Era novembro de 2001, no movimentado bairro de Harrow, Londres, quando policiais cercaram a casa na qual um homem armado abrigava-se. Após agredir a esposa, Michael Malsbury, de 62 anos, portanto um revólver, trancou-se em um quarto e recusava-se a sair. Talvez para parecer mais perigoso, disse estar com uma pistola Glock 9mm. A polícia manteve o cerco e as negociações duraram cerca de dez horas. Michael não cedeu. Pelo contrário. Em certo momento teria dito que “é melhor pegarem suas armas, estou saindo” e atirou contra os policiais. Foi alvejado, e morto. No local havia munições e duas cartas de suicídio. Posteriormente, o tribunal reconheceu o caso como tendo sido um suicídio1. Ou melhor, um suicide by cop.
O caso parece guardar algumas semelhanças – embora com divergências claras – com o que ocorreu com o policial militar Wesley Soares Goes, em março do ano passado. Após mais de 3 horas de negociação, Wesley, que portava um fuzil e já havia disparado para o alto, disparou contra a equipe policial. A equipe, então, precisou alvejá-lo. Ressalvados possíveis transtornos psiquiátricos, é razoável supor que Wesley sabia do seu lamentável destino quando decidiu atirar contra a polícia2. Findadas as investigações, é possível que revele-se como um caso nacional emblemático – e triste – de suicide by cop.
Suicide by cop em tradução literal significa algo como “suicídio através do policial”, e descreve um fenômeno há muito observado nos Estados Unidos. Pode ser definido como a morte decorrente da ação policial motivada pelo comportamento ameaçador do sujeito, que pretende ser morto. Há a intenção de ser morto, mas quer-se que seja pela ação policial. É por vezes controverso e difícil de classificar no caso concreto, pois necessita da inferência de aspectos subjetivos do criminoso através da compreensão de elementos objetivos da realidade.
Categorias
Há ao menos duas formas ou categorias para ocorrências deste tipo:
- Quando o indivíduo comete o crime ou a ação criminosa esperando ser morto. Ou seja, é uma ação premeditada e que tem como finalidade a morte daquela forma;
- Outra possibilidade ocorre quando o indivíduo comete um crime qualquer e, ao perceber que não há alternativa à prisão, opta, naquele contexto e cenário, pela morte. Neste caso, é uma decisão tardia na prática criminosa.
O primeiro caso é premeditado, quando a pessoa comete um crime já pensando no desfecho da sua morte. Talvez porque não consiga ou não queira praticar os atos efetivamente suicidas, provoca a polícia para que o faça. A decisão suicida ocorre antes da prática do crime, sendo este o meio para aquela. Alguns casos de atiradores ativos, ou active shooters, podem ser exemplos. O segundo é uma decisão postergada, tomada por vezes no contexto da ocorrência quando a pessoa prevê o indesejado resultado da sua prisão. Ao ver frustrado o sucesso do seu intento criminoso pela atuação da polícia opta, então, pela morte.
O suicídio por meio da atuação policial necessita do entendimento das técnicas e táticas policiais. Ocorre porque a pessoa sabe quando, dentro da doutrina de uso da força, os policiais estão legitimados e decididos a usar a força letal contra elas. Pode ocorrer quando aponta-se uma arma de fogo real ou um simulacro contra pessoas ou a própria polícia, efetua disparos potencialmente letais, ameaça utilizar explosivos ou, ainda, intenta com uma faca contra terceiros ou até mesmo contra a equipe policial.
Algumas estatísticas
Estima-se que um percentual significativo das mortes perpetradas pela polícia enquadrem-se nesta categoria. Após analisarem casos de tiroteios investigados pelo Los Angeles County Sheriff’s Department, entre 1987 e 1997, Hutson e outros pesquisadores estimaram que cerca de 11% dos homicídios envolvendo policiais foram, na verdade, suicídios deste tipo3. Outro estudo, conduzido por Mohandie e outros, analisou 707 casos e concluiu que, dos tiroteios envolvendo policiais, 36% tinham características que sugeriam ser suicídios por policiais4.
Tomando estes percentuais como parâmetro, no Brasil, isso significaria que algo entre 357 (11%) e 1.168 (36%) das pessoas mortas pela polícia em serviço no ano de 2018 (total de 3.2455) poderiam estar nestes casos: de suicídio por meio da atuação policial. Números bastante significativos.
E então?
Mas, porque isso importa?
Primeiro, porque vê-se a necessidade de as equipes policiais estejam preparadas para o gerenciamento de crises, e familiarizadas com conceitos de contenção, isolamento e estratégias de desescalação. Alguns cenários e contextos não permitem que a crise seja devidamente contida e revertida sem maiores prejuízos. Outros, sim. Atentar para a segurança da equipe e de terceiros, bem como manter distâncias seguras, em especial quando o agressor possui uma faca, pode ser a diferença entre o sucesso e o fracasso da missão.
Segundo, a sociedade e os órgãos de justiça precisam conhecer e entender melhor o fenômeno conhecido por suicide by cop. Seu desconhecimento pode afetar a percepção do que pode estar ocorrendo em muitos casos quando fala-se em letalidade policial. Os mesmos números podem por vezes ser compreendidos de forma diversa. Sim, é possível que em muitos casos o policial que aperta o gatilho tenha sido apenas um instrumento para o intento suicida do criminoso. E é apenas compreendendo estas possibilidades que me parece que pode haver justiça com o que ocorre na realidade da árida e complexa atividade policial.
- 1‘Suicide by cop’ verdict makes legal history, The Irish Times, 2021.
- 2O que se sabe e o que falta saber sobre o caso do PM morto após atirar contra policiais em Salvador, G1 – Bahia, 2021.
- 3Suicide by Cop, Annals of Emergency Medicine, 1998.
- 4Suicide by Cop Among Officer-Involved Shooting Cases, Jornal of Forensic Sciences, 2009.
- 5Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, tabela 08, pg. 56.