Introdução
É muito comum observar nos cursos de formação e especialização policial que existem alunos que aprendem mais rápido do que outros, ou que conseguem absorver mais conteúdo, apesar de terem sido expostos ao mesmo período de instrução. Para grande parte dos instrutores e grande parte dos alunos, tal situação revela que alguns possuem maior aptidão para determinadas atividades e outros não possuem. Essa interpretação equivocada proporciona uma série de problemas para o processo de capacitação e não é um problema novo e nem restrito ao ambiente policial.
Nesse texto, procuraremos entender alguns aspectos da aprendizagem segundo a visão de Vygotsky, Psicólogo russo do século XX, e como esses conceitos podem ser utilizados na construção de programas de capacitação mais eficazes, inclusive na utilização de fatores estressores para o desenvolvimento de habilidades como tiro de combate ou técnicas de abordagem policial.
Vygotsky e a “ZDP”
Vygotsky nunca estudou sobre formação policial e como as pessoas aprendem tiro de combate ou abordagem, devo confessar. Ele analisou de maneira pormenorizada o processo de aprendizagem das crianças, o papel da cultura nesse desenvolvimento e buscou entender a respeito dos limites para o processo de construção de conceitos e habilidades. Com seus estudos ele nos apresentou o conceito que explica diversos problemas vividos em sala de aula, mesmo quando estamos tratando de uma sala de aula com Policiais, que é a “Zona de Desenvolvimento Proximal”.
De maneira resumida, a Zona de Desenvolvimento Proximal, ou ZDP, compreende os saberes, conceitos ou habilidades que o aluno pode desenvolver quando orientado por um professor ou outro aluno com mais experiência. Segundo Vygotsky, durante o processo de aprendizagem nós partimos da nossa zona de desenvolvimento real, que compreende aquilo que sabemos fazer sozinhos, para aprender a fazer aquilo que podemos conseguir com o devido “Suporte” do professor. Essa distância entre o que sabemos fazer sozinhos e o que podemos aprender com ajuda do professor é o que chamamos de Zona de Desenvolvimento Proximal. Fora do alcance da ZDP estão conhecimentos e habilidades que o aluno não consegue desenvolver ainda, mesmo tendo suporte.
Ao compreender esse conceito, perceberemos que ele não estabelece limites para o aprendizado, uma vez que essas “zonas” são sempre redefinidas no processo de estudo ou treinamento. Quando o aluno exercita habilidades de maneira assistida, ele transfere aprendizados da zona de desenvolvimento potencial para a zona de desenvolvimento real (começa a fazer sozinho o que antes só conseguia com auxílio do professor), que por sua vez fará com que habilidades que não podiam ser acessadas ainda por estarem fora do alcance da ZDP comecem a ser possíveis de aprender.
Aprendizagem é um processo e, além disso, é individual. O quanto uma pessoa pode aprender, momentaneamente é definido pelo quanto ela já sabe, mas ficará limitado tão somente pela qualidade do suporte que recebe e pelo tempo que dispõe para treinar e ampliar sua ZDP. Certo, mas, e o treinamento tático?
ZDP e treinamento tático
Instrutores de matérias práticas como Técnica policial, Tiro ou defesa pessoal se deparam constantemente com a situação em que alguns alunos conseguem rapidamente reproduzir as habilidades passadas em instrução, outros conseguem com certa dificuldade e outros simplesmente não conseguem. Imediatamente surgem opiniões (tanto de alunos quanto dos próprios instrutores) quanto à aptidão desses alunos para a atividade proposta devido ao desempenho que apresentaram nas aulas, partindo do pressuposto de que todos chegaram com a mesma bagagem de conhecimentos e habilidades e deveriam apresentar desempenho semelhante após o treinamento. Os envolvidos no processo de capacitação passam a acreditar então que simplesmente alguns possuem “talento” e outros não possuem. Não consideram algo muito mais simples que é compreender que cada um chegou com um conjunto de habilidades reais específico e por conta disso terão potenciais diferentes de aprendizado.
Compreender a noção de ZDP para o aprendizado de matérias policiais práticas é fundamental pelo fato de que, nesse tipo de matéria, a diferença entre os limites potenciais dos alunos se destaca mais do que em matérias teóricas, em virtude da necessidade da utilização integrada de competências muito diversas, como mostra a figura a seguir, retirada da página 37 da Matriz Curricular Nacional para Ações Formativas dos Profissionais da Área de Segurança Pública, desenvolvido em 2014 pelo Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP.
Em matérias predominantemente teóricas, muitas vezes essas diferenças nos níveis de aprendizado passam desapercebidas, até mesmo em avaliações. Na matéria prática, muitas vezes até os próprios alunos ficam surpresos ao descobrir as dificuldades que possuem para reproduzir habilidades passadas pelos instrutores e com as quais nunca haviam se familiarizado antes.
ZDP e o “talento”
Não compreender a importância do conceito de ZDP pode limitar o aprendizado de alunos que estão em estágios mais iniciais do desenvolvimento da habilidade por suscitar a ideia de que não possuem “talento” para determinada atividade e que não conseguirão acompanhar os demais, por tanto não vale a pena treinar, uma vez que tal desempenho estaria além das suas capacidades.
Curiosamente, o desconhecimento do conceito causa prejuízos também aos que aparentam ter extrema facilidade no aprendizado de determinadas habilidades. Pelo mesmo motivo do entendimento equivocado de que existem pessoas com e sem “talento”, os alunos que sentem facilidade na aquisição de habilidades muitas vezes acabam se esforçando menos para treinar e aumentar sua performance.
O instrutor, com base nas informações discutidas aqui, deve identificar as zonas de desenvolvimento dos seus alunos e deixar cada um fora da PRÓPRIA zona de conforto, apresentando desafios CONDIZENTES com sua ZDP, evitando com isso a frustração do aluno que não consegue atingir as metas e o comodismo do que apresenta maior bagagem no aprendizado.
Utilização da ZDP em treinamentos com estresse
Mais importante ainda é a aplicação desses conceitos quando o programa de capacitação apresenta o uso de fatores estressores em seu plano pedagógico. Sabemos que certas habilidades, no contexto da atividade policial, precisarão ser desempenhadas em ambientes com alto nível de estresse, típicos das ocorrências policiais com uso de arma de fogo, por exemplo. Devido a isso, o processo de formação deve contemplar o treinamento dentro desses parâmetros, garantindo que o Policial formado consiga aplicar as técnicas e realizar os procedimentos sob forte tensão, mesmo sofrendo os típicos prejuízos cognitivos e motores do estresse. Ok, mas, onde a ZDP entra nessa questão?
Em seu trabalho sobre Treinamento mediante exposição ao estresse, os autores Johnston e Driskell destacaram que um dos objetivos da utilização de fatores estressores no treinamento de habilidades é construir confiança de performance. Os futuros policiais precisam passar por simulações que reproduzam as condições de uma ocorrência real para saber que conseguem aplicar as técnicas treinadas e que isso garantirá o sucesso da intervenção. O problema reside no fato de que muitas vezes os instrutores colocam seus alunos em simulações feitas para eles perderem, apenas. Entendem que a experiência da derrota abrirá os olhos para a necessidade de treinamento e com isso aprenderão mais rapidamente.
Quando o aluno é colocado de forma prematura em uma simulação (antes de desenvolver uma habilidade em nível adequado) que exigirá conhecimentos e habilidades fora de sua Zona de Desenvolvimento Proximal, estará promovendo o desestímulo da confiança, ou seja, treinando o aluno para falhar. Na passagem abaixo o autor Dave Grossman explica sobre a importância de simulação projetada para que o aluno vença:
“Sim, haverá certa porcentagem de pessoas que nunca passam pelo treinamento, mas sua meta como profissional é manter essa porcentagem a um mínimo. É fácil projetar um enredo com balas de tinta que faz todo aprendiz parecer um idiota, mas tudo que isso prova é que os treinadores são idiotas. Mas, suponha que você é um treinador e você pôs um combatente em um enredo onde ele falha, e aí você o pôs novamente e ele tem sucesso. Primeiro você revelou uma falha em sua armadura e depois você o ensinou a como superar aquela fraqueza. Fazendo assim, você o trouxe fora do exercício como um combatente superior. Se não há tempo e recursos suficientes para fazer o exercício novamente, então lhe dê uma coisa fácil e deixe-o sair do parque. Sua meta é enviar vencedores para fora da porta.”
(Grossman, 2017)
Com isso, é importante compreender que as simulações só devem ser aplicadas quando as habilidades já foram treinadas e o aluno já possui condição de ser exposto aos fatores estressores de forma gradual e com objetivo de desenvolver cada vez mais a confiança naquilo que praticou.
Conclusão
É necessário destacar mais uma vez que os estudos de Vygotsky buscavam compreender a aprendizagem e desenvolvimento infantil. Isso deve ser levado em consideração quando utilizamos esses conceitos para analisar o processo de capacitação de adultos, que difere em muitas questões, principalmente na maneira como o aluno observa o professor e sobre como se desenvolvem os processos de motivação para aprender. De qualquer forma, entender e aplicar os conceitos de Zona de Desenvolvimento Proximal no acompanhamento dos alunos que estão treinando habilidades como tiro, defesa pessoal ou abordagem é vital para a qualidade e segurança das instruções, além de aproximar alunos do fato de que é possível aprender, mesmo quando parece difícil e demorado. A diferença está apenas na qualidade do suporte do instrutor e dedicação do aluno.
Mesmo compreendendo as dificuldades inerentes do ambiente de formação policial, que demanda um aprendizado uniforme e em uma carga horária que não poderá ser flexibilizada de acordo com a ZDP dos discentes, esse texto tem a intenção de mostrar que é possível a utilização do conceito para estabelecer melhores estratégias de planejamento das aulas, formas de avaliar os alunos e incentivar a utilização de ferramentas de treino condizentes com o público discente e os objetivos do aprendizado.