1. Considerações Iniciais
No nosso artigo, publicado no mês passado, https://infoarmas.com.br/a-legitima-defesa-e-o-excesso-a-luz-das-reacoes-naturais-dos-seres-humanos-parte-1-aspectos-conceituais/, que compõe um sequências de artigos que tratarão do instituto da Legítima Defesa (LD) e o seus excessos à luz das reações naturais dos seres humanos, abordamos uma noção inicial do instituto da Legítima Defesa, ocasião que inclusive destacamos os pré-requisitos necessários para que a instituto seja reconhecido.
Obviamente, como pretendemos finalizar o compêndio de artigos analisando a influência das reações do homem na consubstanciação ou não do excesso da legítima defesa, será muito importante, neste artigo, o claro entendimento das espécies de legítima defesa e, ainda, o esclarecimento de alguns aspectos técnicos e táticos das reações armadas.
A distinção que pode se fazer em relação a legitima defesa é, primeiro, em relação à titularidade do direito protegido, e depois, quanto à efetiva existência da agressão injusta ao direto a ser protegido.
Nesse espectro, a maioria dos doutrinadores entende que a legítima defesa pode assumir a condição de duas espécies: legítima defesa autêntica (real) e legítima defesa putativa (imaginária).
2. Espécies de Legítima Defesa
Na concepção de Greco a legítima defesa real é aquela que acontece quando a situação de agressão injusta está ocorrendo efetivamente no mundo concreto e que pode ser repelida pela vítima, atendendo aos limites legais [1].
Já a legítima defesa putativa ocorre quando a situação de uma agressão é imaginária, não existe no mundo concreto, somente na mente do agente. Ou seja, a agressão não é real mais pelas circunstâncias dos fatos qualquer um presumiria que estaria em risco.
Na hipótese da legítima defesa putativa é impossível a aplicação da causa de justificação (art. 23 do CP) porque falta o seu pressuposto objetivo, qual seja, o elemento principal que fundamenta a caracterização da legítima defesa que é a agressão injusta, que no caso da legítima defesa putativa só existe na imaginação do agente. Porém, o erro do autor na legítima defesa putativa é juridicamente relevante, de acordo com o disposto no art. 20, § 1º, do Código Penal. Sendo inevitável o erro, o agente é isento de pena; sendo evitável o erro, o agente responde na sua modalidade culposa, caso exista essa modalidade para a tipificação no caso concreto [2].
O artigo 20, §1º do Código Penal [3]descreve as discriminantes putativas, que são casos clássicos da legítima defesa imaginária:
“É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva da culpa e o fato é punível com crime culposo“.
Claro que tudo é muito perfeito no mundo dos diplomas legais, sendo que na prática vários elementos precisarão ser apresentados para a comprovação dos fatos, não sendo tarefa fácil paro os envolvidos no processo.
Por fim, quando falamos em legítima defesa putativa há uma correlação direta com agressões supostas iminentes, mesmo assim serão necessários a existência de todos os elementos conceituais e requisitos, já estudados, do instituto Legítima Defesa. Algo bastante complexo de se provar.
3. Aspectos Técnicos das Reações Armadas
Nos próximos artigos investigaremos o excesso de legítima defesa, tudo correlacionado com o que vimos até agora nos conteúdos dos artigos, entretanto, antes de adentrarmos ao exame dessa controvérsia, é muito importante a clarificação de alguns aspectos das reações armadas, principalmente pela grande quantidade de ações que ocorrem em frações de segundos.
O Confronto Armado
Nos confrontos ou mesmo reações armadas, os fatos, com a morte presente, desenrolam-se com extrema rapidez, dramaticamente e com as situações se alternando a cada segundo, quase sempre com gritos, correrias, barulhos, pessoas desesperadas e em pânico, às vezes feridas e até morrendo.
É assustador! O agressor, com iniciativa e fator surpresa ao seu lado, atuando totalmente fora da lei e, normalmente, não dando a mínima importância à vida de terceiros, movimentando-se com rapidez, dispara sem qualquer raciocínio, esconde-se, coloca-se de tocaia. O final é imprevisível. [4]
Vários estudos comprovaram que o ser humano em situação de risco de morte utiliza seu cérebro primitivo emocional sem ser capaz de usar o cérebro racional até que pare a sensação de possibilidade de perder a vida. É importante levar em conta que será a percepção individual de cada indivíduo no momento, circunstancias e lugar que gerará essa reação primária, que não tem um forma definida de modo, intensidade e controle.
Normalmente atividades de confronto ocorrem a reduzidas distâncias entre os oponentes. Sendo assim, o tempo de reação se torna muito curto, valorizando sempre o condicionamento adquirido em treinamentos. Além do pouco tempo, ainda é possível encontrar pessoas inocentes circulando pelas ruas, e ainda pequenos ambientes com pouco espaço para combater. Começa então a surgir o medo da morte e os efeitos do estresse se manifestam no operador de armas, podendo se tornar o seu maior inimigo.
Em uma situação crítica, o ser humano não terá a tranquilidade de calcular como usar a sua força, nem muito menos de saber quantos disparos realizou com a sua arma de fogo, assim como muitos pensam. Muitas vezes nem terá percebido que o oponente já deixou de tentar machucá-lo, pelo motivo do mesmo já ter se ferido ou mesmo ter desistido do seu intento.
Fenômenos como da visão de túnel, perda auditiva, perda da capacidade motora completa, conduta irracional e a incapacidade para pensar claramente, se observam com frequentes da tensão do combate.
Ocorre que sempre que o homem desencadear uma reação de sobrevivência, será ativado o Sistema Nervoso Simpático (SNS) que, quando em atividade elevada, afetará o corpo humano psicológica e fisiologicamente. No entanto, o ser humano, em situação de estresse, tende a perder o seu raciocínio intelectual, trabalhando apenas com seu raciocínio intuitivo ou por meio de seu condicionamento psicomotor. Assim, por exemplo, o seu conhecimento de quando atirar e se defender ficará prejudicado.
É oportuno observar que os efeitos e as consequências diretas da reação do combate sobre operadores de armas são estudados por diversos especialistas, justamente por serem determinantes para um sucesso ou uma derrota no enfrentamento.
Massad Ayoob [5] , uma das maiores autoridades no assunto de combate tático com armas em todo o mundo, escreveu em Stressfire, de 1986, sua obra de grande sucesso, que nesses casos é normal o aumento da frequência respiratória, podendo levar o homem à hiperventilação e consequente vertigem. Ainda pode provocar tremor e entorpecimento nas extremidades do corpo, aumento o limiar da dor, provocando analgesia corporal, limitação da audição e ângulo de visão, perda da destreza com a arma de fogo e perda da noção de espaço e de tempo.
Por fim, torna-se batente claro que em uma situação real de enfrentamento, os níveis de adrenalina do operador, mesmo em uma ação de autodefesa, estarão altíssimos, produzindo, consequentemente, um conjunto de reações físicas e orgânicas que afetará o atirador desde o início que este pensar na possibilidade de reagir até o final da ação.
Esse registro é bastante importante, pois o medo da morte e o instinto da sobrevivência fará com que o ser humano que se defende tenha uma tendência a realizar disparos variadas vezes em seu oponente, contrariando o entendimento “majoritário” da sociedade, “especialistas” e juristas, por vezes desconexos, de que ações nessas circunstâncias se consubstanciam em excesso, mesmo no caso do atirador encontrar-se agindo amparado pelos elementos da legítima defesa.
O “Mito” complicador do “Stopping Power”
Outro aspecto bastante relevante, portanto muito polêmico e que está diretamente correlacionado ao resultado do que é excesso ou não de legítima defesa é o justamente o entendimento controverso que se perpetuou no meio policial e jurídico sobre o tal “efeito de parada das munições”, conhecido mundialmente como “stopping power.”
Por ser polêmico, desperta várias emoções nos círculos de atiradores, policias, militares, promotores de justiça, membros do judiciário e correlatos. Vários mitos são criados em torno do assunto, alguns contestados e outros defendidos por vários entusiastas do tema. Tudo começa pelo conceito do “poder de parada”.
O poder de parada é entendido, simplesmente como a capacidade que o projétil possui, durante o impacto, de incapacitar uma pessoa ou um animal instantaneamente, impedindo que continue a fazer o que estava fazendo no momento do impacto (instantaneamente significa dentro de um a dois segundos).
Desse entendimento, criou -se a ideia equivocada que um ou dois tiros no máximo, com uma “boa” munição bastaria para cessar uma injusta agressão. Tudo fora disso, o ambiente jurídico passou a entender como excessivo.
A ideia que munições possuem certo “Poder de Parada” não é recente e remonta conflitos históricos como a Segunda Guerra do Ópio (1856-1860) e Guerra de Independência das Filipinas (1899-1902), em que os combatentes ingleses e norte-americanos, respectivamente, perceberam a ineficácia de seus disparos na queda imediata do oponente.
A partir de então ganhou relevância e surgiram inúmeras tentativas, já no século XX, de definição de qual o melhor calibre/projétil no quesito capacitação imediata com o stopping power.
Fábio Ferreira, portanto, esclarece que que muita gente acredita puramente na eficiência da munição como uma forma de conforto pessoal. É preciso saber diferenciar o mito da realidade. O que vale para caça, estranhamente não vale para munições de defesa. É comum ver relatos de caçadores que feriram mortalmente o animal, que continuava correndo por muitos metros. Especialistas em medicina legal afirmam que há, no cérebro, sangue suficiente para mais de 10 segundos de reação voluntária, após o coração ser destruído. Ou seja, aceitamos que um animal demore para tombar, mas acreditamos que um tiro de arma curta vá derrubar por mágica, um bandido [6].
Nesse mesmo prisma, Paulo Bedran, ao abordar uma visão contemporânea sobre poder de parada, esclarece que “no geral, nos casos de incapacitação fisiológica, a perda de reação do atingido ocorre em razão de hemorragia severa e, consequente, choque hipovolêmico” [7].
Leandro esclarece sobre a problemática, explicando que o mito da incapacitação por meio de apenas um disparo, salvo quando atingir o tronco encefálico ou a medula cervical, atende aos apelos hollywoodianos, estando portanto, afastado da realidade dos confrontos armados. Assim, importante frisar que, ao atingir o tronco encefálico ou a medula cervical, qualquer, isso mesmo, qualquer projétil de arma de fogo, independente do calibre, é capaz de incapacitar imediatamente um ser humano [8].
Paulo Bedran explica novamente, por intermédio do seguinte conteúdo, que inferências secundárias das análises das tabelas de “stopping power” que são vistas com severas restrições metodológicas, contribuíram para a formulação dos modernos protocolos de avaliação de desempenho balístico:
Além de precisão e energia, os protocolos atuais avaliam a performance do projétil quanto à: capacidade de penetração, capacidade de expansão, capacidade de retenção de massa, uniformidade balística, manutenção de trajetória retilínea após transfixação de superfície rígida, dentre outros quesitos. Considerados fonte de informação segura, capazes de balizar decisões, tais protocolos tomaram o lugar das referidas tabelas. Atualmente, as modernas Agências de segurança, mundo afora, utilizam protocolos de desempenho a determinação de seus equipamentos: arma, calibre e munição [9].
O entendimento mais recente é que para a paralisação e a incapacitação do ser humano, o importante é a dimensão e a localização do ferimento e não apenas o tipo de munição empregada, mas também o conjunto arma, calibre e munição. Ou seja, a ideia apaixonada de que a cavidade temporária era o fator importante para incapacitar o oponente, devido a transferência de sua energia cinética, já não é mais cabida de ser debatida, muito menos a ideia de uma munição qualquer ter a capacidade de neutralizar o inimigo sendo disparada uma ou duas vezes. Na verdade, mesmo o tiro atingindo tecidos vitais, é razoável acontecer da pessoa ou o animal continuar em movimento e de forma hostil por 10 a 15 segundos e isso, sem sobre de dúvidas, deve ser levado em conta para análise do excesso ou não na Legítima Defesa.
4. Conclusão
No presente artigo abordamos de forma sucinta, porém bastante clara, que o ser humano ao agir em Legítima Defesa estará no seu nível de estresse mais elevado, pois estará lutando pela sua vida, ou pela de terceiros, ameaçada por uma ou várias pessoas que provavelmente estão dispostas a cumprirem o seu intento.
É relevante pontuar que existem diversos casos catalogados de tiroteios em que, mesmo ferido fatalmente no coração, o indivíduo é capaz de caminhar e correr centenas de metros e realizas atividades físicas intensas antes da morte. Como exemplo cabe registrar o trágico incidente ocorrido na polícia americana em 1986 – o conhecido Miami shoot-out, no qual morreram dois agentes do FBI e outros cinco ficaram feridos. Na ocasião um dos criminosos foi atingido com mais de 10 tiros e continuou combatendo por vários minutos.
Outrossim, em qualquer situação, os dados técnicos atuais denotam que a pessoa que se defende nunca deverá disparar apenas uma ou duas vezes no corpo do adversário e acreditar que ele cessará a ação hostil, mesmo estando com excelentes munições reconhecidas no mercado. Esse entendimento decorre da não existência de qualquer garantia científica de que apenas um ou dois disparos sejam suficientes para incapacitar um criminoso.
Os disparos deverão ocorrer até que o oponente não mais apresente hostilidade e possibilidade de ferir o defensor, ou seja, o oponente precisará ter parado de realizar a injusta agressão para só assim parar de receber disparos.
O problema é que o entendimento, acima exposto, muitas vezes é contaminado pela fantasia dos confrontos armados, como fosse algo simples de se resolver e pelos mitos de existir um munição totalmente eficaz, que seja capaz de, com uma única unidade disparada, parar totalmente um homem decidido a matar que poderá ainda estar influenciado pelo efeito de bebidas ou drogas.
O pior é que os atores dessas ideias desarrozoadas são justamente promotores, juízes, delegados de polícias, a imprensa e grande parcela da sociedade que quando não conseguem culpar o agente que se defende, mesmo lhe dando o benefício da Legítima Defesa, o acusam de ter agido de forma excessiva. Ou seja, que sua ação apesar de ser um excludente, deve ser punida por ser desproporcional.
Esse é sem dúvidas um assunto bastante polêmico no universo da legítima defesa, justamente pela subjetividade do seu entendimento. Ao ocorrer situações consubstanciadas em ações de legítima defesa, se não houver um cuidado e análise de diversos elementos, o operador que encontra-se na ocorrência poderá ser facilmente prejudicado pelo entendimento de que suas ações foram desproporcionais e excessivas. E será sobre isso que analisaremos no próximo artigo, O Excesso da Legítima Defesa.
REFERÊNCAIS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 18. ed. Rio de Janeiro: Impetus, v. 1, 2016.
[2] SANTOS, Diego Souza. Legítima Defesa. Jusbrasil. 1918. Disponível em: <https://diogoadvogadocolatina.jusbrasil.com.br/artigos/526612304/legitima-defesa>. Acesso em: 11 mar. 2019
[3] BRASIL. Código Penal. Decreto lei nº 2848 de 07 de dezembro de 1940.
[4] GIRALDI, Nilson. Tiro Defensivo na Preservação da Vida: Método Giraldi. São Paulo: Distribuição Gratuita.
[5] AYOOB, Massad. Stress Fire: Gunfighting for police: Advanced Tactics and Techniques. 4 ed. EUA: Police Bookshelf, 1986.
[6] FERREIRA, Fábio . O Mito do Stopping Power. Instituto Defesa. 2013. Disponível em:<http://www.defesa.org/o-mito-do-stopping-power>. Acesso em: 2 abr. 2019.
[7] Bedran Júnior, Paulo Elias. Uma visão contemporânea sobre poder de parada. lpabrasil. Disponível em: <http://www.lpabrasil.com.br/stopping-power-pg-56adc>. Acesso em: 4 abr. 2019.
[8] LEANDRO, Allan Antunes Marinho. Armas de Fogo e Legítima Defesa: A desconstrução de oito mitos. Rio de Janeiro: Lumis Juris, 2016.
[9] Bedran Júnior, Paulo Elias. Uma visão contemporânea sobre poder de parada. lpabrasil. Disponível em: <http://www.lpabrasil.com.br/stopping-power-pg-56adc>. Acesso em: 4 abr. 2019.