Um dos maiores julgamentos da história moderna tratando sobre liberdade, direito de defesa, legítima defesa e legislação de armas está ocorrendo quando escrevo esse artigo, já gravei vídeo sobre o assunto e por aqui muito pouca gente sequer se lembra do fato em julgamento.[1]
Pior que isso é que muito poucos são os que estão se importando em acompanhar os acontecimentos, muito devido à grande imprensa já ter tomado partido e decidido o destino dos envolvidos, mesmo com a existência de inúmeras gravações e testemunhas destoando da narrativa apresentada.
Até mesmo a lei está sendo ignorada na situação, que se o diga conhecimentos básicos de balística, manuseio e segurança com a arma de fogo pela Promotoria que atua no processo.
Buscando tornar mais fácil a intelecção já que há distinções entre os sistemas de justiça e legislação aplicável, resumidamente imaginem que uma pessoa com autorização para porte ostensivo de arma de fogo esteja com este instrumento em suas mãos, fazendo a proteção de sua segurança e de terceiros.
Por porte ostensivo queremos dizer estar com sua arma primária ou secundária à mostra (arma longa na bandoleira, arma curta ,se houver, no coldre externo) em distinção ao porte velado da arma, onde o instrumento não fica exposto e não pode ser visualizado por terceiros/policiais.
Distinguimos aqui rapidamente e simplificadamente concealed carry do open carry da legislação americana.
No momento de caos instalado, durante o final da tarde e começo da noite de 25 de Agosto de 2020, em uma cidade revirada por manifestações contra violência policial[2], uma onda de protestos anunciada toma conta da cidade e o que se diz pauta organizada gera baderna, depredação de propriedades, incêndios e quebra-quebra generalizado.
Esse cidadão legalmente com uma arma de fogo fazendo a sua segurança e de terceiros, além do que se dispondo a realizar atendimento pré-hospitalar (APH) a feridos pelos arruaceiros, atendimento para o qual tinha treinamento, conhecimento e equipamentos necessários, se desloca entre estabelecimentos comerciais, mantendo contato com outros cidadãos aterrorizados pelos baderneiros.
O seu altruísmo é tamanho que além de promover o atendimento de APH aos feridos, mesmo entre os arruaceiros e baderneiros, também restou demonstrando por ter cedido parte de seu equipamento de segurança pessoal (EDC ou Every Day Carry/carga de todos os dias) em especial seu colete balístico, entregue a terceiro que não dispunha nem mesmo de uma arma para sua segurança.
Nesse cenário, com uma arma longa nas mãos e presa à bandoleira de carga, deslocando-se entre a multidão sozinho, sem perceber passa a ser perseguido por uma horda de mal-intencionados que pretendem tomar-lhe essa arma, agredi-lo ou pior, matá-lo, em especial por ele estar indo contra a intenção do movimento que gerou aquele caos instalado.
Sendo perseguido por um homem sem camisa que lhe arremessa objetos, depois sendo sabido que se tratava de pessoa que acabara de sair do hospital por tratamento psiquiátrico, o homem se vira após um disparo ter sido realizado por trás e para o alto por terceiro, aponta sua arma para o perseguidor que tenta chutá-lo e encurralá-lo, não tendo como se desvencilhar e a menos de 2 metros de distância, atirando contra o agressor que cai para a frente e recebe outros disparos.
Quatro disparos realizados de frente, à curta distância (e nenhum pelas costas como noticiado fartamente pela imprensa), ainda que o atingido caindo para frente tenha recebido um deles nas costas, o que claramente demonstrou a perícia.
Imediatamente o homem liga para a polícia e avisa mesmo sem identificar-se imediatamente – “atirei em alguém”.
A horda de agressores o hostiliza e ameaça. Ao invés de esperar ele decide sair do local e procurar abrigo.
Correndo à pé pelo meio da rua recebe um soco na nuca que arranca seu boné da cabeça, segue de pé mesmo desequilibrando com o golpe pelas costas e, uma rasteira por trás, o leva ao solo, momento em que os manifestantes que o perseguiam o cercam e começam a agredi-lo caído.
Um corre e lhe dá uma voadora, outro com um skate na mão desfere golpe em sua cabeça que o faz capotar. Na nova investida do agressor esse agarra seu rifle puxando o cano da arma e é atingido fatalmente, cai ao solo.
Outro baderneiro se aproxima e aponta uma pistola para a cabeça desse homem sentado no asfalto sendo agredido, que dispara acertando-lhe o braço dissuadindo a ação do agressor.
Mais um agressor se aproximava para covardemente também o agredir quando, vendo o disparo e temendo pela sua vida, desiste erguendo os braços e se rendendo.
Resultado: o homem armado caído ao solo sequer aponta a arma para essa pessoa que desistiu de agredi-lo, agora de braços erguidos, apenas se levanta e sai dali.
Atordoado, com as agressões e disparos efetuados, corre até carros de polícia ainda com a arma em mãos, as viaturas por ele passam, como passaram várias vezes naquela tarde, ora agradecendo o apoio à segurança local, ora perguntando se precisavam de algo e oferecendo água.
Não o prendem nem o questionam mesmo ele mostrando estar se apresentando para esclarecer o ocorrido ou mesmo buscando socorro. Foi preso apenas no dia seguinte.
Feita essa pequena digressão dos fatos fica evidente, sem qualquer outro ingrediente ou propaganda, que uma pessoa armada, com a arma ostensivamente carregada, foi atacada, agredida e fez uso do instrumento exposto e disposto para a sua proteção.
Nenhuma pessoa que não o tenha agredido ou contra ele avançado foi atingida. Nenhum outro disparo foi por ele efetuado.
Ao trazer a história para a nossa realidade um primeiro problema aparece no sentido de estar sendo empregado meio letal (arma de fogo) para a proteção não apenas pessoal, mas também da propriedade e de terceiros.
No caso paradigmático o início da proteção era a uma concessionária, como tantas outras foram alvo de ataques naquelas condições e situações, e as pessoas gratuita ou contratadamente se dispunham a realizar a proteção armada desse patrimônio.
Feito o paralelo, colocado a questão da proteção pessoal, para a nossa realidade, caberia a pergunta se poderia o cidadão estar armado numa manifestação? A resposta clara é NÃO, manifestações somente são autorizadas se pacíficas e desarmadas pela nossa legislação, vide artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal.[3]
Mesmo policiais armados, somente em serviço e ainda assim, para evitar danos maiores, em regra, estariam empregando somente equipamentos menos letais, não munição real, num primeiro e pronto emprego.
Poderia ele se dispor a ir confrontar manifestantes? Lá como cá a resposta também é negativa, não poderia partir para o enfrentamento nem mesmo obstar o direito de manifestação dos terceiros ali desenvolvida.
Em algum momento a manifestação pacífica ao se desvirtuar por atuação de um ou alguns envolvidos, diretamente ligados ao movimento ou estranhos, passando a atacar patrimônio e pessoas, autoriza reação?
Não há dúvida que sim, tanto do Estado polícia fazendo cessar o vandalismo e a baderna, dissuadindo a horda de criminosos que aquela massa se transformar, como também o terceiro que vier a ser pego no movimento, para a sua defesa pessoal. Foi o que aconteceu por lá.
Atacaram uma pessoa armada ostensivamente com um rifle. Ponto.
Agente provocador
Agora a questão no caso enfrentado é – essa pessoa armada, com porte ostensivo autorizado, podendo estar ali armado como efetivamente estava, poderia ser entendida como agente provocador da situação ocorrida: agressões, ataque e reação fatal armada realizada?
É isso que lá está se buscando caracterizar para desqualificar a alegação de legítima defesa.
Em suas alegações finais (closing arguments) a Promotoria que jamais tocou nesse tópico, buscando salvar a acusação que viu desmontar com as próprias testemunhas de acusação e com a pífia atuação do acusador principal, passa a classificar o cidadão armado como agente provocador.
Agente provocador seria aquele que, ciente de sua superioridade de armas, ciente de sua melhor condição de ação por estar armado, cria situação, gera provocação efetivamente para que, com a reação da vítima a essa sua provocação, crie alegação de ter sido ele, provocador, o agredido, para com isso ver justificada a utilização da sua arma portada.
Em síntese: trata-se de criar a situação para valer-se da condição de armado para da arma fazer uso e atingir o provocado.
Simplificando ainda mais: sabendo poder contar com a arma que porta velado, não aparente e sem conhecimento do outro, crio a confusão, provoco o alvo para que ele me agrida ou contra mim invista para, com essa sua (re)ação eu justifique a minha (legítima) defesa.
Demonstrada a minha provocação temos que um requisito essencial para a Legítima Defesa não estaria presente, não haveria injusta agressão eis que, provocada, a agressão sofrida é justa e, portanto, não autorizadora da minha reação armada.
É que se eu vou até o alvo e o ofendo, empurro ou agrido levemente, provocando sua resposta com devolução das agressões, socos e chutes para com isso me ver autorizado a usar a arma que porto escondida (velada), não posso alegar na minha ação legítima defesa.
No caso em julgamento o cidadão está portando ostensivamente um fuzil como lhe é direito naquele estado americano – não há qualquer provocação nesse comportamento.
Além disso, entre os baderneiros, havia pessoas armadas, em porte velado, algumas delas ilegalmente porque condenados por crimes graves e impedidos de legalmente portarem armas naquele estado.
A questão está posta: o porte era ostensivo, ele podia estar armado no local, ele estava atuando para ajudar seja no atendimento de APH que promovia, seja nas orientações que passava, seja mesmo na proteção que prestava aos comerciantes locais, e ele só fez uso da arma de fogo quando encurralado, agredido e quando caído ao solo, sendo atacado e apenas contra quem o atacou até fazer cessar esses ataques.
Pode-se alegar que ele foi agente provocador por estar armado no local? Seria essa sua condição de estar armado uma provocação a lhe desvirtuar o direito a se defender com a arma exposta e disposta para essa defesa?
O agente provocador não pode alegar legítima defesa, quem ataca inicialmente não tem contra si uma injusta agressão em resposta, e sim uma justa resposta a agressão iniciada com a provocação, sendo claro na doutrina e na jurisprudência que o provocador não pode alegar legítima defesa, exceto no que exceder dolosamente à resposta.
O caso real
Lá a questão envolveu um menor, então com 17 anos de idade, foi num contexto de inflamação social e política, altamente combustível, e teve seu julgamento pela mídia realizado desde o momento do fato, mesmo contra as imagens gravadas e transmitidas, de modo a contrariar a lógica e a realidade da situação.
A isso se soma que os atingidos eram todos criminosos condenados e a pessoa armada baleada no braço sobrevivente sequer poderia estar naquele local, ou armada, que se o diga estar utilizando a arma daquela maneira quando foi atingida, e confirmou em seu depoimento em juízo que só recebeu o disparo no braço depois de apontar a arma para a cabeça do menor caído ao solo. O sobrevivente confirmou sob juramento que foi atingido ao apontar a arma para a cabeça do menor armado de fuzil.
Que a legítima defesa é questão de fato e tem que ser analisada caso a caso, por todos os seus diversos elementos constitutivos, isso é universal e indiscutível.
De mesma maneira não se questiona que a pessoa atacada tem o direito de, em querendo e podendo, reagir buscando sobreviver – instinto animal de sobrevivência e reflexo do natural direito à vida.
Ocorre que em um julgamento “N” outros fatores são considerados e levados à influência dos tomadores de decisão, promotor, juiz e jurados, e esses fatores por vezes vão muito além da mera aplicação da lei ou do razoável.
Por vezes a Justiça não se escreve com letra maiúscula e para se evitar uma maior convulsão social ou até mesmo para se garantir a própria segurança, eis que há informes de ameaças inclusive aos jurados e ao juiz da causa, pode-se alcançar uma intranquilidade institucional tamanha que até a garantia de isenção almejada sequer possa ser considerada.
Supressão de provas, desrespeito a procedimentos, desconhecimento do mais básico em segurança e manuseio de armamento e de balística – tudo quanto não poderia se esperar num caso de tamanha repercussão aconteceu e foi televisionado em tempo real. Comentaristas jurídicos falam em aula de que a atuação da Promotoria foi uma aula de como não proceder uma acusação.
Fato por fato, o acuado não provocador pode se defender na medida de suas condições e proporcionalmente à situação: garantia do direito à vida envolve eventual supressão de outra vida se isso exigir e for a única forma de sua sobrevida.
Não se pode desconsiderar que entre o real, o Justo e o aceitável existe o necessário e só quem calça o sapato sabe onde lhe aperta o calo.
O caso envolve, como dito inicialmente, análise do direito à legítima defesa, liberdade e lei de armas e terá reflexos não só na forma de condução do processo, no julgamento pela grande mídia, bem como na conduta das pessoas que nesse caso se espelhem.
E se espera o resultado inclusive com o emprego da Guarda Nacional no entorno do Fórum para eventuais reações à decisão soberana a ser tomada pelo Júri de Kenosha.
Tenhamos fé, e se essa não bastar tenhamos força para buscar compreensão das situações para que possamos nos preparar, treinar, estudar, conhecer e entender, por mais simples que possa parecer, por vezes a simplicidade faz exigir ser feita uma alteração de realidade.
Em especial, alteração da realidade construída pela mídia e pela propaganda criada para justificar a história que se pretendeu contada, ainda que essa seja dissonante da imagem transmitida, restando saber quais as consequências, não só para esse caso mas, em especial, para o trato dessa realidade doravante – quem acompanhou o julgamento parecia estar vendo serem tratadas duas realidades diferentes a depender do veículo de informação que noticiava o caso.
Fiquem vivos, não caiam em contos do vigário, não se deixem levar por silogismos deturpados, estudem sempre, treinem muito e até a próxima, porque ainda que o resultado seja por lá o reflexo tende a vir para cá.
[1][1] Durante a revisão do artigo nesta sexta-feira dia 19 de novembro de 2021 o veredito de não-culpado em todas as acusações foi declarado pelo júri em Kenosha/WI
[2] Importante destacar que o ato que gerou as manifestações acabou sequer sendo processado por se entender que não houve excesso ou abuso policial na ação que levou a óbito Jacob Blake e que originou protestos na cidade
[3] XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;