Foto por Humberto Wendling
Discute-se bastante no meio policial sobre o uso da força letal na autodefesa, mas uma ideia surge quase universalmente. É o conceito chamado Síndrome do Tiro na Perna. Essa síndrome é expressa pelas opiniões do tipo: “Eu não vou atirar para matar, mas vou mirar na perna do bandido!”; “Precisava matar com três tiros no peito? Por que não atiraram na perna?”*.
Acredito que tais pensamentos tenham origem na boa índole daqueles que possuem armas para a defesa, mas nunca imaginaram com seria um tiroteio com um criminoso nem o que fariam se tivessem que atirar em alguém. Essas boas pessoas não saem por aí roubando, sequestrando ou matando as outras, elas nem mesmo pensam ou querem fazer algo parecido. Outra origem é a crença equivocada daqueles que não estão presentes quando a violência ocorre, mas que não deixam de emitir um parecer baseado em filmes de ação e não nas circunstâncias que envolvem um confronto.
Assim, aquele criminoso que apontava uma arma para um inocente, agora que está morto, é transformado em vítima por aqueles que acreditam que o policial deveria ter atirado na perna. Os papéis se invertem: o bandido vira mocinho e o policial vira executor.
Existem muitas razões para o porquê desse “conceito” não ser plausível no campo da autodefesa ou sobrevivência policial. Algumas dessas razões são jurídicas, algumas são táticas e outras são morais.
Razão jurídica
Uma arma de fogo é um instrumento letal por natureza. Diferente duma granada de efeito moral, um spray de pimenta, uma tonfa ou um Taser, não existe um modo menos letal de usar uma arma de fogo. A lei não faz distinção entre um tiro na cabeça ou um tiro no peito de uma pessoa. Se a ação do suspeito colocar você sob risco de grave ferimento físico ou morte, o uso da sua arma para repelir essa agressão e preservar sua vida é um motivo justificável.
Razão tática
O projétil não pode ser trazido de volta depois que deixa o cano da arma, e o que ele faz ao penetrar o corpo duma pessoa não pode ser determinado pelo policial. Existem grandes vasos sanguíneos nas pernas, nos quadris e nos ombros dum ser humano, que uma vez atingidos podem matar tão rapidamente quanto um tiro no coração.
Manusear taticamente uma arma sob condições de estresse é muito difícil, pois não há tempo para raciocinar, muito menos para mirar com precisão para acertar uma parte específica do corpo (com perícia sobrenatural para desviar o projétil de estruturas corporais importantes).
Pergunte a si mesmo: é possível determinar perfeitamente se você está ou não amparado pela legítima defesa, e fazer pontaria com precisão durante uma situação de vida ou morte que leva poucos segundos para começar e terminar?
Informações sobre confrontos armados indicam que um policial acerta um em cada seis tiros disparados contra o alvo. Isso produz cerca de 17% de aproveitamento, e se já parece ruim, espere até você analisar outro dado que demonstra que aproximadamente 50% dos tiroteios ocorrem em distâncias de até 1,50 m entre o policial e o suspeito. Outros 20% ocorrem em distâncias entre 2 e 3,40 metros.
Assim, não importa quantos disparos sejam feitos, você vai errar a maioria deles, mesmo à queima roupa. Então, quão realista seria se muitas das pessoas que tiveram a sorte de acertar o criminoso em ação tivessem que calmamente mirar e disparar contra uma das menores partes do corpo? E se essa área ainda tivesse grande chance de estar em movimento?
A academia e a prática
A prática policial ainda ensina os alunos a realizarem dois tiros no centro do alvo a 7 metros de distância e em 2 segundos. Só para constar, na década de 80, Dennis Tueller informou que um homem, com o caminho livre, podia percorrer, 6,4 metros em 1,5 segundo. Então, quanto tempo sobraria para a visada perfeita na perna, no braço ou no ombro? Nenhum.
De qualquer maneira, a prática nas academias envolve dois conceitos. O primeiro refere-se ao centro de massa, significando apontar a arma para que o projétil vá de encontro à área mais ampla do alvo (o tronco) e, obviamente, em cujo local as chances de acerto são maiores. O segundo diz respeito à possibilidade de se atingir órgãos internos localizados nessa área que permitam uma maciça perda de sangue, levando à inconsciência e à incapacitação.
A intenção de incapacitar, em nada tem haver com atirar para matar ou mirar para ferir, pois ambas são irrelevantes. Sua ação de autodefesa está centralizada na percepção de ameaça grave e na capacidade do criminoso matar ou tentar matar você. Se a simples presença da sua arma detiver a intenção do delinquente, o trabalho está feito! Se apenas um tiro no centro de massa persuadir o atacante a desistir, está ótimo! Contudo, se forem precisos 10 tiros pelo corpo para impedir que um criminoso mate você, então que seja!
Questão moral
Eu não estou defendendo o uso da força letal como forma de punição para criminosos. O que estou dizendo, é que você é uma pessoa sensata, com um inalienável direito à vida e à liberdade e que vive pacificamente. E então, alguém o ataca, tenta feri-lo ou matá-lo sem nenhuma razão a não ser com o interesse de tomar aquilo que é seu. Você não está tentando matá-lo, apenas tentando fazê-lo parar. E isso não é errado, é certo! Você tem o direito de fazer o que for necessário para estar a salvo, voltar para casa e para sua família. Mas se você esperar até conseguir a pontaria perfeita e “não letal”, talvez seja tarde demais para você!
*Pergunta feita por um parente de J.F.S., morto por policiais da ROTA paulista, conforme artigo denominado “Rota mata rapaz que roubou R$ 11”.