Por João Bosco Silvino Júnior
Qual foi a primeira vez que você viu a cena de um confronto armado? Certamente foi em um filme, não? Isso é o que acontece com a maioria absoluta das pessoas. Desde a infância somos influenciados pelos conteúdos que assistimos na TV e nos filmes. Acreditamos que animais falam, super-heróis voam e que o bem sempre vence. Quando crescemos um pouco e começamos a assistir filmes de ação, ficamos admirados com a habilidade do herói em sempre acertar os tiros, na dinâmica do combate, geralmente muito bem coreografado, e no impacto sentido quando alguém é atingido por um tiro, geralmente tanto maior quanto maior for a dramaticidade do momento.
Os filmes criam um modelo mental nas pessoas que é levado por toda a vida, muitas vezes sendo difícil substituí-lo por um modelo mais realístico. Os mitos criados e nutridos pelos filmes contaminam o imaginário popular, trazendo danos que podem ser irreversíveis, como por exemplo a morte de alguém que acreditava que o seu oponente seria prontamente incapacitado se fosse atingido por um tiro, ou a condenação indevida de uma pessoa que agiu em legítima defesa porque o delegado, promotor ou juiz tinham na cabeça o modelo de confronto importado dos filmes, no qual um tiro arremessa uma pessoa para trás, tornando injustificável a necessidade de mais de um tiro em confronto. É sobre esses mitos que vamos tratar neste artigo.
O mito do impacto de tiro
Abrindo a coleção de mitos, vamos primeiro tratar de um clássico dos filmes: o impacto de tiro. Desde os mais antigos filmes de faroeste, passando pelos clássicos de Charles Bronson, até o atual John Wick, Hollywood sempre retratou de maneira (muito) exagerada o impacto de uma pessoa sendo atingida por um tiro. Em alguns casos, a pessoa alvejada é arremessada metros para trás, como se a terceira lei de Newton, ação e reação, não existisse! Esse mito faz com que as pessoas acreditem que alguém alvejado por um tiro sente um impacto como um soco, algo que a empurra para trás, quando isso não é verdade!
O relato mais consistente das pessoas atingidas por tiros é que simplesmente não sentiram que foram atingidas! Como exemplo, cito dois casos bastante conhecidos: o caso do Deputado Cid Gomes, atingido no peito por dois tiros quando tentou invadir um quartel da PM com uma retroescavadeira e o caso do Delegado Paulo Byllynskji, atingido por seis vezes em uma situação domiciliar. Em ambos os casos o relato é o mesmo. Tanto Cid Gomes quanto Byllynskji disseram que não sentiram nada e só perceberam que foram alvejados quando viram o sangue decorrente dos ferimentos.
Um tiro e um tombo: o mito da incapacitação imediata
Andando de braço dado com o mito do impacto de tiro, outro conceito erroneamente tratado nos filmes é a incapacitação imediata. Nos filmes nós (des)aprendemos que uma pessoa sempre cai incapacitada imediatamente ao ser atingida por um tiro! Não que isso não aconteça na vida real, mas é algo que só é observado quando uma região específica é atingida, a saber, o SNC (Sistema Nervoso Central) ou algum ponto da coluna, especialmente se for na região cervical. Se o tiro não atinge essas regiões, a incapacitação NÃO É imediata e pode levar segundos ou até minutos para acontecer! Ou nem mesmo pode acontecer!!! É o que sempre mostro nos meus cursos de Balística de Combate! O velho triângulo da incapacitação balística: Localização, Penetração e Diâmetro da Lesão.
O herói sempre acerta os tiros
É impressionante! O índice de acertos dos heróis nos filmes é altíssimo! Muitas vezes, em uma cena de ação, vários criminosos são atingidos por um único atirador, geralmente o personagem principal, e como já vimos, tombam imediatamente! Basta um tiro para derrubar os bandidos e TODOS os tiros são certeiros! Muitas vezes o atirador não está nem olhando para o alvo mas, mesmo assim, acerta em cheio! Um filme clássico que mostra cenas assim é o histórico “Comando para matar”, com Arnold Schwarzenegger. Ele combate um exército em uma ilha, atira com um braço só e mesmo assim mata todo mundo! Mas… será que os confrontos reais contam a mesma história?!
Para responder a essa pergunta, uma excelente ferramenta é o relatório LEOKA (Law Enforcement Officers Killed and Assaulted) elaborado pelo FBI:
Observando as tabelas acima é possível notar que o índice de acertos em combate, para os policiais americanos, é muito baixo, apesar de, tanto na formação quando já em atividade, o número de tiros por aluno, durante os treinamentos, ser consideravelmente superior ao observado no Brasil. O índice de 18,3%, ou seja, menos de 20%, indica que a cada cinco tiros efetuados em confronto, o policial americano, em média, acerta apenas um. É um índice muito baixo, mas explicado pelo fato de, em confronto, o policial estar em movimento, o alvo estar também em movimento e o alvo atirar no policial. Isso faz com que os resultados em confronto sejam muito diferentes dos resultados no estande de tiros.
O mito do ferimento de tiro e do jorro de sangue
Outro efeito frequentemente observado nos filmes é o tamanho dos ferimentos de tiro e o jorro de sangue produzido quando a vítima é atingida. Os filmes exageram, e muito, no tamanho das lesões de tiro. Exagera mais ainda no jorro de sangue decorrente da produção da lesão. Não que não saia sangue algum quando a lesão é produzida, porém essa quantidade de sangue é sensivelmente menor do que o observado nos filmes.
Apesar de não condizer com a realidade, esse mito é até compreensível, em virtude da licença poética necessária para ilustrar que a pessoa foi atingida. Se os filmes retratassem a realidade, não veríamos graça alguma, já que não seria possível ver se a pessoa realmente foi atingida pelo tiro. Os ferimentos de entrada de tiros, principalmente de calibres de baixa velocidade, apresentam dimensões muito reduzidas, geralmente menores até que o diâmetro do projétil, em função da elasticidade da pele. Mesmo no caso das munições expansivas, as míticas “balas dum-dum”, não vemos o efeito que o mito propala, nem na entrada, nem na saída.
Ferimentos de tiro podem até mesmo passar despercebidos, não sendo raros os casos que apresentam pouco ou nenhum sangramento, seja porque a área atingida é pouco vascularizada, seja porque em algumas pessoas o tecido adiposo consegue tamponar o orifício, impedindo o sangramento ou, ainda, porque o sangue tem para onde fluir para cavidades internas do corpo, não resultando em sangramento externo.
Consequências
Em suma, são muitos os mitos acerca dos confrontos armados e dos resultados dos tiros propalados nos filmes e novelas. Isso faz parte desse mundo, que precisa lançar mão da licença poética para trazer mais emoções às cenas. O problema é quando transportamos a licença poética para a realidade, auxiliando na formação de opiniões deturpadas das pessoas acerca dos confrontos. Essa visão deturpada chega aos tribunais, e aos advogados, promotores e juízes, que muitas vezes tomam decisões baseados nas convicções que formaram a partir da fantasia dos filmes, ao invés de buscarem conhecimentos reais em cursos e no contato com o dia-a-dia dos policiais.