
“As Leis que proíbem o porte de armas, desarmam apenas aqueles que não são inclinados e nem determinados a cometer crime”
— Cesare Beccaria, 1764
Inicio meu texto com o que é para mim, até hoje, a frase mais verdadeira em relação às Leis de Desarmamento.
Em linhas gerais, o desarmamento civil sempre foi a maneira pela qual os governos autoritários procuram se proteger dos governados.
Lá pelos idos de 1991 eu, com 25 anos de idade e recém saído da Academia de Polícia, assumia como Delegado de Polícia do Estado de São Paulo uma das equipes de plantão de polícia judiciária na cidade de Francisco Morato. Por ser, à época, uma das várias cidades dormitório da Grande São Paulo, atendíamos muitos furtos a residências, casos de violência doméstica (principalmente nos finais de semana), lesões corporais e homicídios.
Em 1994, após a morte de um influente comerciante local, a prefeitura de Francisco Morato em parceria com uma ONG e com apoio do Governo Estadual e Secretaria da Segurança Pública do Estado, realizaram aquela que seria talvez a primeira campanha de desarmamento no Estado de São Paulo, onde armas foram entregues pela população em troca de cestas básicas. Obviamente que para engrossar os números alguns facões e outros tipos de armas brancas também foram recebidos. Com a devida pompa, as armas entregues foram sepultadas em uma praça da cidade onde foi erigido um pequeno marco.
De concreto nada constatamos de mudança em nossos plantões, pois os homicídios, roubos e furtos continuaram a acontecer sem que nenhuma diferença pudesse ser sentida por nós que estávamos na linha de frente da segurança pública local.
Importante notar que antes da Lei 9437/97, apenas o porte ilegal de arma era tratado como delito, mais precisamente como Contravenção Penal e a simples posse de arma ilegal ocasionava somente apreensão do armamento.
O artigo 19 da LCP retratava assim o porte ilegal de arma:
“Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade:
Pena – prisão simples de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, ou multa, ou ambas cumulativamente.”
O indivíduo preso em flagrante de porte ilegal de arma de qualquer calibre ou tipo era autuado em flagrante e, caso não contasse com condenação criminal anterior, era colocado em liberdade após o pagamento de fiança.
Após isto a posse e o porte ilegal de armas como delitos passeiam por vários tratamentos legais, indo de crime de menor potencial ofensivo (Lei 9099/95), para crime comum através da Lei 9437/97, em 2001 volta a ser tratado como infração de menor potencial ofensivo por força da Lei 10259 e daí para crime hediondo em apenas mais uma canetada (Lei 13497/17, referente porte e posse de arma de calibre restrito), até que as novas classificações de calibres restritos e permitidos sofressem as alterações da era Bolsonaro.
Como podemos verificar a vida de policiais e do cidadão de bem no Brasil não é fácil, aqui você dorme cidadão e acorda criminoso.
Com Leis Penais redigidas, aprovadas e promulgadas ao sabor das circunstâncias temporais e ideológicas de cada momento histórico fica difícil para a sociedade saber o que realmente dá certo em relação às políticas de segurança pública.
O que sei como testemunha histórica de toda essa sopa de letrinhas legal, é que o desarmamento civil não serve como medida de segurança pública, pois coloca o cidadão sob a tutela de um Estado omisso e descompromissado verdadeiramente com a proteção da sociedade.
Após a famigerada “Lei do Desarmamento”, muito foi dito pelo mundo afora a respeito da queda do número de homicídios no Estado de São Paulo. Já no Departamento de Homicídios, para onde fui em 2009, presenciei a visita de delegações de policiais de outros países e de Organizações Internacionais que procuravam saber mais a respeito da nossa milagrosa queda no número de homicídios. Embora o DHPP e as forças policiais Paulistas sejam respeitados por todos e possuam méritos inegáveis no combate à criminalidade, sabemos que possuem deficiências e que há tempos a segurança pública não é levada a sério por nossos governantes, sendo que a queda nos homicídios paulistas tem mais a ver com o rígido controle que os grupos criminosos exercem sobre seus afiliados, pois homicídio é um crime que gera uma atuação mais intensa da força policial, gerando inconvenientes e atenção indesejada nas “biqueiras” e em cima dos líderes criminosos locais, coisa que não interessa para a cúpula do crime pois significa menos atividade criminosa e menor lucro consequentemente. Prova disto é que a principal organização criminosa de São Paulo exige “julgamento” dos faltosos e só admite a execução (“decreto”) de algum desafeto após a autorização da liderança local, sendo os executados enterrados em “cemitérios” clandestinos o que impossibilita o encontro do cadáver, localização de testemunhas, coleta de provas e a respectiva investigação policial. Aqui vale salientar que a investigação policial é meio crucial para a redução do número de homicídios, mas, atualmente no Estado de São Paulo, temos hoje menos policiais civis do que quando entrei para a instituição em 1990, o que impossibilita a prestação de um serviço de excelência.
A redução nos índices criminais só ocorrerá quando o país dispor de uma legislação que auxilie e desburocratize a investigação policial na coleta de provas, que proteja as testemunhas e vítimas de crimes, que realmente mantenha criminosos perigosos presos para a manutenção da ordem pública e que reforme as policias estaduais, principalmente a polícia judiciária que há décadas amarga o descaso total dos governos estaduais e precisa de revitalização, novas contratações e investimentos em tecnologia.
Já como consultor de segurança desde o final de 2016, tive a oportunidade de visitar alguns outros estados brasileiros tais como Minas Gerais, Mato Grosso, Pernambuco e Brasília, onde pude conversar com vários policiais que me relataram o que um Delegado da cúpula da Polícia Civil de Mato Grosso muito bem definiu como “efeito Bolsonaro”, ou seja, como vários índices criminais despencaram logo após a posse de nosso atual Presidente, o que demonstra como uma política mais rígida de combate ao crime, mesmo antes de ser implantada, já infunde temor nos criminosos.
Em vista deste cenário tenho para mim que o desarmamento como objeto de política criminal é totalmente ineficaz pois existem graves problemas com todo o aparato do sistema de justiça criminal a serem resolvidos com urgência. O cidadão brasileiro não pode ser largado indefeso enquanto o Estado bate cabeça no combate ao crime. A decisão de ter ou não uma arma deve ser pessoal e o Estado deve somente registrar a posse e o porte de acordo com leis claras e básicas, evitando usar a burocracia como meio de desarmamento oficioso e deve ainda apoiar o uso legal da arma como meio de promoção da auto defesa, do desporto ou do lazer, bem como deve ser implacável e severo na punição à criminalidade armada.