As regulamentações sobre armas de fogo no Brasil têm passado longe de se assentar em critérios objetivos e que confiram segurança jurídica aos seus proprietários, o que, lamentavelmente, se estende também aqueles que praticam esportes com esses artefatos ou os têm para a finalidade de caça ou coleção – os Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CAC). E um dos pontos que continuam suscitando mais controvérsia a respeito dessa temática é a existência, ou não, de um direito irrestrito de transporte das armas de acervo quando desmuniciadas.
Atualmente, diante do quanto prevê o Decreto nº 9.846/19, não há dúvida de que, cuidando-se de porte de trânsito municiado, isto é, com a arma em condição de pronto emprego, há vinculação ao “deslocamento para treinamento ou participação em competições” (art. 5º, § 3º), mas, tratando-se de circulação com armas desacompanhadas de munição, será que haveria também limitações quanto a trajetos ou finalidade?
A resposta a esse questionamento remete aos termos do próprio Decreto nº 9.846/19, que regulamenta a Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento) para Colecionadores, Atiradores e Caçadores e que, em seu art. 5º, § 2º, estabeleceu um direito apartado do porte de trânsito para esta categoria, com a seguinte previsão:
“Art. 5º……………
(…)
§ 2º Fica garantido o direito de transporte desmuniciado das armas dos clubes e das escolas de tiro e de seus integrantes e dos colecionadores, dos atiradores e dos caçadores, por meio da apresentação do Certificado de Registro de Colecionador, Atirador e Caçador ou do Certificado de Registro de Arma de Fogo válidos.”
Tratava-se de um direito apartado porque, pela mesma norma, foi também conceituado o próprio Porte de Trânsito, com a expressa previsão de que este se materializa pela Guia de Tráfego. Vale conferir o que dispõem sobre o tema o art. 2º, XIII, e o art. 5º, § 4º, do Decreto nº 9.846/19:
“Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:
(…)
XIII – porte de trânsito – direito concedido aos colecionadores, aos atiradores e aos caçadores que estejam devidamente registrados no Comando do Exército e aos representantes estrangeiros em competição internacional oficial de tiro realizada no País, de transitar com as armas de fogo de seus respectivos acervos para realizar as suas atividades”.
“Art. 5º ………………………………………..
(…)
§ 4º A Guia de Tráfego é o documento que confere a autorização para o tráfego de armas, acessórios e munições no território nacional e corresponde ao porte de trânsito previsto no art. 24 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003”.
Logo, observando-se fielmente as disposições normativas de regência, se o transporte desmuniciado previsto no § 2º do art. 5º expressamente não exigia a Guia de Tráfego, ali simplesmente não se poderia tratar de Porte de Trânsito – que, não só a exige, como com ela se confunde.
Sinteticamente, portanto, o Decreto nº 9.846/19 estabeleceu duas prerrogativas distintas para os CAC: o transporte desmuniciado (com CR ou CRAF, mas sem necessidade de Guia de Tráfego) e o tradicional Porte de Trânsito (com a Guia de Tráfego).
Como consequência dessa distinção conceitual, surgiu, acertadamente, a compreensão de que, se o transporte desmuniciado não era Porte de Trânsito (por não exigir GT), e somente este último traz em seu conceito, como destinação, permitir ao CAC “realizar as suas atividades”, esta limitação àquele não se aplicava, ou seja, o transporte desmuniciado não estava condicionado aos deslocamentos do CAC para qualquer atividade específica, sendo, sim, um direito amplo e irrestrito de circulação com a arma em tal condição.
Sucede que essa disposição durou muito pouco em nosso ordenamento jurídico.
Isso porque, com o advento do Decreto nº 10.030/19 (aprovando o Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados), todo o deslocamento de Produto Controlado pelo Exército (PCE) passou a exigir o acompanhamento pela Guia de Tráfego, como deixa patente o art. 82 da aludida norma:
“Art. 82. A pessoa que transportar PCE deverá portar a guia de tráfego correspondente aos produtos, desde a origem até o seu destino, e ficará sujeita à fiscalização em todo o trajeto.”
Armas de fogo, por expressa disposição do Anexo I da Portaria nº 118 do COLOG, de 04 de outubro de 2019, publicada com lastro no art. 4º do mesmo Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados, são conceituadas como PCE (Tipo 1), do que se extrai que sua circulação, na regulamentação vigente e ressalvados os casos de autorização expressa de porte geral, somente é admitida quando acompanhada da respectiva Guia de Tráfego.
Consequentemente, sendo a Guia de Tráfego nada mais do que o documento que materializa do Porte de Trânsito, torna-se forçosa a compreensão de que, hodiernamente, o único direito de circulação das armas de Colecionadores, Atiradores e Caçadores é mesmo este, justamente como previsto nos arts. 9º e 24 da Lei nº 10.826/03, não mais subsistindo o inovador – e contestável¹ – direito amplo ao transporte desmuniciado.
Não custa registrar que, se tal direito havia sido criado por um decreto (Dec. 9.846/19), sobrevindo outro decreto com disposição diferente sobre a mesma matéria (exigindo a GT), aquele se torna revogado (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 2º, § 2º, segunda parte).
Assim, nesse cenário regulatório, se o direito ao transporte desmuniciado, trazido com o Decreto nº 9.846/19, culminou por ser derrogado pelo Decreto nº 10.030/19, que consagrou a Guia de Tráfego como indispensável à circulação de PCE, há também de se concluir que todo o transporte de produtos desta natureza pelos CAC há de observar o conceito de Porte de Trânsito que o autoriza, isto é, sendo imperativo que o deslocamento se destine a “realizar as suas atividades”.
Note-se que a norma legal não menciona “trajeto” ou “itinerário” específico para conceituar o Porte de Trânsito, como muitos insistem em exigir. O que é necessário é a vinculação do deslocamento à atividade desportiva, seja ela qual for, isto é, que de alguma forma o deslocamento do Atirador com a arma, mesmo desmuniciada, esteja vinculado à sua prática esportiva, seja um treinamento, uma competição ou, até mesmo, uma atividade secundária, como a manutenção. O que não se permite é que, valendo-se da condição do armamento como desmuniciado, o atirador com ele circule para finalidades integralmente alheias à prática desportiva.
¹ Se a norma de maior hierarquia (Lei nº 10.826/03) não previa qualquer outro direito para os CAC que não o porte geral de arma (art. 6º, IX) e o porte de trânsito (arts. 9º e 24), a criação do direito ao transporte desmuniciado por decreto não se afigurava válida.