Considerações Iniciais
Um tema bastante polêmico que suscita várias discussões é justamente quando o operador vem a atirar no oponente e o mesmo, por diversos motivos, encontra-se de costa. Normalmente, em casos assim, a acusação alega que a vítima teve dificultada ou mesmo impossibilitada a sua defesa, induzindo a ideia natural de que o operador foi autor de um crime de homicídio qualificado.
No entanto, em casos dessa natureza, podem ocorrer várias situações e com diversas variáveis que levem o operador a disparar na região das costas do oponente, ou mesmo em que o oponente se posicione de alguma maneira que facilite receber os disparos nas suas costas.
Isso posto, o objetivo desse artigo será investigar essas variáveis e a trazer alguns elementos técnicos para uma melhor compreensão da problemática por parte do leitor.
O Crime de Homicídio
O homicídio é um tipo de crime previsto no Código Penal brasileiro que se apresenta como o ato de uma pessoa matar um semelhante e, a depender do modo de cometimento do crime, pode se apresentar como homicídio simples, culposo, privilegiado e qualificado.
O homicídio qualificado – aquele que normalmente se busca atribuir ao operador, em casos de disparos na parte de trás do corpo do oponente – está previsto no § 2º do art. 121 do Código Penal brasileiro, tendo como sanção prevista a pena de reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta anos). Ou seja, a pena prevista é maior do que a atribuída ao crime de um homicídio simples, que vai de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, estabelecida no art. 121, caput, do CP.
Infelizmente nossos operadores e policiais são injustiçados quando atingem meliantes por de trás, pois ao ocorrerem situações correlatas estes são logo taxados pela imprensa e por “especialistas” como autores de covardes execuções. Entretanto, na grande maioria das vezes, normalmente agiram acobertados pela excludente de ilicitude da legítima defesa.
A Legítima Defesa
A legítima defesa é um instituto legal previsto em nosso Ordenamento Jurídico, no entanto não simples de ser consubstanciado e declarado, pois quem age em legítima defesa se encontra em uma situação tal que não se lhe pode exigir que atue com reflexão e calma.
O fato é que não se pode avaliar as atitudes daquele que age em legítima defesa como que essas sejam passíveis de serem empregadas previamente e precisamente calculadas. Normalmente são ações rápidas, de grande intensidade e que potencializa diversos estressores.
Ocorre que vários “mitos” são difundidos sobre ações tidas como legítimas, mas que na verdade não são. O mesmo ocorre inversamente, ao existirem ações em que o dito popular julga previamente como sendo criminosas, porém, na verdade, foram ações legítimas e amparadas por uma excludente de ilicitude.
Em apertada síntese, a legítima defesa nada mais é que um meio lícito e necessário para repelir todo e qualquer tipo de agressão, quando o Estado não puder resguardar a segurança do agente naquele momento específico, sendo o único meio disponível no momento para proteger o seu direito ou de outrem, repelindo a injusta agressão.
Então para que a legítima defesa seja configurada, serão necessários, de uma forma geral, os seguintes pressupostos básicos: cessar a ação danosa na mesma intensidade, na mesma medida, se possível com os mesmos recursos, sempre privilegiando a preservação da vida como um bem maior, e no momento a qual a agressão ou ofensa esteja ocorrendo.
Assim sendo, o nosso código penal, em seu artigo 25, conceitua o instituto da seguinte maneira: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
No seu artigo 23, o mesmo diploma legal estabelece que “não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa”, no entanto, o agente em qualquer das hipóteses citadas no artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo das suas ações.
Tiro nas Costas e Tiro pelas Costas
A partir de um breve esclarecimento sobre o instituto da legítima defesa é bastante importante também um preciso esclarecimento sobre o conceito estabelecido de tiro nas costas e tiro pelas costas, pois o entendimento adotado irá projetar diversas consequências ao operador executante dos disparos.
O renomado professor Rogério Greco esclarece em sua relevante obra Atividade Policial , de 2016, que “o tiro pelas costas caracteriza-se quando há um ataque súbito, dificultando em muito e até mesmo impossibilitando a defesa da pessoa atingida” e que “ao analisar tal conceito, em primeira análise, o tiro pelas costas poderia indicar a existência de uma qualificadora de homicídio.
Já o tiro nas costas deve ser compreendido como um disparo fruto da movimentação natural do combate, tipo no caso em que um meliante ao atirar em uma pessoa vem a vira-se e como a pessoa já empreendia a sua legítima defesa, pode ser que ocasionalmente, ao realizar múltiplos e rápidos disparos no centro de massa do oponente- sendo esse os procedimentos normatizados nos protocolos de sobrevivência em confrontos armados – atinja, sem o propósito para tal, as costas do mesmo.
Portanto, deve-se distinguir claramente o que se consubstancia em tiro “nas costas” e o “pelas costas”, pois, enquanto este é indício da qualificadora, o tiro “nas costas” pode ser ocasionando em momento de luta.
Ocorre que vários ditos “especialistas”, a mídia e até influentes juristas, por desconhecimento técnico das circunstâncias de uma ocorrência policial e dos confrontos armados, relacionam os dois conceitos como sinônimos e simplesmente associam a palavra tiro mais a palavra costas como mera execução. Um erro inadmissível e com consequências devastadoras para os envolvidos na ação e para a própria segurança pública em um aspecto geral.
Dados Técnicos
O entendimento dos dois conceitos quando elencados como sinônimos é uma aberração absurda, pois para a fiel caracterização de um crime diversos fatores deverão ser levados em consideração e não somente o local de atingimento dos disparos ou mesmo quantidade destes.
Allan Antunes Marinho Leandro, publicou em 2017 uma indispensável obra denominada “Legítima Defesa e Armas de Fogo” e em um dos capítulos discorreu e esclareceu o relevante estudo citado na obra de Di Maio, Gunshot Wounds: Pratical Aspects of Firearms, Ballistics and Forensic Techniques, que correlaciona a reação ao tempo de respostas com armas curtas, vindo a concluir com bastante lucidez que o tiro nas costas e pelas costas tratam-se de conceitos totalmente diferentes e com diversas implicações na realidade prática.
a) O tiro nas costas pode vir a ser caracterizado como legítima defesa?
No estudo citado por Leandro, a questão era esclarecer se uma vítima, ao ver uma arma apontada em sua direção ou a reagir um estímulo externo, teria tido tempo suficiente para virar-se no ângulo de 90º ou 180º desde que o atirador iniciou o processo de disparo até o impacto do projétil.
Sendo assim, foi mensurado o tempo mínimo necessário para atiradores policias dispararem com a arma em punho e apontando para um alvo, após a emissão de um sinal de timer. Nesses testes os dedos dos operadores estavam inicialmente já no gatilho e em outra ocasião fora do gatilho. No entanto, o tempo médio para disparar a arma na primeira situação foi de 0,365 segundos e com o dedo fora do gatilho foi de 0,667 segundos.
Logo após foram filmados voluntários que giravam os seus corpos e troncos em 180º o mais rápido possível. Surpreendentemente o tempo médio para girar o tronco em 90º foi 0,310 segundo, enquanto para o giro de 180º foi de 0,676 segundo.
A conclusão, por fim, é que será plenamente possível que um indivíduo em um confronto, ao ser atingido por um projétil de arma de fogo, venha a girar seu corpo (na intenção de fugir ou mesmo reflexa) e acabe de costas para o atirador, quase que no mesmo instante que o atirador for executar o próximo disparo, sem que para isso este tenha a intenção de atirar nas costas do indivíduo.
Na verdade o atirador estará executando uma das máximas dos confrontos – atire múltiplas vezes o mais rápido possível, afim de cessar a agressão – e provavelmente não perceba a movimentação de giro do indivíduo oponente.
Outra hipótese bastante elucidativa de legítima defesa com disparos nas costas do agressor, o “tiro nas costas” é quando um meliante ao disparar no operador empreende fuga, atirando em sentido oposto ao seu deslocamento e sem nenhum compromisso de onde os seus disparos poderão acertar. Nesse caso o meliante quer intencionalmente e a qualquer custo ferir o operador, ou mesmo aceita a hipótese de ferir ou matar terceiros. Em tal hipótese, como a agressão injusta ainda estará ocorrendo, então, se o operador continuar se defendendo e atirar “nas costas” do agressor estará, portanto, a princípio, amparado pelo instituto da legítima defesa própria ou de terceiros.
b) O tiro pelas costas será sempre uma qualificadora de homicídio?
Após esclarecido que o “tiro nas costas” é plenamente possível de ocorrer, sem caracterizar-se um crime de execução, estando essa atitude em tese protegida pelo instituto da legítima defesa, voltemos ao famigerado “tiro pelas costas”. Essa ação será sempre uma forma qualificada do crime de homicídio? A resposta é não. Vamos apenas a um exemplo para desmistificar esse entendimento.
Em uma situação hipotética, um assaltante, após concretizar sua ação, começa enfurecidamente a atirar em um grupo de pessoas, quando por consequência é atingido por uma outra pessoa que estava na sua retaguarda e que desferiu tiros “pelas suas costas” para fazer cessar a injusta agressão que era impressa a um grupo de inocentes desarmados.
Obviamente que nesse caso não há necessidade de ser nenhum jurista experiente para ter o entendimento claro que há aí um claro exemplo de legítima defesa de terceiros.
Conclusão
Pelos tópicos elencados nos parágrafos do texto escrito nesse singelo artigo, observa-se que a região corporal em que os disparos atingem o oponente, não deve ser determinante para se configurar a ocorrência da qualificadora do crime de homicídio. Pois, torna-se perfeitamente possível a ideia de que alguém atinja um agressor com um “tiro nas costas” ou mesmo “pelas costas” e mesmo assim, seja concedido ao operador/atirador o benefício da excludente de ilicitude da legítima defesa.
Porém é importante registrar desde já que o tiro nas costas ou pelas costas, mesmo encaixado na excludente de legítima defesa, como visto anteriormente, poderá devido a outros diversos fatores se caracterizar como uma ação excessiva.
Bem verdade que o excesso na legítima defesa está intrinsecamente relacionado ao rompimento da relação de proporcionalidade, requisito importantíssimo para a configuração do instituto. No excesso pressupõe que agente agiu em conformidade com todos os elementos da legítima defesa, porém extrapolou na sua conduta, vindo a avançar no limite de até aonde poderia ir a sua ação de neutralizar a injusta agressão.
Nesse caso o agente será punido ao ultrapassar os limites exigidos na sua defesa. Não importando se o excesso se deu por conta da não utilização dos meios necessários, ou se foi excedido o uso desses meios, usando-os sem moderação.
Portanto, se o excesso se constituir em dolo, responderá o agente pelo dolo que diz respeito ao excesso e não à sua ação de defesa. Se constituir culpa, responderá pela culpa também no que diz respeito a ação e não sobre a ação defensiva. Contudo existe o excesso que não é punível que será abordado em um artigo próximo.
A conclusão que podemos ter, pelas análises anteriormente elencadas, é que atirar em um oponente, em o mesmo estando de costas, é plenamente possível sem assim incorremos em um crime de homicídio qualificado. Em atividades de tamanha complexidade como um tiroteio, aonde precisamos sobreviver, não poderemos calcular friamente as ações a serem desenvolvidas. Tudo ocorrerá em questões de segundos e nosso corpo estará sendo totalmente influenciado pelos estressores do combate, em que qualquer ação errada custará as nossas vidas.
Por fim, nessa situação, mesmo cometendo um ato típico, como matar alguém, ainda poderemos sermos privilegiados pela excludente de ilicitude da legítima defesa. Pois a pessoa que nos agride tornou-se um oponente que quer acabar com o bem mais valioso que Deus nos deu, a nosso vida. Para isso o entendimento conceitual do que se entende por tiro nas costas e pelas costas é imprescindível para o aspecto da sobrevivência, porém o mais importante, além do entendimento conceitual, será a compreensão do cenário que estamos participando e a nossa consciência situacional ao executarmos todas as ações defensivas necessárias para a sobrevivência.
Vá e Vença!