1 – O VACUO LEGAL DO CONCEITO DE EFETIVA NECESSIDADE
Em 2003, no ápice dos eventos julgados como verdadeiros (tratando-se, portanto, de verdade jurídica reconhecida) pela Ação Penal 470, eventos estes apelidados de “Mensalão”, tivemos a aprovação da Lei 10.826/03, em votação simbólica, açodada, ocorrida no apagar das luzes de dezembro.
Ademais, a Legislação foi maliciosamente apelidada de “Estatuto do Desarmamento”, a fim de lhe ser emprestado um objetivo ou significado o qual não foi submetido à discussão democrática (o nome, ou até mesmo a intenção não está presente em qualquer parte do texto, porém tal discussão será aprofundada em artigo próprio) em evidente truque publicitário com vistas a atribui ao texto da lei um suposto “espírito” inexistente.
A legislação em questão demonstrou como o tempo que foi desenvolvida de forma a atribuir ao poder executivo, através da presidência da república bem como ao órgão a ela subordinados (mesmo que indiretamente) poderes de encrudescer de forma excessiva o conteúdo desarmamentista da lei.
Ainda, especialmente no que se refere à conceitos que dariam acesso à direitos ou exceções às regras gerais da lei, utilizou-se de conceitos absolutamente indefinidos, o quais na prática tornando indistinguíveis atos discricionários de atos arbitrários.
Não é possível afastar a hipótese de que a legislação foi assim escrita considerando-se que nenhum ator não alinhado a ideologia desarmamentista pudesse em algum tempo ter acesso a chefia do poder executivo.
Desta maneira o excesso de poder regulatório seria sempre utilizado para dar a lei que é na prática neutra, destinada à, conforme a ementa do projeto de lei “Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – SINARM, define crimes e dá outras providências.”, o seu alegado “espírito desarmamentista”, que na verdade trata se de um fantasma cuja assombração foi trazida pelos decretos regulamentares e não está contida no próprio texto da lei.
Tal técnica legislativa representa, no entanto, verdadeira “espada de dois gumes” uma vez que a mesma permissão regulamentar que autorizou a governos de ideologia mais desarmamentista tornar a lei 10826/2003 em verdadeiro “Estatuto do Desarmamento”, permitem ao governo de ideologia mais liberal substituir referidos decretos, apresentando textos que “exorcizam” o “espírito da lei” desarmamentista.
Porém no que interessa ao presente artigo, temos em especial conceito jurídico aberto, de conteúdo abstrato, previsto na lei 10826/03, no artigo 10 §1, I, quer seja o conceito de “efetiva necessidade”.
O referido artigo assim dispõe:
“Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.
§1º A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:
I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;”
Ocorre que nestes quase 20 anos de vigência da referida lei, até o presente momento não se logrou êxito em definir de forma clara em que se constitui o termo legal “efetiva necessidade”.
trata-se de termo tão abstrato, de conteúdo normativo tão aberto, que não há qualquer possibilidade de se dizer de antemão se uma situação específica se adequa ou não ao conteúdo da legislação.
Os entendimentos divergem de região para região, de delegado para delegado, e, com alguma frequência, o mesmo delegado indefere uma série de pedidos contendo o mesmo fundamento, porém, talvez afetado por um dia de excessivo bom humor e felicidade, acaba por definir um pedido específico, passando então a indeferir todos os demais novamente.
Há ainda situações em que certo indivíduo tem o porte de arma deferido, sendo este algumas vezes renovado, sempre sob o mesmo fundamento, tendo então a “renovação” indeferida sob a justificativa de que os pedidos são estanques entre si, porém aonde o único fator que se diferencia dos demais no pleito é alteração do delegado designado para o ato.
Por se tratar de mérito administrativo, a decisão se minimamente fundamentada está imune ao crivo do judiciário, em razão de que conforme os fatos acima expostos, em razão da absoluta indefinição do conceito de efetiva necessidade, o qual se materializa no mundo dos fatos apenas no momento da decisão pelo delegado de polícia federal, sendo portanto impossível diferenciar em relação aos seus fundamentos, tal ato administrativo de um ato absolutamente arbitrário, dado que o que diferencia um ato arbitrário de um ato discricionário é a adequação do ato aos parâmetros objetivos indicados na lei.
Não havendo parâmetro, não há como diferenciar o ato discricionário do ato arbitrário.
Em resumo, a lei ao silenciar sobre o conceito de efetiva necessidade atribui ao delegado de polícia o poder de deferir “porque sim” ou indeferir “por que não”, inclusive quando o diante de situações exatamente iguais onde o único a diferenciação é um nome contido na capa do requerimento.
Tal ausência de definição do conteúdo do normativo, no entanto, dada a evolução do posicionamento político dos legítimos representantes eleitos, especialmente após os dados colocarem por terra a afirmação repetida ad nauseam de que o aumento da circulação de armas aumentaria a violência abre a possibilidade para que o conceito jurídico que o legislador federal optou por sonegar seja trazido com base no artigo 24, § 3º da Constituição federal pelos legisladores estaduais.
Assim recentemente ocorreram iniciativas legislativas com apresentação de projetos de lei bastante simples cujo conteúdo gira invariavelmente na declaração ou reconhecimento por parte do poder publico estadual a existência de efetiva necessidade para Caçadores Atiradores e Colecionadores, os quais note-se, já se encontram explicitamente previstos na lei 10826/03 no inciso IX do artigo 6º que prevê as exceções da proibição geral do porte de arma, Fonte inclusive do porte de arma dos guardas municipais, o qual foi o objeto até mesmo de ampliação por parte do STF.
Importante ressaltar que tal hipótese legal decorre diretamente da opção feita pelo legislador federal de não trazer na lei a definição normativa de importante requisito legal para exercício de direito, quer seja o conteúdo normativo do que seria “efetiva necessidade”.
2 – DO EFEITOS PRATICOS DAS LEGISLAÇÕES ESTADUAIS
A mídia tradicional ao noticiar a aprovação de legislações estaduais reconhecendo a efetiva necessidade dos CACs, incorre em verdadeira propagação de “Fake News” pois em sua maioria divulgam de forma equivocada que tais legislações concederiam “Porte de Arma” aos integrantes da referida “categoria”.
Nada mais falso. Como apontado no tópico anterior tudo o que a lei faz é declarar que os legítimos representantes da população local ao serem questionados sobre o aberto conceito de efetiva necessidade, em relação aos atiradores colecionadores e caçadores reconhecem que no geral os integrantes da referida “categoria” estariam inseridos no conceito aberto inserido na lei pelo legislador federal.
Ocorre que todo o procedimento determinado na legislação federal deve ser integralmente seguido pelo pretendente, o qual deve abrir o referido processo administrativo perante a polícia federal que analisará todos os requisitos previstos no artigo 10 da lei 10826/03, inclusive o da efetiva necessidade.
A única influência da lei estadual sobre a análise de discricionariedade a ser exercida em plena competência pelo delegado de polícia federal é a de se exigir do senhor delegado, caso entenda não haver efetiva necessidade, de fundamentar de forma clara os motivos pelo qual aquele cidadão específico não estaria inserido na generalidade de efetiva necessidade reconhecida legitimamente pelos representantes eleitos através de lei Estadual.
Assim, por exemplo, o senhor delegado poderia, identificado que o pleiteante já conta com escolta armada deferida pelo poder público, com base neste fato apontar que a efetiva necessidade existente para os CACs em geral não se aplica há um caso em questão pois o risco é mitigado pela escolta armada fornecida.
De outro lado, considerando que a instrução normativa Nº 201-DG/PF, DE 9 DE JULHO DE 2021 em seu artigo 33, § 2º veda expressamente o automatismo na análise dos pedidos sendo obrigatório que o senhor delegado exerça juízo de ponderação individualmente, temos que a lei estadual sequer altera a carga de trabalho a ser dedicada a cada pedido.
No caso dos contemplados pela lei estadual, considerando a proibição de indeferimento automatizado, no exercício do poder discricionário pleno (que é representado pela adequação do fato concreto aos parâmetros legais) deverá o senhor delegado de polícia federal deferir os pedidos que representem adequação a situação geral dos CACs, indeferindo os que apresentem peculiaridades pessoais que demonstrem não estarem inseridos na regra geral prevista na lei estadual.
Assim fica claro que a lei estadual não altera de qualquer forma o procedimento previsto na lei federal, apenas aproveitando-se do silêncio eloquente conscientemente inserido na lei pelo legislador federal para em um caso específico indicar um dos infinitos conceitos possíveis de “efetiva necessidade”, nos exatos termos do que prevê o Artigo 24, § 3º da Constituição federal que atribui aos estados competência legislativa plena para atendimento de peculiaridades onde a lei federal silenciou, como será desenvolvido de forma mais específica no tópico à frente.
3 – DAS INCORRETAS ALEGAÇÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE
Na ânsia de impedir que os legisladores estaduais trouxessem conteúdo normativo ao conceito aberto de “efetiva necessidade”, mitigando assim o poder arbitrário do delegado de polícia federal, ao trazer através de lei os parâmetros legais que permitiriam diferenciar um ato arbitrário de um ato discricionário, levanta-se de forma pueril “inconstitucionalidades” que a princípio soam apenas estranhas, porém após uma análise mais apurada percebe-se se tratar de fundamentos eminentemente ideológicos, sem qualquer base no efetivo direito.
Aproveita-se da excessiva complexidade das normativas que regem o armamento no Brasil para se refugiar de forma apressada em alegações de “inconstitucionalidade presumida”, cujo sentido se verá não encontra base no direito posto.
3.1 – DA ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DA COMPETENCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO PENAL
A primeira alegação apresentada seria a de que as legislações estaduais ultrapassariam a competência privativa da uniam para legislar sobre direito penal.
Assim primeiramente seria necessário compreender o que significa legislar sobre direito penal verificando as delimitações do comando existente no artigo 22, I da Constituição federal.
Da lição de Rogério Greco, temos que o direito penal é:
“Direito Penal Objetivo é o conjunto de normas editadas pelo Estado, definindo crimes e contravenções, isto é, impondo ou proibindo determinadas condutas sob a ameaça de sanção ou medida de segurança, bem como todas as outras que cuidem de questões de natureza penal, v.g., excluindo o crime, isentando de pena, explicando determinados tipos penais.”
Já da lição de Aníbal Bruno, extraímos:
O conjunto das normas jurídicas que regulam a atuação estatal nesse combate contra o crime, através de medidas aplicadas aos criminosos, é o Direito Penal. Nele se definem os fatos puníveis e se cominam as respectivas sanções – os dois grupos dos seus componentes essenciais, tipos penais e sanções. É um Direito que se distingue entre os outros pela gravidade das sanções que impõe e a severidade de sua estrutura, bem definida e rigorosamente delimitada.
Assim como se vê, para que seja considerada como ingressando no direito penal, a legislação teria de modificar a aplicação de penas ou elastecer/diminuir o campo de aplicação de eventual tipo penal.
Tal definição, uma vez que a argumentação de violação de competência da união para legislar sobre direito penal parece ser refúgio comum daqueles derrotados no campo político, é objeto de súmula vinculante de número 46 que assim dispõe:
“A definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são da competência legislativa privativa da União.”
Ainda, em decisão de 2006 sobre ato normativo que alterou regramento relativo as eleições:
“Não ofende à CF ato normativo do TRE que veda a utilização de simuladores de urna eletrônica como veículo de propaganda eleitoral. Contudo, a determinação para a aplicação da penalidade estabelecida no art. 347 do Código Eleitoral aos infratores do comando normativo em análise ofende a competência da União para legislar sobre direito penal (art. 22, I, da CF/1988).
[ADI 2.278, rel. p/ o ac. min. Joaquim Barbosa, j. 15-2-2006, P, DJ de 10-11-2006.]”
Assim considerando a doutrina bem como a jurisprudência do STF, temos que leis estaduais que não alteram a incidência de aplicação dos tipos penais do gênero “porte ilegal” e seus satélites, não ingressam no direito penal.
Os ataques aos textos das legislações estaduais que reconhecem a efetiva necessidade partem da premissa equivocada de que a legislação estadual estaria “concedendo porte” aos atiradores, o que não é verdade, e pode ser facilmente constatado.
Um CAC que eventualmente esteja portando arma de fogo fora das condições legais do porte de trânsito, e sem estar de posse do porte de arma federal concedido pela polícia federal estará incluído no tipo penal de porte ilegal de arma de fogo, uma vez que o tipo penal exige que o cidadão previamente ao ato obtenha a devida licença.
Assim considerando que a legislação estadual mantém incólume tal necessidade, não alterando de qualquer forma o campo de aplicação do tipo penal previsto, temos que não há qualquer invasão dá competência privativa da União prevista no Artigo 22, I da Constituição Federal, vez que não altera o campo de aplicação da penalidade, nem a definição do crime, nem influência de qualquer forma nas normas de processo e julgamento.
Não se trata, portanto, de norma que adentra ao campo do direito penal.
3.2 – DA ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DA COMPETENCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE MATERIAL BELICO
Outra argumentação utilizada para contestar a constitucionalidade dos projetos que reconhecem a efetiva necessidade dos CACs em Lei Estadual, é a de que os projetos violariam o Artigo 22, XXI, que prevê a competência privativa da União para estabelecer normas gerais sobre “material bélico”.
Ocorre que, a exemplo do que ocorre no direito penal, os projetos de lei estadual não tratam se quer de forma lateral sobre qualquer alteração nos regramentos que afetam o “material bélico”.
Não há qualquer alteração no regramento de calibres, tipos de armamento, regramento sobre atividades com o uso de produtos controlados, etc.
Alegar que uma lei estadual que reconhece a efetiva necessidade dos CACs trata de “material bélico” é estender de forma até mesmo desesperada o próprio conceito de “material bélico”.
Ocorre que neste caso em particular, mesmo que se admitisse que a legislação realmente adentra ao tema “material bélico”, ou que se faz apenas a título de argumentação, ainda assim não haveria qualquer inconstitucionalidade.
Isto porque o texto do inciso XXI, é muito similar ao texto do inciso XXVII, ambos tendo em comum a indicação de que a competência privativa da união se restringe a normas gerais, no primeiro caso ao que interessa sobre material bélico e no segundo caso sobre licitações.
Pois bem, no Estado do Paraná a administração estadual aprovou a Lei 15.608/07, que apresenta diferenças cruciais para a Lei Federal 8.666/93, em especial a inversão de fases da licitação para todos os tipos de licitação, bem como a previsão de obrigatória aplicação de multa nos casos de retirada/desistência de propostas após iniciada a fase competitiva do certame.
Trata-se, portanto, de regras que alteram fundamentalmente as licitações promovidas pelo estado do Paraná, não havendo, porém, questionamentos em relação a inconstitucionalidade da lei estadual por se tratar de especificidades locais que foram ressalvadas expressamente pelo comando legal “normas gerais” contido tanto no inciso XXI, quanto no inciso XXVII.
Desta feita, mesmo que se admitisse que a lei estadual adentrasse ao mérito de regular “material bélico” não haveria inconstitucionalidade em razão de a legislação estadual apenas regulamentar especificidades locais sem confrontar as normas gerais.
Portanto a existência de legislação estadual sobre licitação que apresenta contrariedade às normas gerais da legislação federal torna auto evidente a constitucionalidade dos projetos d legislação estadual que reconheçam a efetiva necessidade dos caçadores atiradores.
3.3 – DA ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DA COMPETENCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE COMPETENCIA DA POLÍCIA FEDERAL
Outro ponto de confronto levantado por quem entende ser as legislações estaduais inconstitucionais seria o artigo 24, XXII que prevê a competência privativa da União para definir a competência da polícia federal.
A exemplo dos dois tópicos anteriores, trata-se de alegação vazia que acaba por não guardar conexão com a realidade posta.
Isto porque como descrito no item 02 do presente trabalho a polícia federal, em especial o delegado de polícia federal preserva de forma integral sua competência, exercendo na análise dos pedidos de porte de arma discricionariedade plena, não só podendo como devendo analisar individualmente cada pedido, realizando juízo de ponderação sobre as alegações apresentadas.
Note-se que para alegar influência na competência do delegado de polícia federal seria necessário que a lei federal tivesse efetivamente estabelecido os parâmetros de aplicação do interesse público no caso do conceito indeterminado de “efetiva necessidade”.
É importante ressaltar que durante muito tempo vigorou a Instrução Normativa 23/2005 DG/PF o que previa como inserida na situação de efetiva necessidade os oficiais de justiça.
Oras, estamos falando de Instrução Normativa, ato regulamentar que na pirâmide Kelsen guarda posição superior apenas aos avisos (em geral apócrifos) colados comumente nos vidros dos guichês de atendimento das repartições públicas.
Evidente portanto que em teses tais normativas seriam ilegais uma vez que seguindo a linha de raciocínio dos que sustentam a inconstitucionalidade das leis estaduais, alterariam a competência da polícia federal alterando a forma de decisão dos delegados “concedendo porte” a categorias não previstas nos incisos do artigo 6º da lei 10826/03.
Por que então tal instrução normativa vigorou por tanto tempo sem que fosse declarada ilegal?
Oras, pelo mesmo motivo que as leis estaduais não são ilegais. apesar da instrução normativa prever a efetiva necessidade dos oficiais de justiça, ainda permanecia como necessário que estes pleiteassem seus portes nos termos do 10º, indicando os fundamentos de sua efetiva necessidade, sendo integralmente preservada a discricionariedade do delegado de polícia federal que não raro indeferia os pedidos quando identificado que o oficial de justiça estava lotado ou atribuído ao cumprimento de atividades meramente burocráticas que não o colocavam em conflito com os cidadãos, como por exemplo a ausência de cumprimento dê ordens de busca e apreensão etc.
Assim, se o direito reconheceu como plenamente viável uma instrução normativa, que é um dos menores atos regulamentares possíveis nos termos do Decreto 10.139/19, definir critérios para o exercício da discricionariedade do delegado de polícia federal, tal definição de critérios seria muito mais viável de ser reconhecida através de atividade legislativa estadual, que possui data vênia, legitimidade democrática muito superior, desde que respeitada como ocorreu com a instrução normativa, a possibilidade de exercício de discricionariedade plena do delegado de polícia federal responsável pela análise do pedido.
Considerando que os projetos não concedem porte de arma e apenas regulamentam uma das muitas hipóteses possíveis do conceito aberto de efetiva necessidade, temos que a discricionariedade do delegado de polícia federal está integralmente preservada, não havendo o que se falar em alteração de competência da polícia federal e nem portanto de qualquer inconstitucionalidade.
4 – DA CONSTITUCIONALIDADE EXPRESSA DA LEGISLAÇÕES ESTADUAL
Uma vez afastada as hipóteses de inconstitucionalidade por invasão da competência privativa da união, é viável se fundamentar a previsão constitucional expressa da competência estadual para legislar sobre a questão.
O artigo 24 da Constituição federal regula a competência concorrente da união estados e Distrito Federal para legislar sobre:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[…]
VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
[…]
IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;
[…]
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.“
Pois bem a legislação em questão trata de declaração de efetiva necessidade dos caçadores, atiradores, e colecionadores, para que possam de forma tranquila exercer suas atividades ao reconhecer que tais atividades tornam os indivíduos alvos preferenciais da criminalidade, em especial do crime organizado.
Isto porque a proibição do porte ilegal de arma para estes indivíduos possui possibilidade preventiva de cometimento de crimes muito próximo de zero, se considerada a realidade dos indivíduos que após extensivo processo burocrático, não se aplicando aos CACs apenas o conceito de presunção de Inocência, sendo necessário ir além, dado que se comprova não só a inocência, mas a idoneidade, que significa não apenas não ter sido condenado, como a demonstração de que sequer foi acusado.
Nestas condições, e considerando que os CACs têm acesso não só aos armamentos, mas também ao porte de trânsito destes quando em deslocamento para treinamentos e competições, é fato inexorável que o único fator impeditivo de estar um CAC de posse de sua arma quando fora de sua residência é a própria característica de obediência voluntária às leis que prevalece entre os atiradores colecionadores e caçadores.
Desta feita no caso destes indivíduos em específico, a proibição do porte de arma não possui qualquer efeito na prevenção da ocorrência de crimes, servindo única e exclusivamente de garantia de ausência de resistência útil aos criminosos, bastando a estes que abordem os CACs em situações que lhe permita presumir que a lei garante estar o CAC voluntariamente desarmado em obediência ao comando legal.
Trata se de peculiaridade específica da categoria, cujo reconhecimento pode se dar através do legítimo reconhecimento por parte dos representantes eleitos através de Projeto de Lei Estadual, desde que sem alteração das penas previstas, e desde que claramente preservada a competência do delegado de policial federal para realização da analise individualizada dos pedidos, indeferindo aqueles que se identifique não estarem em razão de suas peculiaridades pessoais inseridas no risco geral reconhecido pelo ato normativo emanado.
A competência concorrente pode ser identificada então, nas seguintes hipóteses:
- Artigo 24, VI que trata especificamente de caça, conservação da natureza, e defesa do solo, uma vez que os caçadores esportivos são os responsáveis atualmente pelo controle do Java porco, espécie invasora que ataca os animais nativos, destrói nascentes, e provoca desequilíbrio ecológico importante.
Ademais, quase que a totalidade da pesquisa sobre estas espécies invasoras é dependente dos relatórios periódicos que são presentados pelos controladores quando encerrado o período de validade da guia de caça emitida pelo IBAMA, sendo que muitos controladores ainda optam por participar de atividade de pesquisa fornecendo amostrar de sangue dos animais abatidos para pesquisa genética conduzida pelo Órgão.
- Artigo 24, VII que trata especificamente da proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico, atividade exercida pelos colecionadores que exercem a curadoria de Produtos Controlados de valor histórico e cultural, bem como das histórias que as circundam;
- Artigo 24, IX, que trata da educação, cultura, desporto, ciência e tecnologia, que engloba não só os atiradores esportivos como as demais categorias as quais, em conjunto, exercem atividade que tem função educacional, cultural, desportiva,
Assim, os projetos de lei por reconhecerem o risco da atividade dos indivíduos que exercem atividades especificamente determinadas em lei federal como curadores de patrimônio histórico, controladores de fauna exótica (caçadores) e esportistas, inseridos em esporte que trouxe ao Brasil sua primeira medalha Olímpica, temos que a legislação estadual está muito mais inserida nas competências do artigo 24 que nas competências do artigo 22 da Constituição Federal
Ainda, temos que está presente o requisito do Artigo 24, § 2º e 3º da Carta Magna que estabelece que a omissão da legislação federal em legislar entrega aos estados competência suplementar para fazê-lo.
Data Vênia, quer por má técnica legislativa, quer pela intenção maliciosa de conceder um poder arbitrário a órgão subordinado ao poder executivo de operar uma revogação tácita do comando do artigo 10 da lei 10826/03, aprovado pela maioria do Congresso Nacional, fato é que o conceito de efetiva necessidade permanece absolutamente indefinido desde a entrada em vigor da lei.
Desta feita, uma vez que nestes quase 20 anos de vigência da lei os governos de ideologia desarmamentista colheram os frutos da omissão legislativa, podem as câmaras estaduais também se aproveitar da ausência de definição do conceito, para em situações específicas dar-lhe significado.
Tal situação não seria possível apenas se em atividade legislativa a União tivesse efetivamente dado sentido ao conceito de “efetiva necessidade”, como o fez por exemplo, com os termos “posse” e “porte” que estão integral e expressamente definidos na lei não havendo possibilidade De interpretações dúbias sobre seu conceito.
Assim, por qualquer motivo que tenha o legislador federal introduzido conceito aberto na legislação, dentro do regramento constitucional vigente, a declaração de que determinada situação fática se enquadra no conceito indeterminado pode sim ser realizada pelos legislativos estaduais.
5 – DA RECENTE DECISÃO DO STF QUE INDICA A CONSTITUCIONALIDADE, CONTRARIO SENSU
Recentemente o STF se debruçou sobre questão similar, na ADI 5.359, cujo relator foi o Ministro Edson Fachin, tendo declarado inconstitucionalidade de legislação estadual aprovada no ano de 2009, que, ao contrário dos projetos de lei de efetiva necessidade, concedia efetivo porte de arma a agentes penitenciários e agentes de segurança socioeducativos do estado de Santa Catarina.
Verificando as diferenças fundamentais entre a legislação considerada inconstitucional e a legislação que reconhece efetivo a necessidade dos CACs, torna-se possível sustentar uma constitucionalidade a “contrário sensu” destas últimas.
É importante ressaltar ainda, que a inconstitucionalidade no caso foi declarada em votação apertadíssima, tendo votado pela inconstitucionalidade os ministros Edson Fachin (Relator), Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Toffoli e Marco Aurélio (06 votos) e votando pela improcedência da matéria os ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Nunes Marques (05).
Ocorre que a atual composição do STF o ministro Marco Aurélio foi substituído pelo ministro André Mendonça, o qual tem um posicionamento muito mais flexível em relação a Liberdade dos indivíduos, sendo lícito presumir que se tal julgamento tivesse ocorrido após a nomeação do ministro Mendonça o resultado seria :
Pela Inconstitucionalidade: Edson Fachin (Relator), Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Toffoli (05)
Pela Constitucionalidade: Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Nunes Marques, André Mendonça (06).
Isto em se tratando de uma legislação que efetivamente adicionava ao artigo 6º da Lei 10.826/03, categoria não lá prevista, e ainda, afastava completamente da possibilidade de análise por parte da polícia federal, como se verifica:
LEI COMPLEMENTAR Nº 472, de 09 de dezembro de 2009.
Art. 55. Os Agentes Penitenciários e os Agentes de Segurança Socioeducativo, ativos e inativos, gozarão das seguintes prerrogativas, entre outras estabelecidas em lei:
I – documento de identidade funcional com validade em todo território nacional e padronizado na forma da regulamentação federal;
II – ser recolhido em prisão especial, à disposição da autoridade competente, até o trânsito em julgado de sentença condenatória e, em qualquer situação, separado dos demais presos;
III – prioridade nos serviços de transporte, saúde e comunicação públicos e privados, quando em cumprimento de missão;
IV – porte de arma aos Agentes Penitenciários, na forma da regulamentação federal; e
V – porte de arma aos Agentes de Segurança Socioeducativo, reservado o uso fora do Sistema de Atendimento ao Adolescente Infrator
Oras, no caso das leis estaduais e seus projetos de leis replicado em outros estados, há apenas o reconhecimento de efetiva necessidade, não alterando a lista Numerus Clausus prevista no artigo 6º da Lei 10.826/06, nem tampouco vinculando a decisão da polícia federal no momento da análise dos pedidos individualmente considerados.
Portanto é possível afirmar, que dada a atual composição dos ministros do STF, se mantida a argumentação utilizada pelos ministros em relação à constitucionalidade das leis estaduais, as que tratam de efetiva a necessidade do CAC, muito menos agressivas ao regramento federal, serão fatalmente jogadas constitucionais, se presumida a aderência do ministro André Mendonça ao posicionamento do ministro Nunes Marques.
6 – CONCLUSÃO
Assim considerando que as legislações estaduais como exposto nos tópicos anteriores não tratam de direito penal, não altera regra geral sobre material bélico e preserva integralmente a competência e a ampla discricionariedade da polícia federal para a análise dos pedidos individuais de porta e de arma.
Considerando ainda que legislação estadual com um conteúdo muito mais agressivo à legislação federal, que efetivamente concedia porte e retirava da polícia federal a análise discricionária do caso concreto foi considerada inconstitucional por apertada margem, que presumidamente não se manteria com a nova composição.
Tudo considerado, é lícito afirmar que, ser mantidas as posições dos ministros em relação a constitucionalidade das leis estaduais para tratar do tema, substituindo se o voto do ministro Marco Aurélio pelo voto do ministro André Mendonça, é altamente provável que as ADIs intentadas contra as leis estaduais sejam julgadas improcedentes permanecendo no ordenamento jurídico as legislações.
1 Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Discricionariedade é liberdade de agir dentro dos limites legais; arbitrariedade é ação fora ou excedente da lei, com abuso ou desvio de poder. O ato discricionário, quando se atém aos critérios legais, é legítimo e válido.
Direito administrativo brasileiro / Hely Lopes Meirelles, José Emmanuel Burle Filho. – 42. ed. / atual. até a Emenda Constitucional 90, de 15.9.2015. – São Paulo : Malheiros, 2016.
2 Greco, Rogério. -Curso de Direito Penal: parte geral, volume I / Rogério Greco. – 19. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017. fls. 38
3 Bruno, Aníbal. Direito Penal: parte geral 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. T. I, p. 54
4 Tiro esportivo rendeu a primeira medalha olímpica para o Brasil https://www.bn.gov.br/es/node/1998#:~:text=Em%201920%2C%20o%20tenente%20Guilherme,em%20diversos%20peri%C3%B3dicos%20da%20%C3%A9poca.