Se eu tivesse que responder à pergunta do título, com apenas uma frase, eu diria: cerca de 8 a 16 segundos!
Antes, vamos dissertar um pouco sobre o tema. Muitos são os fatores que influenciam na durabilidade dos canos de fuzis de alta energia. É uma categoria de armas ainda pouco conhecida no Brasil, em razão das restrições legais vigentes até pouco tempo, as pessoas, em geral, não tinham acesso a esse tipo de armamento. Com a chegada dessas armas aos acervos dos atiradores brasileiros, questões que as envolvem estão, cada vez mais, discutidas nos fóruns e nos grupos de Whatsapp.
Fuzis de alta energia têm peculiaridades, trabalham em severas condições de temperatura e pressão interna, o que impacta, de forma significativa, a durabilidade de certos componentes. Muita gente se espantou com as previsões de substituição do cano, contidas nos próprios manuais das armas da plataforma AR. Portanto, desvendar esse assunto será o objeto desse artigo.
Convivo com a plataforma AR há 15 anos, período em que tive a oportunidade de experimentar algumas de suas variantes. Assim como acompanhar a aplicação desses fuzis, ao longo do tempo, na atividade operacional. Essa vivência me encorajou a dividir um pouco das minhas impressões.
Primeiro, precisamos definir vida útil, é necessário esclarecer o que define se um cano está desgastado. Em seguida, vamos listar e descrever os diversos fatores que concorrem para o desgaste do cano de um fuzil.
Podemos dizer que o principal indicador da vida útil de um cano é sua precisão. Mas o que é precisão? O conceito de precisão vai depender do grau de exigência do operador do equipamento. Fuzis que atiram 1 MOA a 100 metros podem não ser os mais precisos para competidores de precisão, mas ainda podem atender, plenamente, ao emprego policial. Da mesma forma que armas que agrupam 5 MOA a 100 metros podem já comprometer a aplicação tática, mas servir bem ao atirador plinkster, que se diverte em estandes de 15 metros.
Começamos a discussão considerando o conceito de vida útil como variável, pois, num certo grau, depende do nível de exigência do usuário. A partir dessa compreensão, já podemos desconfiar de projeções taxativas e dos quadros que determinam a durabilidade exata do cano, considerando, tão somente, os fatores intrínsecos da peça. Existem, sim, algumas características próprias do cano que se relacionam com sua durabilidade, como, por exemplo: o comprimento do cano, o passo de raiamento, o material do cano, o tratamento ou revestimento da alma… falaremos um pouquinho sobre cada uma delas.
Mas, antes, vou adiantar que, além do grau de exigência do usuário e das características intrínsecas do cano, existe um outro conjunto de variáveis que influencia, também, a durabilidade do cano, o grupo de fatores extrínsecos.
Nesses, estão algumas características da munição utilizada, incluindo peso do projétil, quantidade e natureza do propelente utilizado, além da forma dos projéteis e possíveis materiais utilizados na construção das jaquetas. Por fim, ainda nesse mesmo grupo, está a forma de utilização do conjunto, veremos que a forma de tratar o equipamento ao atirar poderá determinar o desgaste do cano.
Boa parte dos atiradores creditam a erosão do cano ao atrito gerado pelo corpo do projétil ao vencer a alma. Mas, estudos sugerem que o principal vilão nessa história é o calor. A chama e os gases quentes sob pressão, gerados pela combustão do propelente, chegam a cortar, literalmente, o aço. Esse fenômeno é denominado, na literatura estrangeira, como flame cutting (corte da chama) e pode ser comparado, para fins de compreensão, à ação de um maçarico de corte. Assim, ao tratarmos separadamente das variáveis que influenciam o desgaste do cano, concluiremos que, em última análise, eles se relacionam direta ou indiretamente com o fator calor.
Comprimento do cano
Não é novidade, para a maioria, a influência do tamanho do cano na aceleração do projétil, nos níveis de ruído e na quantidade de flash. O que poucos sabem é que esse comprimento pode, também, determinar a durabilidade do cano a longo prazo. No momento do disparo, os níveis de pressão interna diminuem no sentido câmara – boca do cano. Portanto, canos mais longos operam com pressões inferiores na saída do projétil. Existem estudos que comprovam que esse aumento de pressão acontece de forma geométrica, na medida que se encurta o cano. No artigo Barrel Lenght Studies In 5.56 NATO Weapons, publicado no portal Small Arms Defense Journal, os autores apresentam resultados de testes que comprovam a relação supracitada. O artigo mostra que em um cano de 24”, utilizando munição SS109, a pressão na saída do projétil é de 4.800 psi, já em um cano de 5”, a pressão pula para 25.000 psi. Pressões maiores comprometem a qualidade do raiamento e a integridade da coroa.
Material do cano
Os canos dos fuzis AR são feitos, basicamente, de dois materiais: aço ao cromo-molibdênio ou aço inoxidável. Existe uma curiosa relação desses metais com a vida útil do cano. Diferente do que muitos pensam, canos em aço inoxidável não são, necessariamente, mais precisos, eles apenas proporcionam o seu melhor por mais tempo. Vou explicar o que isso significa! Canos fabricados nesses dois materiais, quando novos, têm o mesmo potencial de desempenho. Mas, a forma como os metais se comportam ao estresse dos disparos não é a mesma, com o uso, diferenças vão aparecendo. Enquanto o aço ao cromo-molibdênio vai se tornando gradativamente áspero, o aço inoxidável vai sofrendo micro rachaduras que, num primeiro momento, são menos perturbadoras à precisão do conjunto. Mas, em contra partida, a partir dos primeiros sinais de comprometimento de seus grupamentos, o decréscimo ocorre de forma abrupta. Diferente do aço ao cromo-molibdênio, que, apesar de começar a apresentar sinais de desgaste um pouco mais cedo, tem uma taxa de declínio moderada, não raro, tendo uma vida útil maior.
Tratamento do interior
Vimos que a perda de precisão é um indicativo de desgaste, mas o que especificamente se desgasta? As partes críticas, sujeitas à erosão, como a alma do cano (o raiamento propriamente dito), a boca do cano (incluindo a coroa) e a área de transição entre a câmara e o raiamento (uma espécie de funil chamado pelos americanos de throat, com a função de direcionar o projétil para dentro do raiamento). Essas são as regiões diretamente expostas ao corte da chama e, para aumentar a resistência delas, o cano pode ser tratado. Existem dois processos mais comuns: revestir com cromo-duro ou tratar com o processo de nitretação (também chamado de carbonitretação). A primeira opção consiste em depositar uma camada de cromo-duro em toda a extensão do interior do cano (da câmara à boca do cano), pois, o cromo-duro é mais resistente à erosão. Trata-se do processo utilizado pela Imbel, nos canos dos fuzis IA2. Já a nitretação consiste no enriquecimento da superfície do metal com nitrogênio e carbono, através de um processo termoquímico que concede dureza e consequente resistência ao desgaste. A Taurus utiliza nitretação na construção dos canos do fuzil T4. Apenas como curiosidade, é com nitretação que a Glock trata ferrolho e cano de suas pistolas; Tenifer® é o nome comercial dado ao procedimento. Sabe-se que, tanto o cromo-duro quanto a nitretação alongam a vida útil de um cano, mas não há consenso sobre qual processo é mais eficiente, nesse quesito. O certo é que canos que tenham recebido um desses procedimentos terão maior vida útil.
A influência da munição na vida útil do cano
Até aqui, vimos que o calor e as altas pressões atuam diretamente na dinâmica de erosão dos canos. Portanto, não deve ser surpresa que tal desgaste varie conforme as características técnicas de munições distintas. Vamos abordar alguns aspectos intrínsecos dos cartuchos que podem influenciar a vida útil dos canos. A começar pelo elemento propelente, tanto sua quantidade como sua natureza podem influenciar.
A quantidade de pólvora impacta diretamente nas pressões internas e na quantidade de calor. Quanto à natureza da pólvora, não podemos perder de vista que algumas pólvoras queimam em temperaturas mais baixas do que outras. Consequentemente, menores temperaturas poupam o aço.
O peso do projétil tem influência direta e significativa no processo de erosão. Em regra, projéteis “mais pesados” são mais agressivos com o cano. Quando existe o acréscimo de peso à bala, para que a pressão interna seja mantida em níveis seguros, ocorre uma consequente diminuição da velocidade da mesma. Considerando que os níveis internos de pressão são mantidos nos limites de segurança, conclui-se que o interior do cano ficará exposto a esse estresse por mais tempo. Calor e altas pressões agirão por períodos maiores.
Nessa linha de raciocínio, até o passo de raiamento deve ser considerado. Pois, passos mais rápidos roubam velocidade dos projéteis, aumentando o tempo de passagem dos mesmos pela alma do cano. O que, pelas mesmas razões descritas anteriormente, tem como consequência maior estresse do aço.
Outro curioso fator que afeta o desgaste do raiamento é a forma do projétil. Comum nas aplicações de precisão, o formato boat tail é conhecido por diminuir a vida útil do cano. Alguns devem estar se perguntando: mesmo com menor área de contato? A resposta é: sim! Como eu frisei no começo, o maior vilão é o calor e não o atrito. Nesses projéteis, o corpo se afunila próximo à base, tomando forma similar à da popa das embarcações. Essa cauda angular cria uma espécie de funil, desviando e direcionando a chama e os gases contra a superfície do aço. Portanto, projéteis com base plana são mais gentis com a alma do cano, a desgastam menos se comparados com os boat tail.
Apesar do atrito ser um coadjuvante, ele deve ser considerado, principalmente, quando combinado com o calor. Para suportar a aceleração, os projéteis dessa categoria de armas, em regra, são jaquetados. No entanto, nem toda jaqueta é igual. No mundo ocidental, as jaquetas, normalmente, são feitas de tombak, uma liga metálica onde o cobre prevalece.
Porém, no leste-europeu, ainda são comuns as jaquetas bimetálicas (aço revestido com cobre). Elas são mais duras. Estudos sugerem que a simples alteração do projétil para bimetálico pode encurtar a vida útil do cano pela metade. Mas por que citar cartuchos fabricados do outro lado do mundo? Porque eles estão presentes nos mercados onde existe livre concorrência. Nos EUA, por exemplo, munição Tula, Wolf e Brown Bear são encontradas com facilidade.
Como a forma de atirar influencia a durabilidade do cano?
Diante do exposto, seria razoável imaginar que o conhecimento aprofundado desses conceitos técnicos, anteriormente citados, seja suficiente para estimar a vida útil de um cano. Mas sinto informar que não, pois, dois canos idênticos, utilizando a mesma munição, sendo efetuado o mesmo número de disparos, poderão apresentar graus distintos de desgaste. Isso, em razão da forma que o atirador opera o equipamento.
Vou explicar melhor esse raciocínio, que é simples! Quanto maior a temperatura do cano, maior será a erosão do seu interior. Aquecido, o aço ganha elasticidade, tornando-se mais vulnerável à ação do fenômeno flame cutting, ao atrito e ao estresse das altas pressões. Um volume de disparos em um curto espaço de tempo, irá acelerar a deterioração do aço. Pois, os disparos que acontecem com o cano já em altas temperaturas agridem, com mais intensidade, a estrutura do mesmo.
Projeção da vida útil
Cientes da complexidade do assunto, torna-se clara a dificuldade de se estimar, de forma taxativa, quanto irá durar um cano de um fuzil AR. Vimos que a resposta dependerá de inúmeros fatores que, em sua maior parte, são difíceis de serem mensurados. Apesar da frustação inicial, não podemos perder de vista as contribuições desses ensinamentos. Eles são úteis aos que desejam prolongar a vida útil de seu equipamento, pois, sugerem boas práticas, nesse sentido.
Existem palpites diversos sobre a vida útil média desses canos, há quem recomende sua substituição no primeiro quarto de MOA a mais nos grupamentos, o que pode acontecer com apenas 2.500 disparos. E tem, também, quem sugira seu uso enquanto seguro, o que pode significar mais de 30.000 disparos.
Eu citei “uso enquanto seguro”. Vocês podem estar se perguntando: mas o desgaste do cano pode comprometer a segurança do equipamento? Nos fuzis, a câmara é solidária ao cano propriamente dito, formando um conjunto que recebe o nome de “cano”. O calor e as altas pressões atingem todo o conjunto, incluindo a câmara. Com o tempo, a câmara de explosão vai dilatando e, consequentemente, há um crescimento do headsapce. Essa folga pode alcançar dimensões que tornam o uso do fuzil inseguro, podendo ocorrer rompimento dos estojos e fuga de pressão. Assunto para ser aprofundado noutra oportunidade.
E o que dizem as fabricantes sobre a durabilidade dos canos?
Em regra, elas preferem não determinar a vida útil. Quando o fazem, são cautelosas, limitam por baixo e não poupam restrições. Compreensível a postura conservadora nesse sentido, diante de tantas e tão imprevisíveis variáveis determinantes. Vou exemplificar citando a posição da empresa que criou a própria plataforma AR, a Armalite.
A Armalite, em seu site oficial, afirma que a durabilidade do cano varia muito, dependendo da munição, da taxa de disparos e da precisão esperada. Sugere que, diante de boas práticas, o cano de um AR 5.56 irá durar 10.000 disparos. A empresa diz que, para atiradores desportistas, a vida útil pode ser menor, aproximadamente 7.000 disparos, em razão dos requisitos de precisão mais exigentes. Para aplicações de precisão propriamente ditas, a cano terá vida útil de 2.500 a 5.000 disparos, a depender da munição usada.
Considerações finais
Diante das diversas variáveis que influenciam a vida útil de um cano de fuzil AR e da complexa interação entre essas variáveis, fica praticamente impossível estabelecer uma metodologia destinada a projetar sua duração. Vimos que as empresas fabricantes tentam, através de médias, estimar sobre a necessidade de substituição da peça.
No entanto, em razão dos possíveis comprometimentos legais, essas empresas são conservadoras. A experiência mostra que boas práticas podem dobrar as estimativas iniciais, considerando as exigências médias. Para ilustrar essa possibilidade, cito alguns resultados apresentados no artigo Brass vs. Steel Cased Ammo – An Epic Torture Test, publicado no portal Luck Gunner.
No teste que deu origem ao artigo, fuzis AR, novos e idênticos, foram submetidos a 10.000 disparos cada, com cadências similares. Cada arma atirou apenas um tipo de munição. Dentre os fuzis, teve um que completou os 10.000 disparos mantendo grupamentos com perda mínima de precisão, com resultados que sugerem ainda ter fôlego para outros 10.000. Assim como teve fuzil que perdeu precisão mínima aceitável, já na casa dos 5.000 disparos.
A prática mostra que, dependendo das configurações, precauções e expectativas, é possível que um cano de AR seja útil até 20.000 disparos. Se resumirmos, ainda que grosseiramente, a expectativa de vida útil, para as aplicações médias, entre 10.000 e 20.000 disparos, minha resposta inicial estava correta, os canos duram de 8 a 16 segundos.
Pois, se o projétil de 55gr do cartucho M193 chega, à boca de um cano de 14,5”, na velocidade 930 m/s, tendo saído do estado de repouso, podemos concluir que ele demora cerca 0,0008 segundos para vencer o cano. Se esse cano for condenado com 10.000 disparos, ele terá trabalhado, efetivamente, por 8 segundos; se com 20.000 disparos, terá trabalhado por 16 segundos.