressivo posicionado em local alto, com risco de queda, precisando decidir se realiza o disparo ou não, uma vez que a doutrina de utilização do dispositivo não recomenda a utilização nessas condições)
6-Novidade:
Novidade é a propriedade do ambiente operacional caracterizado por eventos repentinos, inesperados ou imprevisíveis. Eventos dessa natureza ocasionam maior demanda cognitiva para o operador e elevam o estresse. O operador pode se deparar com uma situação totalmente nova ou com uma situação conhecida, mas que se apresenta em um arranjo situacional diferente do usual, provocando efeitos parecidos.
Métodos para aproveitar a novidade como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Ataque letal atípico (Figurante que segura bebê (boneca) de colo e de repente coloca ele no chão e levanta o pé indicando que irá pisar o bebê)
- Interferência em habilidade de rotina (Figurante que precisa ser preso, mas está com braço engessado, impedindo a utilização de algemas)
- Interferência na forma usual de executar habilidade (Simular que o aluno foi ferido no braço dominante para que ele precise atuar manuseando o armamento com a mão não dominante)
7-Conflito de função:
Conflito de função é a incompatibilidade das demandas da função ou suas responsabilidades. Pode ocorrer quando as expectativas alheias nos cobram de maneira conflitante e precisamos tomar uma decisão para agir. Um exemplo bem atual é o cenário de crise com atirador ativo versus ocorrência com refém. As informações operacionais dessas duas situações podem ser bem parecidas, mas a resposta tática para cada uma é bem especifica (Conter, isolar e realizar os primeiros contatos na crise com refém ou a intervenção tática imediata no caso de atirador ativo). O operador pode se deparar com esse conflito de decidir qual papel protocolar assumir.
Métodos para aproveitar o conflito de função como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Resposta tática versus resposta médica (Durante a simulação de um cenário com atirador ativo, aluno é interpelado por figurante ferido que requer atendimento médico e precisa decidir se atende o figurante ou continua procurando o atirador)
- Lei versus lealdade (O parceiro de equipe do aluno é na verdade um figurante que irá usar de força excessiva durante realização de prisão, forçando o aluno a escolher se deve intervir ou não contra esse excesso)
8-Ambiguidade de função:
Ambiguidade da função é a incerteza ou uma lacuna de claridade quanto às definições de tarefas ou responsabilidades de um trabalho. “Eu pensei que esse era o seu trabalho” é algo que tipicamente se ouve nos cenários operacionais onde ocorre essa ambiguidade. A falta de definição de protocolos de atuação em certas situações acaba promovendo isso com maior intensidade.
Um exemplo comum em instituições policiais hierarquizadas é quando os superiores hierárquicos esperam que os subordinados atuem sem a necessidade de direcionamento e, ao mesmo tempo, os subordinados aguardam o direcionamento por parte de seus superiores para começar a agir. Ambiguidade de função é um ótimo tópico para que os instrutores possam trabalhar no seu programa de treinamento simulado a comunicação e capacidade de coordenação que são necessárias em ambientes operacionais com interação de agencias diferentes, como cenários de ameaça de bomba, atirador ativo, acidente de transito, onde exige a coordenação de atividades com serviço de emergência, policial, investigativo, etc.
9-Demandas de coordenação:
Demandas de coordenação são frutos da necessidade de interação entre operadores para atingir objetivos comuns. Para atividades de rotina, essa interação é previsível e relativamente simples. Já para eventos dinâmicos e imprevisíveis, essa demanda de coordenação é mais complexa e gera maior estresse situacional. Respostas rápidas de resgates, entradas táticas e respostas em desastres naturais são ótimos exemplos da presença desse fator estressor.
Métodos para aproveitar as demandas de coordenação como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Movimentação de time tático (Time de cinco alunos precisa responder a uma situação de atirador ativo dentro de local lotado, demandando coordenação para a progressão no ambiente)
- Busca com utilização de cães farejadores (Equipe precisa fornecer segurança para equipes com cães que estão fazendo uma busca em ambiente urbano)
- Operação policial com uso de helicóptero (Suporte aéreo simulado guiando os alunos para pegar um ladrão que está escondido em ambiente urbano)
- Cenário de atirador ativo com outros primeiros interventores (Alunos precisam coordenar a resposta junto com equipes de emergência médica e bombeiros)
10-Barulho:
Barulho é basicamente o som que o operador não quer ouvir. O som que atrapalha a realização de certa atividade e que pode indicar algo potencialmente nocivo. Barulho pode ter efeitos severos na performance. Primariamente, ele pode dificultar a percepção dos sons que o operador precisa ouvir para realizar alguma tarefa, como o som do rádio ou as palavras de um membro da equipe que está relatando uma questão operacional.
Métodos para aproveitar o barulho como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Alarme (Realizar a busca por um suspeito dentro de uma edificação enquanto o alarme está disparando)
- Gritos (Alunos respondendo a uma situação simulada de atirador ativo dentro de um prédio de escritórios com figurantes correndo e gritando próximo a eles)
- Sirenes (Alunos em uma simulação de perseguição veicular que requer comunicação via rádio enquanto a sirene está ligada)
- Explosões (Explosão de dispositivo improvisado ocorre enquanto o aluno desloca para agir em situação de atirador ativo)
11-Pressão por performance:
Pressão por performance ocorre quando existem consequências mais graves para o erro e isso eleva o estresse da situação. Isso pode ocorrer quando o erro pode vitimar alguém conhecido ou pode prejudicar severamente o próprio operador (caso do disparo efetuado pelo atirador de precisão). Pode também ocorrer quando o aluno ou operador está sendo avaliado por alguém, seja seus pares, seus superiores ou o público em geral.
Métodos para aproveitar a pressão por performance como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Pressão dos pares (Aluno é colocado na frente da turma para mostrar sua performance em alguma habilidade especifica, como realizar colocação de algemas)
- Figura de autoridade (Comandante da unidade observa o aluno realizar uma pista de tiro que é parte da avaliação para ingresso na unidade)
- Gravação da performance (O aluno é avisado que a simulação será gravada para fins de avaliação posterior)
- Risco de consequências no trabalho (O aluno é avisado antes da simulação começar que sua falha pode acarretar na saída da unidade)
12-Privação sensorial:
Privação sensorial descreve qualquer situação onde os fatores ambientais limitam a capacidade de um ou mais sentidos em transmitir informações para o cérebro. A lacuna de informação sensorial interfere na consciência situacional e pode impedir a percepção de estímulos importantes para o processo de tomada de decisão. Um policial procurando um suspeito em ambiente escuro é um ótimo exemplo de privação sensorial. Mesmo utilizando lanterna, a área iluminada é restrita e ainda existe limitação na informação recebida pelo cérebro. A privação sensorial aumenta o nível de estresse uma vez que aumenta a chance de novidade e de ameaça, além de ambiguidade da tarefa.
Métodos para aproveitar a privação sensorial como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Ambientes com baixa luminosidade (Aluno precisa fazer uma busca por marginal homiziado em ambiente pouco iluminado ou sem iluminação)
- Restrição provocada por equipamento (Alunos que são membros de uma equipe tática participam de simulação onde precisam utilizar mascara contra gases e realizar uma entrada tática)
- Restrições táticas (Alunos precisam fazer uma busca por marginal homiziado em uma casa e devem realizar comunicação através de sinais para evitar denunciar a própria localização)
13-Dor:
Dor é o nosso mecanismo interno de mudança de comportamento. Desde o nascimento, nós tendemos a evitar dor ou estímulos dolorosos. Por essa razão, dor pode ser um efetivo estressor. Ser atingido por um disparo, facada, soco ou acidentalmente escorregar e cair irá causar dor, resultando em uma resposta estressora massiva. Mesmo quando a dor não ocorre, apenas a ideia de que ela irá ocorrer pode acarretar um estado de ansiedade igual a como se tivesse ocorrido. No ambiente de treinamento, a dor pode ser utilizada como punição ou como reforço negativo para modelar o comportamento do aluno.
Entretanto, nos treinamentos de realidade simulada, a dor não deve ser encarada apenas como um reforçador de comportamento, mas deve ser utilizada para ensinar ao aluno que a dor não pode retirar o foco dele na realização da tarefa. Com esse intuito foi desenvolvido um cinto inteligente que pode ser programado para oferecer um choque elétrico em períodos de tempo pré-determinados e que funciona conjuntamente com um colete sensível a laser, onde o choque ocorrerá caso alguém dispare uma arma de laser contra o colete. A dor eleva o estresse e altera o processo cognitivo, sendo que o instrutor irá estimular o aluno a atingir seus objetivos mesmo com a presença da dor, objetivando estabelecer padrões reativos de sobrevivência mais efetivos.
Métodos para aproveitar a dor como forma de estimular estresse em atividades de realidade simulada:
- Dor como punição (Aluno que não se abriga corretamente durante simulação é atingido com disparo de projétil não letal, ocasionando dor)
- Esforço físico (Alunos participam de simulação de perseguição a pé até ficar exausto. Nesse momento precisa realizar alguma tarefa especifica, como algemar o suspeito)
- Permanecer na briga (Aluno utiliza cinto inteligente que aplica choques em intervalos randômicos simulando ferimento que irá interferir no processo cognitivo e vai testar sua habilidade de se manter focado na execução da tarefa)
Conclusão
Em síntese, compreender sobre a existência desses fatores estressores e sua importância no planejamento do treinamento técnico/tático permitirá alcançar resultados positivos e mais eficazes na formação. Muitas instituições acabam pecando em limitar a representação do “estresse” apenas na forma de cansaço. Isso não representa a realidade. Outro erro comum é utilizar a exposição ao estresse de maneira não planejada, correndo o risco de causar o efeito contrário no aluno, que ao invés de conseguir vencer as adversidades do treinamento, sentirá bloqueio e sentimento de incapacidade diante das demandas.
É necessário compreender o estresse como uma ferramenta do planejamento pedagógico da capacitação, através de planos de aula delimitados e adequados para a realidade do aluno. Para tal, Iniciativas como o SET (Stress Exposure Training) e o conceito de Inoculação de Estresse, são exemplos de como utilizar adequadamente essa ferramenta, com a finalidade de criar profissionais capacitados para a realidade das ocorrências críticas.