Muito tem sido falado nos últimos anos sobre treinamento force-on-force ( força contra força, em uma tradução livre) e suas vantagens para a atividade policial em termos de realismo e qualidade da aprendizagem. A verdade é que esse tipo de treinamento é feito há décadas no Brasil, mas com um nome mais simplório apenas de “Simulação”. A grande questão é: com qual seriedade técnica ele quase sempre foi feito? O que o atual entendimento sobre force-on-force tem de revolucionário?
A descoberta constrangedora de SLA Marshall
Durante a Segunda Guerra Mundial, um historiador e jornalista militar, Brigadeiro General S.L.A Marshall, realizou um estudo que iria mudar drasticamente o treinamento militar nos Estados Unidos. No livro “Men Against Fire: The Problem of Battle Command” (1947) ele relata a constatação de que no máximo um em cada quatro combatentes de infantaria realmente disparou sua arma quando em contato com o inimigo. Ele produziu relatórios com recomendações de mudanças no desenho do treinamento para atingir maiores taxas de disparo nas batalhas e isso alterou profundamente a maneira de treinar soldados para as guerras.
Ele observou, por exemplo, a necessidade de treinar tiro utilizando alvos em formato humanoide, pois todo o treinamento com armas de fogo era realizando com alvos do tipo olho de boi (alvo voltado para treinamento da precisão). Nascia então uma preocupação em tornar o treinamento psicologicamente compatível com a batalha. Essa preocupação com o treinamento militar, após a segunda guerra mundial, talvez seja um marco fundamental para entender o surgimento do Reality Based Training (treinamento baseado em realidade), outro nome para o Force-On-Force.
Do treinamento de guerra ao treinamento policial
A dinâmica da guerra no século XX teve grandes transformações, passando de grandes batalhas entrincheiradas entre estados-nação com chocantes taxas de mortalidade dos combatentes até os chamados conflitos de baixa intensidade (típicos da guerra ao terror), desenvolvidos em ambientes urbanos, contra opositores não estatais em meio à população não combatente e que demandam altíssimo nível de planejamento tático, preparação técnica e análises legais das forças armadas, apesar de números bem menores de baixas.
Isso provocou a demanda por um treinamento cada vez mais complexo e compatível com a realidade da atuação eficiente sob estresse. As demandas passaram a não ser apenas de iniciativa em combate, mas de tomada de decisões complexas em ambientes de incerteza altamente dinâmicos. Algumas metodologias de capacitação, como a Inoculação de estresse, citada por Dave Grossman em sua obra “On Combat” (2008), ou o Stress Exposure Training, citado por Driskell em seus artigos, se tornaram o novo normal nos treinamentos militares dos Estados Unidos.
Com o crescimento da violência em vários estados americanos, os departamentos de polícia começaram a demandar treinamentos cada vez mais condizentes com a realidade da atuação policial verificada nas ruas. Os registros sobre confrontos armados mostravam que os policiais envolvidos em tiroteios chegavam a acertar menos de 20% dos disparos que realizavam, mesmo em departamentos onde grandes quantias eram gastas em treinamento de tiro. O problema era parecido com o que S.L.A Marshall identificou no treinamento dos soldados: o que era visto no treinamento não tinha nenhuma correspondência com o que acontecia na batalha. Não havia fidelidade física nem psicológica. Foi nesse contexto que nasceram as primeiras iniciativas metodológicas de treinamento simulado.
Treinando na velocidade da vida
A implementação de novas tecnologias para treinamento foi o que faltava para que o force-on-force virasse uma febre nas polícias norte americanas. Empresas como a SIMUNITION e UTM desenvolveram soluções eficazes como os conversores para armas Non Lethal Training-NLT (Armas não letais para treinamento), que basicamente são adaptadores que transformam a arma real em uma arma que dispara projeteis de tinta. Isso possibilitou o desenvolvimento de cenários de treinamento super realistas e que mostravam que saber atirar em um estande de tiro era totalmente diferente de atirar em um confronto armado. Isso mudou técnicas, protocolos e enterrou conceitos equivocados sobre o comportamento tático em ocorrências críticas.
Um livro que considero a síntese teórica do que se trata o treinamento baseado em realidade é o “Training at the Speed of Life” (2006), escrito por Kenneth R. Murray, um dos fundadores da empresa SIMUNITION na década de 80. Ele começa abordando um aspecto constantemente negligenciado ou mal interpretado pelas instituições policiais em seus treinamentos: Os efeitos do estresse. A partir de uma análise detalhada de como o estresse atua no corpo e na mente humana, afetando as habilidades motoras finas e complexas, a habilidade cognitiva, provocando distorções de percepção visual e auditiva, tornando muito difíceis uma série de ações que parecem simples nos filmes, o livro começa a guiar o leitor através de um conjunto de princípios do treinamento que embasam a seriedade com que devem ser realizadas as simulações para capacitação policial.
O que é force-on-force, afinal?
De maneira geral, Reality based training-RBT e force-on-force-FoF são a mesma coisa: um treinamento baseado em simulações de situações factíveis da realidade profissional, utilizando recursos específicos de treinamento que podem ser desde armas desmuniciadas ou inertes até sofisticadas armas especificas de treinamento. O objetivo não é apenas de verificar se o policial sabe alguma técnica de uso da força, mas se ele consegue interagir com a situação concreta e aplicar conceitos, protocolos e habilidades para garantir a melhor solução para o cenário, de acordo com as regras institucionais de atuação.
Mas eu gostaria de propor uma diferenciação entre o FOF e o RBT, onde o primeiro seria um dos recursos do segundo. Aí você provavelmente vai pensar: Como assim?
O motivo é bem simples e talvez possa haver até alguma confusão de tradução nessa história, mas me parece que o conceito de treinamento baseado em realidade é mais amplo do que o de força contra força. O uso de simuladores virtuais de tiro para treinamento de cenários, por exemplo, se encaixa bem no conceito de treinamento baseado em realidade, mas passa bem longe do conceito de força contra força. No force-on-force é clara a obrigatoriedade do aluno interagir com pessoas de verdade, ao contrário do RBT, que talvez admita o uso de recursos mais amplos de simulação, que podem atingir até melhores índices de simulação psicológica, embora não apresente fidelidade física tão completa.
Na execução de exercícios force-on-force, é importante que o aluno receba as instruções abrangentes sobre as condições de simulação e seja apenas observado e avaliado quanto a sua capacidade de aplicar o conteúdo aprendido de forma prática, uma vez que o grande diferencial dessa fase do treinamento é a responsabilidade cognitiva que o operador terá em fazer escolhas e lidar com suas consequências. Não existe apenas uma resposta certa quando se trata de ocorrência policial ou confronto armado.
No Brasil isso sempre foi feito
Isso é verdade. Fiz o curso de formação de oficiais na Policia Militar da Bahia entre os anos de 2008 e 2011 e as simulações já eram muito comuns no treinamento de técnicas policiais, por mais improvisado que fosse. Existia inclusive uma Jornada de Instruções Policiais Militares – JIPOM, que consistia basicamente em uma semana de simulações das diversas situações possíveis de serem encontradas na atividade policial, desde uma simples chamada de perturbação do sossego até situações com reféns. Esse evento foi muito proveitoso e o sentimento de toda a turma foi de que ele deveria ter sido mais frequente no curso de formação.
Apesar de toda a dificuldade logística e as falhas metodológicas na criação dos cenários e atuação dos figurantes, a simulação sempre faz emergir o aspecto vital da aprendizagem: mostra aquilo que é mais importante aprender. O grande problema da capacitação teórica ou a prática sem contexto é que, para o adulto, a técnica mais importante do mundo pode frequentemente ser vista apenas como “mais uma técnica”, enquanto técnicas sem correspondência alguma com a realidade podem ser massificadas pelo processo de repetição e levará um certo tempo para que o profissional perceba que aquilo que treinou na verdade não servia para sua atividade. Alguns passam uma vida de trabalho sem saber.
Embora as simulações tenham ótimos resultados de aprendizagem, é uma metodologia complicada de ser aplicada, principalmente com grandes efetivos. Fazer force-on-force (principalmente de forma responsável) é demorado e grande parte das vezes demanda logística diferenciada. Devemos adicionar ainda o fato de que a natureza das simulações é multidisciplinar, então dificilmente cabe em apenas uma matéria. Por esse motivo a iniciativa deve ser conjunta, contando com a participação ativa de vários instrutores de matérias diferentes na fase de planejamento e execução. Isso definitivamente não é fácil. Por conta disso, frequentemente o que será observado nas instituições serão as simulações feitas com baixo investimento por um ou outro instrutor abnegado e consciente do fato de que não adianta estudar uma técnica e praticar de maneira isolada. É preciso colocar isso dentro de um contexto verossímil.
E o que falta, então?
É preciso entender que, em termos de treinamento, existe grande carência no Brasil de material escrito definindo de forma metodológica como conduzir instruções dessa natureza. O grande problema dos treinamentos simulados hoje em dia é que podem facilmente ser ministrados por pessoas sem capacitação adequada e encarados com pouca seriedade. Isso pode gerar sérias cicatrizes de treinamento e cicatrizes reais também por conta do risco de acidentes. Pensando nisso, listei algumas observações transcritas abaixo no formato de regras gerais para que possamos ter ideia do nível de responsabilidade em conduzir capacitações com uso de force-on-force. Alguns conceitos talvez pareçam repetitivos, mas esse é um dos objetivos para que todos entendam que a segurança deve estar sempre em destaque e que treinamento baseado em realidade não é um jogo.
Regras gerais da simulação de realidade “force-on-force”
O treinamento ou simulação de realidade do tipo “force-on-force” é o tipo de demonstração que envolve pessoas contra pessoas, utilizando armas de airsoft, paintball, simunition, de emissão infravermelho ou laser visível, festim, blueguns ou outros recursos semelhantes. A vantagem desse tipo de prática, sem uso de munição real, é que podem ser treinadas situações que seriam impossíveis no estande de tiro, como simular um assalto, emboscada, e reproduzir com fidelidade as fricções e desafios atitudinais desse tipo de ocorrência. De qualquer forma, esse tipo de atividade apresenta riscos de lesão e riscos de eficiência da aprendizagem, se for mal conduzido. Apresentarei em seguida algumas regras gerais que devem ser observadas na realização desse tipo de treino:
- Tenha um protocolo de segurança muito bem definido. A simulação aumenta o realismo e, em boa parte das vezes, aumenta também o risco geral de lesões. Obrigatoriedade de utilização de equipamentos de proteção e verificações repetidas dos armamentos utilizados são parte desse protocolo.
- Delimite o espaço físico da simulação e deixe todos cientes disso.
- Identifique quem são os participantes da simulação por meio de adereço (pode ser um braçal) para evitar conflitos cognitivos que dificultem a imersão no ambiente de simulação. (O uso do adereço pode ser dispensado se o isolamento físico do ambiente de simulação for absoluto)
- Delimite pedagogicamente quais os objetivos de aprendizagem da simulação. A simulação deve fornecer realismo e compatibilidade com o conteúdo ministrado e a realidade do aluno.
- O figurante da simulação é peça fundamental para atingir os objetivos de aprendizagem. Um figurante ruim pode gerar fricções (uso aqui o conceito de fricção de Clausewitz) que guardam pouca relação com a realidade operacional. Esse personagem deve ser orientado sobre o contexto de sua interpretação e os limites de sua atuação, para que atue de forma a estimular o aprendizado.
- O condutor da simulação deve dispor de recurso (apito, buzina) para interromper a atividade no momento em que os objetivos de aprendizagem forem alcançados ou a segurança de qualquer participante for comprometida.
Ultimas Considerações
De acordo com Kenneth Murray, é importante evitar que o aluno “morra” no treinamento. Isso acontece muito em simulações de combate onde o aluno é atingido e alguém pausa a simulação ou pede que o mesmo se retire do cenário, pois ele foi atingido e isso significaria que morreu. Isso seria um reforço contrário ao que buscamos em uma capacitação, que seria a mentalidade de combate e sobrevivência. Já sabemos que em uma troca de tiros, ser atingido não significa morrer. Isso precisa estar representado no treinamento. O aluno deve ser encorajado a continuar sempre, mesmo ferido, com dor. A pausa do cenário deve ser feita pelo instrutor no momento em que ele verificar que os objetivos foram atingidos.
A simulação de realidade é a principal etapa de treinamento, apesar de ser constantemente a mais negligenciada, institucionalmente. Apesar de não ser de aplicação simples, deve ser buscada sempre pois dela surge a verdadeira avaliação sobre a pertinência de uma técnica ou sobre a capacidade de um aluno em aplicar na prática aquilo que treinou. Finalizo esse artigo com o gráfico abaixo, extraído de um questionário respondido por 605 Policiais Militares do Estado de Sergipe esse ano e que evidencia onde está a maior necessidade do treinamento com armas. Espero que provoque uma boa reflexão sobre a necessidade da implementação institucional do Force-on-force para uma atuação mais eficaz do Profissional que estará nas ruas.
Até a próxima!