Recentemente, publiquei uma enquete em uma de minhas redes sociais. Foi uma consulta sobre a compreensão do significado do termo CALIBRE REAL, em relação às armas de ALMA RAIADA. No total, 2.080 pessoas participaram da pesquisa: 971 (47%) consideram calibre real a distância entre os fundos das raias, enquanto 1.109 (53%) classificam calibre real como a distância entre os cheios.
Para mim, o resultado não foi nenhuma surpresa. Essa divergência de opiniões já é notada, há muito, nas discussões nacionais sobre o tema. Vou compartilhar com vocês meu ponto de vista sobre esse dilema. Para tanto, precisamos revisar a origem desse conceito e, também, voltar algumas décadas no tempo para compreender o início dessa confusão.
Não tem como analisar esses conceitos sem trazer para a discussão a doutrina estrangeira. Temos que assumir que, historicamente, não há produção de conhecimento técnico, sobre armas de fogo, em nosso país. Boa parte da produção nacional tem como inspiração e referência conteúdos construídos em outros países. E, não raro, essas traduções acabam escorregando na falta de contextualização do conhecimento e gerando uma série de contradições.
Para a SAAMI¹, instituição normatizadora sediada nos EUA, a palavra “caliber” (calibre) tem 3 acepções:
- O diâmetro de um projétil
- O nome comercial de um cartucho
- O diâmetro da ALMA de um cano
Décadas atrás, nossos doutrinadores importaram esses conceitos, mas, para diferenciar o uso, resolveram dar sobrenomes ao calibre:
- O diâmetro do projétil passou a ser chamado de CALIBRE DO PROJÉTIL
- O nome comercial do cartucho virou CALIBRE NOMINAL
- E o diâmetro da ALMA ganhou o nome de CALIBRE REAL
Naqueles idos, havia um consenso entre os doutrinadores: CALIBRE REAL era, nas armas de alma raiada, a distância entre os cheios. Eraldo Rabello², na minha opinião, o maior doutrinador sobre armas de fogo nascido em solo tupiniquim, dizia que o calibre real corresponde ao diâmetro da ALMA do cano. O autor explicava que a ALMA dos canos das armas raiadas é, originalmente, lisa e cilíndrica. Essa alma é “[…] rebaixada, em toda sua extensão longitudinal e em intervalos regulares, por sulcos mais ou menos acentuadamente helicoidais – as raias […]”. Concluía ensinando que o diâmetro entre as raias, por conseguinte, é maior do que o correspondente às porções não rebaixadas, e são essas que continuam determinando o calibre real.
E fazia todo sentido! Considerando as primeiras metodologias de produzir raias, os cheios sobreviviam como os representantes legítimos da ALMA do cano, as raias são soluções acessórias, apenas incrementos, intervenções na alma do cano. Essa maneira de pensar coincide com os conceitos estipulados pela SAAMI e com praticamente toda doutrina norte-americana. Por esse motivo a SAAMI define calibre (“bore diameter”), o correspondente ao nosso calibre real, como o diâmetro aproximado do círculo formado pelos topos dos cheios de um cano raiado.
Já o diâmetro entre os fundos das raias (“groove diameter”), ele existe naquela doutrina, porém, é um conceito independente, não faz parte das acepções de calibre.
Mas por que, no Brasil, existe essa divergência?
Simples, até o início desse século, o entendimento de que calibre real era medido entre os cheios diametralmente opostos parecia pacificado. No entanto, em 2000, veio o Decreto 3.665 e trouxe consigo a seguinte definição para calibre: “medida do diâmetro interno do cano de uma arma, medido entre os fundos do raiamento; medida do diâmetro externo de um projétil sem cinta; dimensão usada para definir ou caracterizar um tipo de munição ou de arma”. E, em 2019, o Decreto 10.039, repetiu as mesmas classificações. A legislação passou a considerar o diâmetro entre os fundos das raias diametralmente opostas (“groove diameter”) como calibre, daí em diante não houve mais consenso sobre o assunto.
Como consequência dessas normativas, os próprios doutrinadores passaram a aceitar a legislação como referência conceitual. Domingos Tochetto, por exemplo, classificava CALIBRE REAL como a distância entre os cheios³, mas passou a considerar a distância entre os fundos das raias4. Uma parte dos autores contemporâneos5,6 parece preferir não discordar da lei, com a exceção de um, meu amigo João da Cunha Neto. No livro Balística Para Profissionais do Direito, João da Cunha Neto explica sua opção: “Se tomarmos em conta o processo fabril de um cano, em que o raiamento é esculpido a posteriori, o diâmetro do cano, é, na verdade, medido entre as partes originais do cilindro de aço, entre os cheios”.
Nessa semana, tive a satisfação de conversar com outros dois grandes amigos sobre o tema, o Luiz Gaspar e o João Bosco. Ambos justificaram suas escolhas no texto da Lei. Gaspar salientou ser pacífico o entendimento de que o calibre real é uma medida (diâmetro) e complementou explicando que a legislação não faz menção a nenhum conceito de medição entre os cheios do raiamento do cano.
Outro ponto destacado por Gaspar foi a possibilidade que o texto legal trouxe de unificar os conceitos de calibre do cano e calibre do projétil, o que, do seu ponto de vista, é positivo ao simplificar a doutrina. Por fim, Gaspar ressaltou que “Enquanto a legislação mantiver o conceito, não vejo outra opção além de considerar que calibre real é a medida entre os fundos”.
Qual o certo?
Na minha opinião, não tem certo ou errado. Nomenclaturas são formalidades, convenções para representar algo. Nesse sentido, as tolerâncias são enormes. O que não tira a importância da etimologia e da contextualização histórica geral. Pois, acredito que quanto maior a coerência (seja etimológica, técnica e/ou histórica geral) entre as partes, maior será a tendência de pacificação e consolidação doutrinária.
Se eu tivesse que escolher uma opção?
Se eu fosse obrigado a descer do muro, eu ficaria com a “rebeldia” do João da Cunha Neto e pularia para o lado que defende aferir o calibre real medindo a distância entre os cheios, ainda que contrariando a legislação.
(1) www.saami.org
(2) Eraldo Rabello | Balística Forense | 1º Volume | 1982
(3) Domingos Tochetto | Balística Forense: aspectos técnicos e jurídicos | 1999
(4) Domingos Tochetto | Balística Forense: aspectos técnicos e jurídicos | 2018
(5) Luiz Gaspar R. Mariz | Anotações Sobre a Doutrina Policial | Volume 2 | 2019
(6) João Bosco Silvino Junior | Balística aplicada aos locais de crime | 2018
(7) João da Cunha Neto | Balística para profissionais do Direito | 2020
Imagem: X-Caliber