Esse artigo foi escrito pelo Delegado de polícia Civil Dr. Marcio Dubugras
É um tema complexo e que gera muitas dúvidas, notadamente quando efetuado por um policial após a edição do Decreto nº 12.341/24 que disciplina o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública.
O referido decreto estabelece que o emprego de arma de fogo somente poderá ser realizado como último recurso. Portanto, se o agente dispor de instrumentos menos letais deverá utilizá-los antes do uso de uma arma de fogo.
Dentro desse contexto, o policial que efetua um tiro de advertência comete o crime de disparo de arma fogo?
Essa análise deve ser feita observando o conceito analítico de crime, que segundo a maioria da doutrina é definido como uma ação típica, ilícita e culpável.
O fato de alguém efetuar um disparo de arma de fogo é considerado uma ação típica, conforme o artigo 15. Assim, para que não exista crime será necessário que se demonstre que esse comportamento seja lícito ou não culpável.
A licitude poderá ser reconhecida quando o agente atuar amparado por uma das causas excludentes da ilicitude previstas no art. 23 do Código penal, que são o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito.
Já a culpabilidade, que é um juízo de reprovação pessoal, é verificada quando estão presentes os seus elementos constitutivos que são imputabilidade, potencial consciência sobre a ilicitude do fato e a exigibilidade de conduta diversa. Portanto, se algum desses elementos não estiver presente não teremos a culpabilidade.
Não é o escopo desse artigo analisar a teoria do crime. Portanto, não será realizado o estudo de cada um dos elementos da ilicitude e da culpabilidade mas sim aquilo que é de interesse para o tema “tiro de advertência”.
Casos em que o policial atira para o alto para evitar a possibilidade dele ou de terceiro ser agredido não há que se falar em crime pois ele estaria amparado pela excludente de ilicitude, legítima defesa. Portanto, o policial não estaria cometendo crime se não houvesse outro meio menos letal para impedir a agressão.
Assim estabelece o artigo 25 do Código Penal:
Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Agressão significa uma conduta humana que põe em perigo ou lesa um interesse juridicamente protegido. Injusta agressão deve ser entendida como ilícita, ou seja, contrária ao direito. Atual é o que está acontecendo e iminente é o que está prestes a acontecer. Agressão contra direito próprio ou de terceiro é a defesa de bem ou interesse juridicamente protegido da própria pessoa ou de uma outra pessoa. Usodosmeiosnecessáriossão os meios menos lesivos e suficientes para evitar a agressão. Não há um cálculo matemático preciso para o uso desses meios. Moderação dos meiosé o emprego dos meios necessários na proporção entre o ataque sofrido e a defesa. A escolha do meio para se defender e o seu uso dependerá da forma que se dá a agressão.
Portanto, se o policial está na iminência de ser agredido por um grupo de pessoas e só dispõe de uma arma de fogo para se defender pode usá-la efetuando o tiro para o alto e até, em situações mais graves quando os agressores objetivam lhe agredir ou tomar a sua arma, atirar naquele que pretende fazê-lo.
No sentido de que o policial atua em legítima defesa quando atira para o alto, a jurisprudência do:
TJ-ES:
APELAÇÃO CRIMINAL DISPARO DEARMA DE FOGO -ABSOLVIÇÃO PELA EXCLUDENTEDEILICITUDEDALEGÍTIMADEFESA-POSSIBILIDADE-
RECURSOPROVIDO.Demonstradoqueoagente,usandomoderadamentedos meiosquedispunha,efetuouumúnicodisparoparaoalto,comintuitodeafastar a injusta agressão, atual e iminente, de um desafeto, para afastá-lo do local, resta configurada a excludente de ilicitude da legitima defesa, impondo-se a absolvição. Recurso provido. (TJ-ES – APL: 00101347520158080030, Relator: ADALTO DIAS TRISTÃO, Data de Julgamento: 06/11/2019, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 02/12/2019)
TJ-PR:
APELAÇÃO CRIME. Disparode arma defogo.Artigo15 daLeinº 10.826/2003. Legítima defesa. Artigo 25 do Código Penal. Causa excludente de ilicitude configurada. Absolvição. Artigo 386, inciso VI, do código de processo penal.
Recurso provido. O conjunto probatório evidenciou que o acusado, ao efetuar disparos para o alto, usou moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, contexto que configura a legítima defesa, causa excludente de ilicitude que autoriza a reforma da sentença e consequente absolvição, nos termos do artigo 386, inciso VI, do código de processo penal.” (TJPR; ApCr 1628162-6; Foz do Iguaçu; Segunda Câmara Criminal; Rel. Des. Luis Carlos Xavier; Julg. 27/07/2017)
DECISÃO:ACORDAMosintegrantesdaSegundaCâmaraCriminaldoTribunal deJustiçadoEstadodoParaná,porunanimidadedevotos,emnegarprovimento ao recurso, nos termos do voto. EMENTA: APELAÇÃO CRIME. DISPARO DE ARMADEFOGO.ART.15 DALEI10.826/2003.ABSOLVIÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGÍTIMA DEFESA DE TERCEIRO DEVIDAMENTE COMPROVADA. DISPARO EFETUADO EXCLUSIVAMENTE PARA IMPEDIR TENTATIVADEESTRUPRO.USOMODERADODOSMEIOSNECESSÁRIOS. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO
DESPROVIDO.(TJ-PR 1464683-2 Almirante Tamandaré, Relator: Laertes FerreiraGomes,DatadeJulgamento:07/07/2016,2ªCâmaraCriminal,Datade Publicação: 25/07/2016).
Sobre o assunto, interessante observar o Regulamento Interno dos Serviços Gerais aprovado pela Portaria n. 816/03 que estabelece a atuação dos soldados que atuam na função de sentinelas.
Art.221.Incumbe,particularmente,àsentinela:
[…];
1º Em situação que exija maior segurança da sentinela para o cabal desempenho de sua missão, incumbe-lhe, especialmente à noite, e de conformidade com as instruções e ordens particulares recebidas, além das prescrições normais estabelecidas, as seguintes:
I –fazerpassaraolargodeseupostoostranseunteseveículos;
[…];
2º Para o cumprimento das disposições constantes do § 1º deste artigo, a sentinela deve adotar os seguintes procedimentos:
I – no caso do incisoIdo §1º deste artigo:
[…];
e)tratando-sedegrupooudeveículos,fazerumprimeirodisparoparaoar e, em seguida, caso não seja ainda obedecida, atirar no grupo ou nos veículos”.
O militar quando efetua um tiro para o alto e depois um tiro no veículo está agindo para repelir uma injusta agressão, e portanto, justificada pela legítima defesa.
E o tiro para o alto para que o agente cumpra uma ordem legal?
Dispõe o artigo. 23, III, 1.ª parte, do Código Penal: ‘Não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento de dever legal’.
A respeito, Fernando Capez:
“É a causa de exclusão da ilicitude que consiste na realização de um fato típico, por força do desempenho de uma obrigação imposta por lei, nos exatos limites dessa obrigação”.
Para estar amparado pela excludente, o exercício deste agir deve ser pautado em certos limites, ou seja, atuar em “estrito cumprimento”, dentro dos limites impostos pela lei para que não ocorram excessos que possam configurar crime.
Portanto, mesmo que o agente pratique um fato típico não responderá pelo crime por agir sob o amparo de uma das causas de exclusão da ilicitude, o estrito cumprimento do dever legal. Seria desarrozoado a lei impor que determinadas pessoas realizassem um ato, e, ao mesmo tempo, sujeitá-lo a uma sanção penal em razão do seu cumprimento. O cumprimento desse ato não é uma faculdade para o agente agir ou não agir. Há, em verdade, um dever legal de agir que, caso se negue a realizar, terá como consequência uma responsabilidade penal por essa omissão.
São exemplos o cumprimento de mandado de busca domiciliar em que o policial não será responsabilizado por violar o domicílio e nem no caso do cumprimento de mandado de prisão em que o policial não responderá por constrangimento ilegal ou outro crime quando detém o criminoso e o impede de prosseguir.
Para o cumprimento da ordem legal o agente poderá usar dos meios necessários para se defender ou vencer a resistência. Assim dispõe o artigo 292 do CPP:
Art.292.Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.
O policial tem a obrigação legal de prender quem esteja empreendendo fuga sob pena de ser responsabilizado criminalmente pelo crime de prevaricação ou outra espécie de crime omissivo. Assim estará agindo no cumprimento de um dever legal quando prende um criminoso em fuga.
Dentro desse contexto, entendemos que se o policial efetua um disparo para o alto com a finalidade de impedir que um criminoso fuja está amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal pois usou dos meios necessários para cumprir uma ordem legal de prisão ou de efetuar uma prisão em flagrante delito, ressaltando que se não agir assim poderá ser responsabilizado por deixar de agir.
E o tiro realizado para dispersão de pessoas?
O tiro de advertência realizado para dispersão de pessoas, também, estará justificado quando a agente agir em defesa própria ou de terceiro de acordo com a excludente de ilicitude da legítima defesa.
Nesse sentido, TJ-GO Proc nº 388325-76.2008.8.09.0160:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. DISPARO DEARMADE FOGOEM LOCAL HABITADO. POLICIAL MILITAR. RECONHECIMENTO DAS EXCLUDENTES DAILICITUDEDOESTRITOCUMPRIMENTODODEVERLEGALELEGÍTIMA
DEFESA. ABSOLVIÇÃO. Devemser reconhecidas as excludentes absolutórias do estrito cumprimento do dever legal e legítima defesa, na conduta do agente que utiliza os meios necessários e moderados para repelir injusta agressão no momento em que agia em estrito cumprimento do dever legal, ao efetuar disparo no intuito de dispersar um grupo de populares descontentes com a ação policial. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA.
TJ-MT Processo nº 0006917-28.2020.8.11.0042 MT:
APELAÇÃO CRIMINAL – CRIMES MILITARES IMPRÓPRIOS – LESÃO CORPORALLEVÍSSIMAEDISPARODEARMADEFOGO–CONDENAÇÃO– PRETENDIDAABSOLVIÇÃO – PROCEDÊNCIA – ART. 209, § 6º, DO COM – INFRAÇÃO DISCIPLINAR – DISPARO DE ARMA DE FOGO ACOBERTADO PELO ART. 221, § 2º, INC. I, E, DO R-1 [REGULAMENTO INTERNO DOS SERVIÇOSGERAISAPROVADOPELAPORTARIAN.816,DE19/12/2003,DA LAVRADOCOMANDANTEDOEXÉRCITOBRASILEIRO]–APELOPROVIDO.
- Caracteriza mera transgressão disciplinar, e não crime, a produção injustificada delesões levíssimasem particulares, nos moldes doart. 209, § 6º, do CPM.
- A mens legis do art.15 da Lei n.10.826/2003 buscou contemplar as situações de disparos efetuados a esmo, por qualquer pessoa, inclusive em comemorações, onde não é possível definir onde as “balas perdidas” possam cair, não abrangendo situação de agentes públicos armados e que se valem do disparo de advertência com a finalidade de dispersar aglomerações, quando coloquem em risco a integridade física dos integrantes das forças armadas. Inteligência do art. 221, § 2º, inciso I, e, do R-1.
- Apelo provido.
Bibliografia:
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CAPEZ, Fernando. Cursodedireitopenal–Legislação penal especial. 14.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
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DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal comentado. 10.ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022.
GRECO, Rogério. Cursodedireitopenal: volume 1: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. 24.ed. Barueri: Atlas, 2022.
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ComentáriosaoCódigoPenal.5.ed. Rio de Janeiro: GZ, 2018.
JESUS, Damásio de; ESTEFAM, André. DireitoPenal1– Parte geral.37.ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. CursodeDireitoPenal: parte especial: arts. 121 a 212 do Código Penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manualdedireitopenal brasileiro V. 1 – Parte geral. 9.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Autor do artigo:
MARCIO DUBUGRAS
- Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro
- Professor de direito penal
- Pós-graduação:
- Direito Privado pela Universidade Veiga de Almeida;
- Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes;
- Criminologia pela Universidade Estácio de Sá;
- Perícia Criminal, Medicina Legal e Direito Penal pelo Centro Universitário Signorelli;
- Balística aplicada ao Direito pelo Centro Universitário- Católica de Santa Catarina;
- Instrutor de Armamento e Tiro
- Atirador desportivo
- Autor dos livros:
- Armado legalmente;
- Estatuto do desarmamento- comentado artigo por artigo;
- Manual de balística forense- Balística interna, intermediária, externa e terminal.
- Legislação de armas de fogo (organizador).