Do massacre de Newhall e do tiroteio de Norte Hollywood até os dias de hoje, o que mudou e quanto podemos melhorar?
Todo estudo de caso importante traz consigo uma série de aprendizados, de indicativos de necessidade de mudanças, de possibilidades de visões críticas construtivas, mas principalmente de profundo respeito e gratidão àqueles que deram muito ou tudo o que tinham em prol da sociedade e da manutenção dos direitos mais caros, tais como a vida, a integridade física, a liberdade, a propriedade, entre outros.
Com isso tendo sido dito, cabe aqui citarmos alguns dizeres de Ronald Regan (militar norte americano, político, Governador da Califórnia naquela época e Presidente dos E.U.A posteriormente) , quando do Massacre de Newhall:
“Se alguma coisa valiosa restou viva dessa tragédia (se referindo ao massacre), deve ser a compreensão por todos os cidadãos de que muitas vezes as únicas coisas que ficam entre eles e a perda de tudo que lhes é caro são os homens usando distintivos” (tradução e adaptação nossa).
O massacre de Newhall
O massacre de Newhall gira ao redor do assassinato de quatro policiais rodoviários do Estado da Califórnia durante um turno de serviço, fato ocorrido na passagem do dia 05 para o dia 06 de abril de 1970, numa localidade que fica a aproximadamente 25 quilômetros de Los Angeles. Todos os policiais tinham entre 23 e 24 anos de idade e deixaram esposas e um total de 7 filhos.
A abordagem aos dois suspeitos com vasto passado criminal foi por conta de uma anterior discussão de trânsito com ameaça, utilizando arma de fogo, momentos antes, e se deu numa rodovia próxima ao local da abordagem fatídica. As informações vieram por meio de denúncia da pessoa ameaçada utilizando um telefone público, mas acreditamos, pelas informações pesquisadas, que o fato de ser área de trânsito de muitos caçadores e atiradores, fez com que fosse subestimada.
Os assassinos estavam planejando um roubo a um veículo de transporte de valores. Após a morte dos policiais os dois criminosos fugiram separadamente, tendo ainda se envolvido em roubos e até num sequestro durante a fuga. Um deles foi preso com ferimentos leves, incluindo um ferimento por tiro e o outro se suicidou, após o assalto tático de uma equipe da polícia de Los Angeles, após horas de negociação, numa casa de família, que foi feita refém. Tudo exposto de forma bastante condensada para deixarmos as ideias mais fluidas para o amigo leitor.
Para uma abordagem completa e detalhada do caso sugerimos o link que segue, além de várias obras e documentários a respeito:
O tiroteio de Norte Hollywood
O tiroteio de Norte Hollywood foi consequência de um roubo a banco também realizado por dois criminosos. Os fatos ocorreram na segunda metade da década de 90. Em aproximadamente 40 minutos, quase vinte pessoas ficaram feridas entre policiais e civis, algumas delas em condições graves com várias perfurações e ferimentos no corpo e os dois assaltantes foram mortos, sendo que um deles necessitou ser atingido por 29 disparos de arma de fogo para somente então ser interrompido em seu intento criminoso.
Numa estatística breve e especialmente por conta dos tipos de armas utilizadas e do conceito de atuação responsável (somente considerando o lado policial nesse caso), os meliantes atiraram mais de mil e cem vezes durante o tiroteio e a fuga do banco, ao passo que os mais de 300 integrantes das cinco forças de segurança que atuaram realizaram apenas 550 disparos (uma razão de menos de dois disparos por Operador).
Para mais dados e maior pormenorização do caso sugerimos o link que segue, destacando também que pela notoriedade dos fatos há toda uma gama de veiculações, incluindo filmes e documentários a respeito:
Apontamentos cabíveis
Após essas apertadas sínteses, passaremos então a mencionar o que acreditamos que poderia mudar os resultados de alguma maneira, seja para melhor ou para pior, caso a caso.
Caso de Newhall:
- Os dois patrulheiros que decidiram realizar a primeira abordagem eram bastante novos e recém formados;
- Os outros dois policiais, da mesma faixa etária dos anteriores, que já tinham sido avisados sobre a abordagem e se encontravam bem próximos poderiam ter sido esperados para que tudo fosse realizado em conjunto num momento mais oportuno com superioridade numérica e de armas. São questões afetas ao que chamamos de consciência situacional, algo que foi muito bem desenvolvido por Boyd, em seu famoso ciclo. Nem sempre podemos controlar o momento da ação ou da necessidade dela, mas quando há essa possibilidade isso deve ser aproveitado.
- Dos quatro policiais, três estavam portando revólveres no calibre .357 Magnum, mesmo tendo sido treinados somente no calibre .38 “Special”. A diferença de recuo e a falta de mais treino fez com que todos os disparos fossem mal sucedidos;
- Até aquele período não havia autorização do Departamento de Polícia para uso de “speed loaders”, então além da baixa capacidade de tiros típica de qualquer revólver, o retorno ao combate seria mais lento em decorrência da forma de recarga ou da utilização de arma alternativa;
- As armas longas adotadas pelo departamento eram espingardas, havendo inclusive recomendação de uso de câmara vazia, desencorajando assim o seu uso e afastando a prática constante, eficaz e marcial.
- Nenhum dos patrulheiros faziam uso de proteção balística, mesmo em níveis de proteção mais baixos. Caso utilizassem elas teriam sido eficazes contra as armas que foram usadas contra os policiais.
- A forma como a ocorrência foi veiculada pode ter feito com que os policiais pouco experientes acreditassem em algo de menor relevância, tendo sido mitigado com isso os fatores de imprevisibilidade e complexidade das abordagens veiculares, principalmente porque a notícia era de apenas uma pessoa no veículo anteriormente. Parte da doutrina atual aponta inclusive grande semelhança desse contexto com o de suspeitos barricados, o que ganhou força com as negativas iniciais de atendimento aos comandos dos policiais.
- Se num primeiro momento tínhamos algo dizendo sobre a possibilidade de suspeitos barricados, com a relutância ou demora para a saída do veículo, após a chegada da segunda viatura e com os dois primeiros policiais atingidos, passamos a ter um quadro de possíveis marginais barricados.
- No primeiro contato, o segundo policial não se preocupou com a cobertura do policial que primeiro abordou o motorista do carro, ele se dirigiu para a extração do outro criminoso não colaborativo, o que estava na posição de passageiro. Além de não seguir os ditames do que os americanos chamam de contato e cobertura, esse segundo policial se aproximou da linha de tiro do primeiro.
- Nenhum dos disparos efetuados pelos patrulheiros atingiram os dois criminosos!
- As circunstâncias pareceram demonstrar que os policiais ingressaram num modo reativo tardio. Em outras palavras, a “compressão” do tempo de reação os conduziu ao pânico. Eles estavam sendo atacados antes mesmo de entenderem e assimilarem ao que precisariam responder.
Caso do tiroteio de Norte Hollywood:
- A programação dos dois criminosos previa um tempo de resposta por parte da polícia. Eles acionaram seus cronômetros contando com isso, mas dois policiais em serviço, bastante atentos, perceberam o início da ação com o desembarque dos meliantes do seu respectivo veículo e divulgaram a notícia;
- Essa percepção dos dois policiais mencionados permitiu a realização de um cerco mais rápido por parte da polícia de Los Angeles e de outras Agências, além de possibilitar também uma mobilização e atuação mais rápidas dos times de SWAT (que puderam equalizar o combate com o uso de seus fuzis);
- As armas policiais convencionais da época eram muito inferiores as dos ladrões de banco, tanto em poder de fogo, quanto em aspectos de potencial capacidade de produção de lesões. Os bandidos utilizaram pelo menos três fuzis, todos com calibres de alta velocidade e com carregadores de até mais de 100 cartuchos. Como se não bastasse, mesmo contrariando as formas legalmente admitidas, claro, suas armas foram objeto de alteração para funcionarem em regime automático de tiro;
- Os policiais estavam em maioria com pistolas e revólveres, apenas alguns usavam espingardas.
- Os bandidos ainda contaram com munições do tipo perfurante, o que relativizaria algumas formas de proteção e abrigo por parte dos policiais e populares, levando também a um incremento da possibilidade de danos;
- Os assaltantes se preocuparam em usar vestes de proteção balística bem conformadas aos seus tipos físicos.
- O uso de Fenobarbital possibilitou a eles comportamento frio e anestesiado, resultando em condutas agressivas muito além do normal, além de demonstrar extrema determinação;
- Esse comportamento de maior “imunidade a dor” desses meliantes fez com que eles saíssem do banco recusando a negociação e iniciando um deslocamento através de ruas (fogo e movimento), transmutando o quadro inicial para o de atirador ativo.
- O item anterior demonstrou para as Forças de Segurança a necessidade de implementação de treinos com estímulos bem mais variados e desprovidos de molduras perfeitas, adequando-se assim ao realismo e justificando a importância da crença de que o nosso semelhante pode sim nos fazer um mal sem precedente, algo particularmente difícil de se inserir na mentalidade da população comum, segundo Dave Grossman;
- O quadro de atirador ativo com armas automáticas e munições perfurantes de alta velocidade também chamou a atenção para a importância do atendimento pré-hospitalar semelhante ao que já vinha sendo feito pelas Forças Militares, algo contextualizado com o combate e que inclusive propiciaria o controle hemorrágico num menor tempo. Nesse mesmo contexto, cabe o destaque de que nessa mesma década há um grande marco nas Operações Militares, a Operação Serpente Gótica (Somália).
- Esse tipo de atendimento também deveria ser proporcionado aos civis, além de um protocolo para esses eventos de atiradores ativos. Protocolo esse que facilitaria em muito a ação da polícia.
- Com a chegada dos times de SWAT a polícia passou então a contar também com fuzis para o combate;
- As equipes de SWAT também encontrariam menos dificuldades para as buscas em ambientes confinados. Equipamentos, técnicas, armas e pessoal em maior número por equipe.
Equipes da SWAT (Los Angeles Times)
- Coisas menos convencionais podem não ser boas, até que se transformem em solução viável ou singular, a exemplo de disparos nas pernas ou em qualquer local não protegido (fragmentos do corpo que não estejam barricados também) de meliantes usando proteção balística. Mais ainda aplicáveis no caso de disparos partindo de posições barricadas por baixo de veículos etc.;
- Em que pese alguns apontamentos no sentido de que o socorro tardio realizado pela polícia para os meliantes tornou as suas mortes mais certas, o fato de terem sido utilizados argumentos por parte da polícia dizendo que havia expectativa de porte de granadas e explosivos com eles, algo bem comum em ações de roubo a banco, fez tudo resultar numa menção honrosa com o reconhecimento do governo local com medalhas de bravura para policiais e cidadãos que intercederam em seus favores contra os ladrões e atiradores ativos.
Muito mais poderia ser dito, mas ficaremos nos pontos e lições expostos. Todo detalhe conta quando vidas estão em jogo.
As lições em sangue que gostaríamos de expor estão aí.
Cicatrizes de treinamento
Hábitos ruins não intencionalmente adquiridos durante os treinos que fazemos ou participamos induzem a formações de cicatrizes de treinamento.
Essa explicação que fala da repetição dos hábitos ruins é a mais comum e difundida sobre as cicatrizes.
Acreditamos também que hábitos bons que tenham induzido boas técnicas e/ou trabalhado com elas para determinada ferramenta, quando usados para outra diferente, sem as adaptações cabíveis para o melhor aproveitamento, sejam também considerados assim.
Indo além, proibições ou procedimentos padronizados que dificultem muito as ações das Forças de Segurança, quando sedimentados no tempo, também podem gerar marcas.
Uma correlação exemplificativa entre as hipóteses e fatos pode ser feita para Newhall e para Norte Hollywood.
Recolhendo estojos no chão
O recolhimento de estojos no chão do estande várias vezes realizadas antes da recarga dos revólveres durante os treinamentos (todo o período de formação na Academia de Polícia na parte dedicada a armamento) com certeza contribuiu para a construção de um hábito ruim para os Policiais Rodoviários do Estado da Califórnia. Perdeu-se com isso aquela condição marcial de retorno ao combate de forma mais breve possível, quando por algum motivo a arma apresentasse qualquer interrupção no seu funcionamento. A limpeza do estande se sobressaiu à mentalidade de combate. Somado a isso ainda havia a proibição do uso de “speed loaders”, como já mencionado.
As narrativas sobre o episódio de Newhall são tantas que vários ainda dizem algo sobre estojos encontrados nos bolsos de algum dos Patrulheiros que deram a vida pela sociedade. Vários autores atualmente têm apontado isso como um mito, independentemente do procedimento de recolhimento e de vários outros terem sido abolidos na forma como eram feitos. Vejam o link seguinte sobre o que foi mencionado:
Outro detalhe que chamou a atenção dos estudiosos de casos e daqueles que se preocuparam em entender o que de bom poderia ser retirado daquele momento ruim foi a posição usada para o porte da espingarda de um dos policiais que tombou na situação de Newhall. Ao aproximar de um dos meliantes no carro a arma estava apoiada com a sua coronha no cinto e o seu cano para cima, em diagonal. Essa posição existe, mas seu contexto em estande é voltado para situações envolvendo segurança, não sendo apropriada durante aquelas circunstâncias.
A César o que é de César
A César o que é de César
Para a situação do tiroteio de Norte Hollywood traremos outro exemplo. Em algumas fotos podemos ver policiais barricados utilizando pistolas, mas como se estivessem empunhando revólveres. Acreditamos que por ser aquela uma época em que a maioria portava revólver há muito tempo e fizeram seus cursos de formação com esse tipo de armamento, as suas memórias musculares estavam condicionadas ao uso de revólver. Elas estavam cicatrizadas daquela forma. Situações de estresse elevado ou que exigem a execução de várias coisas ao mesmo tempo conseguem demostrar com bastante propriedade o que está sedimentado e o que necessita ser trabalhado.
Tiroteio de Norte Hollywood (Los Angeles Times).
O que temos visto em alguns treinamentos privados e na iniciativa pública
Imaginando um treinamento onde em sua maioria os disparos realizados tenham sido feitos de forma predominantemente estática, num alvo único e à frente dos atiradores, singularmente considerados, continuaremos o raciocínio.
Se considerarmos como realmente deve ser, sabendo-se que temos pelo menos, além do campo da visão central, mais três campos de visões periféricas (caminhando da visão central em direção as laterais – aproximada, intermediária e afastada), será que não estaria havendo um condicionamento quase exclusivo para uma visualização em visão central, reforçando uma visão de túnel e a criação de uma cicatriz nesse sentido?
Raciocinando de outra forma, se realizarmos treinamentos exclusivos de tiro, sem contextualizarmos isso a uma abordagem por exemplo, conseguiríamos nos ater ao papel da responsabilidade da função de cobertura ao invés de procurarmos um alvo exclusivo a nossa frente? São questionamentos que fazemos procurando uma reflexão conjunta com os amigos leitores.
O panorama nacional relacionado com o assunto
Temos visto uma crescente nas estatísticas nacionais de roubos a carros fortes, explosões em caixas eletrônicos e não poderíamos deixar de falar, de ataques orquestrados de maneira a sitiar cidades inteiras.
Um dos últimos nesse sentido foi o realizado em Criciúma, no Sul do país. Se dois bandidos fortemente armados demandaram cinco Forças de Segurança e mais de trezentos Operadores de Forças de Segurança como no tiroteio de Norte Hollywood, o que dizer das atuações à moda do Novo Cangaço por aqui?
A população aterrorizada em meio as explosões, as armadilhas com explosivos, uma série de atrocidades e não menos do que trinta bandidos. Houve quem falasse que os policiais deveriam agir de qualquer maneira, mesmo sem armas, sem proteção e equipamentos a altura. Os nossos heróis policiais agiram nas poucas janelas de oportunidade que apareceram, inclusive sendo alvos de disparos de tiros de fuzis. Um deles ficou um mês na UTI por conta do tiro que o atingiu. A ele e a todos os que nos defendem fica aqui a nossa breve homenagem e gratidão.
A coragem está em agir mesmo quando há medo. Agir em dada situação ou momento em que a morte é mais do que certa é estupidez!
As necessidades que vimos que fizeram ou que fariam a diferença em treinamento e equipamentos nos casos narrados também se aplicam, com muito mais vigor, aqui. Veículos blindados, armas em calibre de alta velocidade para todos, miras ópticas de ponto vermelho, proteção compatível com as armas utilizadas pelos meliantes, equipamentos específicos para primeiros socorros policiais, protocolos de ação e de primeiros socorros para a população civil…
Permaneça treinando, tenha bons hábitos e evite cicatrizes.
Agora que acabamos, recolham os seus estojos.