Introdução
Você já se perguntou se seu treino técnico/tático é adequado para suas necessidades? Antes de planejar seu treinamento (considerando que você realmente planeja) você passa por alguma avaliação de desempenho ou diagnostico de necessidades? Creio que a maioria responda não a essas perguntas. A verdade é que entendemos o treinamento das habilidades utilizadas na atuação tática como se fossem perenes após sua aquisição inicial. Habilidades que aprendemos no curso de formação e que ficarão lá, guardadas de forma intacta até que precisemos dela no momento da ação. Se passarmos a entender o treinamento tático como uma atividade física (e no fim das contas é mesmo) e a habilidade em si como o corpo a ser exercitado, ficará muito mais simples compreender os conceitos que iremos trabalhar nesse texto.
O treino técnico/tático é como a musculação
Quando decidimos praticar uma atividade física como a musculação, por exemplo, geralmente o fazemos com algum objetivo (ficar forte, emagrecer, ficar saudável), e esse objetivo final (podemos chamar também de meta) servirá como base para traçarmos o planejamento das ações mais adequadas para chegar lá o quanto antes. É natural, antes de iniciar o treinamento, consultar um profissional que irá fazer uma avaliação do seu corpo, ouvir sobre suas metas pretendidas e traçar toda a rotina necessária para obter os resultados, indicando quais são os exercícios que precisarão ser feitos, a quantidade de repetições e a carga que deverá ser aplicada.
A cada X meses esse profissional irá indicar a necessidade de nova avaliação para verificar a sua evolução e dessa forma poder decidir se altera algum aspecto do treinamento ou se deixa como está. Essa rotina nunca vai acabar, a não ser que você decida que não quer mais manter a capacidade física em dia, ou seja: o desenvolvimento físico é perecível. Certo, já sabemos de tudo isso, mas, onde entra o treinamento tático nisso tudo?
Definindo metas
O treino das habilidades táticas é muito parecido com a musculação. Você precisa primeiramente definir exatamente qual sua meta com relação ao treinamento. Na performance motora o autor Richard A. Schmidt chama isso de “definição de metas ambientais”, pois um movimento só passa a ser uma habilidade quando está dotado de objetivo.Tomando como exemplo o desenvolvimento da habilidade em tiro, devemos nos perguntar: Em quais distancias os confrontos ocorrem? Com quais armas eu trabalho? Para o trabalho desenvolvido na minha unidade eu tenho que ser mais eficiente em campo aberto ou em recintos fechados? Fazendo essas perguntas você poderá definir suas metas ambientais com clareza (ser capaz de acertar uma pessoa em uma distância de até 10m, mesmo estando sob estresse e em movimento. Ser capaz de efetuar 3 disparos em menos de um segundo. Realizar transição da arma longa para arma curta em até dois segundos…).
As metas podem ser as mais diversas, assim como os praticantes de musculação também possuem objetivos muito diferentes para seus corpos. Depois de saber o que pretende, é necessário procurar um profissional que irá avaliar suas habilidades e, com base naquilo que você disse que pretende, irá prescrever o treinamento mais adequado para que você atinja sua meta. Começa aí a parte que poucos fazem. Quem seria esse profissional? Como ele faria essa avaliação?
Acompanhamento especializado
Alguns profissionais de segurança simplesmente acessam vídeos da internet ou resolvem repetir o que fizeram anos atrás em sua formação inicial, indo ao estande com alguma munição para simplesmente “atirar”, sem ter traçado nenhum planejamento para isso. Imagine uma vez por mês você pagar a diária de uma academia de musculação, tentar lembrar algum exercício que já fez um dia em outra academia e repetir de forma não planejada. Um exercício de bíceps, depois dois de perna e para finalizar, uma corrida na esteira. Será que você pode considerar que fez uma atividade efetiva? Certamente não.
Outros profissionais, mais conscientes da necessidade do acompanhamento e qualificação, procuram capacitações existentes dentro e fora da instituição, onde terão contato com programas pedagógicos estruturados para qualificar de forma adequada, com acompanhamento de profissionais gabaritados e experientes. O problema é que muitas vezes esses profissionais consideram que a partir do momento em que concluem as capacitações, estarão eternamente habilitados para cumprir com aquilo que treinaram durante certo tempo.
Grande parte das capacitações voltadas para atuação tática dependem do desenvolvimento de habilidades motoras, que como toda atividade dessa natureza, depende de treinamento constante para manutenção do rendimento adequado. Algumas capacitações, inclusive, ocorrem em períodos de tempo tão resumidos que seria muita audácia estipular que o indivíduo estaria de fato habilitado para atuar de forma eficiente de acordo com as técnicas que foram passadas.
Já pensou se você, iniciante da musculação, fosse chamado para treinar com o campeão mundial de halterofilismo e ele mostrasse para você toda a rotina de treinamento e alimentação dele? Que além disso, você fosse fazendo cada exercício que ele indicasse, de modo que ao final do dia soubesse tudo que era preciso para ser um campeão como ele? Isso faria de você um campeão do halterofilismo? Ou você acha que precisaria de alguns anos de trabalho muito intenso, abdicação de vários hábitos contraproducentes e adoção de um estilo de vida totalmente diferente para chegar onde ele chegou? Colocando assim a resposta parece bem fácil. Por que com relação às demandas táticas não conseguimos visualizar o mesmo?
Já entendemos que precisamos definir metas, ser avaliados por um profissional e cumprir com um planejamento de treinamento tático adequado para as nossas necessidades, mas, como esse planejamento ocorre? Com base em que o avaliador pode definir aquilo que precisamos treinar?
Uso do Core Performance Elements (Principais elementos de performance)
No livro “A Scientific Approach to Reality Based Training”, de Terry N. Wollert e Jeff Quail, os autores nos apresentam duas ferramentas simples e eficazes para definição de metas, realização de diagnóstico e prescrição de treinamento. Uma delas é a definição dos “principais elementos de performance”. Resumidamente, os autores classificaram as habilidades em quatro grandes eixos: 1- Habilidades que envolvem comunicação; 2-Tomada de decisão; 3-Habilidades físicas e 4-Consciência situacional. A dificuldade do aluno pode estar em habilidades que se relacionam com todos os eixos ou tão somente com um deles. A figura abaixo, traduzida e adaptada do livro, retrata essa construção do “Core performance elements”:
Com base nesse exemplo, podemos entender como o nosso treinamento pode ser explorado em aspectos muito distintos e como a avaliação se faz necessária para a prescrição de exercícios eficazes para nossos problemas. Não adianta ter uma habilidade física (memória muscular, programa motor) perfeitamente desenvolvida e continuar apenas treinando isso se não tivermos a capacidade de perceber o ambiente e decidir quando usaremos essa habilidade. Os elementos de performance precisam estar integrados e nivelados para uma atuação tática eficaz.
Já observei muitas vezes alunos empolgados com a realização de pistas de tiro, sendo que não faziam ideia ainda de como empunhar uma arma adequadamente, estabelecendo um padrão quase aleatório em seus disparos. Já vi também alunos que eram exímios atiradores (observando tão somente o aspecto precisão) mas que eram incapazes de agir sob estresse. O grande problema é que, para a atuação policial, não adianta saber realizar um disparo preciso sob circunstâncias ideais, se essa habilidade só será requisitada em momentos críticos, dinâmicos e estressantes.
Muitos profissionais de segurança pública possuem interesse em aprender e disponibilidade para treinar, porém, simplesmente não conseguem identificar suas necessidades em virtude de nunca terem tido contato com certas fricções (dificuldades características do trabalho) ou de acharem que essas fricções não podem ser solucionadas com treinamento. É aí que entra uma ferramenta muito interessante, que também foi proposta no livro “A Scientific Approach to Reality Based Training”: o modelo ADAPT.
Modelo ADAPT
ADAPT é a sigla para Avaliação, Diagnostico, Prescrição e Treinamento. A ideia é autoexplicativa e a proposta é tão simples quanto essencial para o processo de capacitação. Funciona da mesma forma que uma consulta medica ou avaliação física para iniciar na musculação. Um profissional capacitado fará uma avaliação da sua capacidade de atuação tática, utilizando para isso os Principais elementos de performance que já discutimos, além de avaliações diversas para identificar qual o problema latente (ex: se o policial sabe manusear uma pistola, se ele consegue realizar disparos precisos, se ele consegue identificar ameaças, se consegue solucionar panes de tiro sob estresse, se possui tempo de resposta adequado para agressões letais).
Após essa avaliação e exames, da mesma forma que em um consultório médico, será apresentado um diagnóstico, apontando causas e consequências dos problemas detectados. Na figura abaixo, também traduzida e adaptada do livro, podemos ver um resumo prático do resultado dessa avaliação e diagnostico, que resultará em uma prescrição de treino adequado às necessidades do aluno.
Tomando como exemplo a primeira coluna, o comportamento observado foi de que o aluno não sabia realizar a habilidade (não conseguir sanar uma pane na arma de fogo, não conseguir utilizar um dispositivo elétrico, não conseguir acionar uma granada). O diagnóstico foi de que esse aluno não sabe COMO fazer algo, então o treinamento que isso requer, inicialmente, deve ser estático para o desenvolvimento da habilidade física (Programa motor, “Memória muscular”), baseado em repetição e feedback. Seria diferente do aluno não conseguir, por exemplo, saber QUANDO solucionar a pane, que não é um problema com a habilidade em si, mas sim de identificação de estímulos ou reconhecimento de padrão, sendo necessário então outro tipo de treinamento.
Colocando dessa forma, o processo de planejamento do treinamento fica mais fácil, mais pragmático e com potencial de resultados melhores para quem deseja desenvolver sua capacidade de atuação tática. O modelo ADAPT inclusive estabelece a utilização de fichas de prescrição de treinamento (da mesma forma que uma receita médica), visando uma abordagem metódica do processo de capacitação.
Algumas instituições policiais adotam a metodologia para realizar avaliações periódicas do seu efetivo e inclusive poder delimitar quem possui condição de estar nas ruas trabalhando e quem deve ser afastado para realização de treinamento, fazendo classificações dos diagnósticos. Isso preserva a segurança do próprio profissional e também dos usuários do serviço (a população).
Conclusão
Diante do exposto, podemos concluir que é vital compreender o treinamento tático de forma metodológica e com planejamento voltado para a realidade profissional do operador de segurança pública. É necessário fugir do modelo de treinamento genérico ou da capacitação sem foco no que o usuário precisa. Na maioria das vezes, é preciso reconhecer (a avaliação tem esse papel) que nossa necessidade de treinamento está nos aspectos mais básicos do desenvolvimento de habilidades, pois, só depois de desenvolver o básico teremos condição de absorver o complexo.
Referências
CLAUSEWITZ, C. Da Guerra. WMF Martins Fontes. 2017.
KNOWLES, M. Aprendizagem de Resultados: Uma abordagem prática para aumentar a efetividade da educação corporativa. 1. Ed. Elsevier, 2009.
SCHMIDT, R. Aprendizagem e performance motora: dos princípios à aplicação. 5. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2016.
WOLLERT, Terry N. A scientific approach to reality based training. Manitoba: Three Pistol Publishing, 2018.