Introdução
Quero pedir alguns minutos do seu dia para falar sobre um conceito que provavelmente vai te ajudar a entender mais da metade dos problemas de gestão da atividade operacional da segurança pública: A Alienação Operacional.
O nome alienação tem significados diferentes quando analisamos áreas diferentes do conhecimento como o direito ou a psicologia, mas de um modo geral trata de uma diminuição da percepção da realidade, um afastamento. Pessoas alienadas em relação a algo possuem uma percepção afastada da realidade, desconectada do que realmente importa e isso acontece por algum motivo.
Tudo bem, a filosofia está ótima, mas o que isso tem a ver com a gestão da segurança pública e treinamento? É aí que entra o conceito de “Alienação Operacional”.
O que é Alienação Operacional?
Clausewitz falou em seu livro “Da Guerra” sobre o conceito de “fricção”, afirmando que se tratava dos detalhes que diferenciavam a guerra no papel (planejamento) para a guerra de verdade. Basicamente, ele estava falando que pessoas que não compreendiam as fricções do campo de batalha não conseguiam planejar com eficácia, pois estavam alienadas operacionalmente. Suas decisões não estariam baseadas no que realmente importava. Trazendo esse ensinamento para o planejamento operacional moderno da segurança pública, conseguimos compreender com facilidade problemas operacionais como a aplicação inadequada de efetivo no terreno, estabelecimento de metas irracionais, capacitações sem conexão com a realidade e uma fé um tanto cômica no êxito de algumas missões mal planejadas.
Já tive a oportunidade de observar briefings de missões sensíveis onde foi dado destaque para questões irrelevantes, mas em momento nenhum foi falado sobre a forma de comunicação e sobre contingências comuns de toda e qualquer operação, como os meios existentes, características do terreno, etc. Claramente eram pessoas com alienação operacional, que pouco vivenciaram a realidade da atividade e agora são responsáveis pelo planejamento estratégico dessas ações de risco.
Memória instável
Agora deixa eu falar algo mais interessante ainda: Pessoas com muita experiência operacional podem sofrer com essa alienação da mesma forma ou até com maior intensidade que os demais. Como isso seria possível?
A explicação, em parte, está na neurociência. Vou tentar resumir a ideia. A construção da nossa memória não funciona como a maioria das pessoas pensam, onde um evento é registrado e fica armazenado para ser acessado posteriormente, com a informação intacta, como em uma biblioteca. Todas as vezes que um evento é acessado ele se torna instável e a memória pode ser modificada, ressignificada. Parece loucura mas faz bastante sentido. Vários tratamentos para fobias e vícios são baseados nessa premissa da instabilidade da memória. Ao longo do tempo os eventos passados podem ter seu significado e interpretação modificados pelo cérebro para obter vantagem de sobrevivência em novos ambientes. A memória não foi feita para lembrarmos do passado, mas para sobrevivermos ao futuro. Que loucura né?
“Contudo, para memorizar é, igualmente, fundamental esquecer. Com efeito, o esquecimento é essencial na definição do equilíbrio dinâmico entre a aquisição e a perda de informação, permitindo filtrar e reter apenas aquela que é relevante.”
(Neurociências, 2017)
Mas, onde a questão da capacidade de decisão operacional entra nisso?
Profissionais que tiveram larga experiência operacional, ao se afastarem fisicamente dessa realidade, podem facilmente modificar o entendimento que possuíam sobre fricções importantes das missões que desempenhavam e tomar decisões operacionalmente alienadas. O detalhe que pode tornar isso pior do que com a pessoa que não tem experiência na atividade é que esse profissional terá maior crença na efetividade dos seus entendimentos e muitas vezes pode acabar ignorando percepções importantes de outras pessoas e fazendo aquela conhecida afirmação: – eu sei do que eu estou falando. Fiz isso minha vida toda!
De acordo com o livro “Psychology of Intelligence Analysis” (2019), de Richards J. Heuer, mentalidades são formadas rapidamente mas resistem às mudanças, então quando conhecemos e entendemos algo e esse algo muda, nós demoramos a aceitar isso e continuamos vendo e interpretando de acordo com o que ele era antes.
Por último, é importante compreender também que essa alienação operacional pode ocorrer simplesmente por que o mundo muda, sempre, o tempo todo. Quando a gente se afasta de determinada realidade e tempos depois retorna, assumindo que nada mudou, já estamos cometendo um erro gigantesco e isso pode colocar a perder toda a brilhante experiência que adquirimos durante nossa vida profissional.
Como evitar a alienação operacional?
Das estratégias que aprendi durante minha vida profissional, a melhor de todas ainda é: observar e ouvir! Um conhecido psiquiatra de Sergipe, Dr. Aloísio, falava sempre em suas palestras: -quem observa comportamento, prevê comportamento!
Continuar absorvendo informação e comparando com a informação que você já tem é uma ótima maneira de sobreviver ao nosso mundo caótico, segundo o pensamento de John Boyd. Não ache que as coisas que você aprendeu servirão para sempre. Ouça as pessoas próximas a você e vá no terreno viver as consequências daquilo que você decidiu.
O conceito Genchi Genbutsu da Toyota (Vá e veja)
Sobre ir no terreno ver o que está acontecendo de verdade, importante destacar aqui o conceito de gestão da montadora japonesa Toyota, chamado Genchi Genbutsu, que pode ser traduzido como “vá e veja por si mesmo”. Encontrei sobre isso no livro de Amy Herman, “Inteligência visual” (2016), e me chamou atenção pois os japoneses perceberam, várias décadas atrás, que para entender de maneira completa a realidade você precisa estar próximo de onde as coisas acontecem. Não dá para tomar boas decisões sobre os rumos de uma fábrica apenas analisando relatórios dentro de um escritório. Foi com base nisso que surgiram inclusive programas de televisão onde o dono da empresa se disfarça como um funcionário e vai acompanhar a rotina de trabalho em algum setor que quer conhecer melhor e talvez ter uma nova perspectiva que ajude a tomar melhores decisões.
Já pensou se todos os gestores de efetivo precisassem atender ocorrência em viatura com apenas mais um policial? Se todo despachante de central de operações precisasse ir nas ocorrências para as quais ele frequentemente envia essas viaturas com dois policiais sem apoio? Como seria se o instrutor policial precisasse colocar em prática aquilo que ensina em sala de aula? É difícil respeitar alguém que não possui a coragem de ser usuário do próprio planejamento, mas acabamos vendo isso todos os dias em nossa profissão.
Conclusão
É fundamental compreender que o processo de alienação operacional começa inevitavelmente quando você se afasta da realidade da atividade fim, mas não inviabiliza a boa tomada de decisão, capacidade de instruir ou liderar aqueles que estão no contato diário com as fricções da missão. É necessário aceitar a existência do fenômeno e remediar seus efeitos com boas doses de reflexão, empatia e ser capaz de sair da zona de conforto para continuar aprendendo sobre aquilo que você ensina e continuar solucionando problemas ao invés de passar a criá-los.
Referências Bibliográficas:
1-CLAUSEWITZ, C. Da Guerra. WMF Martins Fontes. 2017.
2-FORD, D. When Sun-tzu Met Clausewitz: The OODA Loop and the invasion of Iraq. War bird Books, 2017.
3-GROSSMAN, D. On Combat: The Psychology and Physiology os Deadly Conflict in War and in Peace. Book Baby, 2017.
4-Herman, Amy E. Inteligência visual: aprenda a arte da percepção e transforme sua vida. Tradução George Schlesinger. – 1.ed.- Rio de Janeiro: Zahar,2016.
5-Jr, Richards J. Heuer. Psychology of Intelligence Analysis. Eastford: Martino Fine Books, 2019.
6-Kandel, Eric R. …[et al.]. Princípios de neurociências. Tradução: Ana Lúcia Severo Rodrigues… [et al]; revisão técnica: Carla Dalmaz, Jorge Alberto Quillfeldt. -5.ed.- Porto Alegre: AMGH, 2014.
7-Lefrançois, Guy R. Teorias da aprendizagem: o que o professor disse / Guy R. Lefrançois; tradução Solange A. Visconte; revisão técnica José Fernando B. Lomônaco. – São Paulo: Cengage Learning, 2019.
8-Magrini, Marco. Cérebro: Manual do Utilizador. Marco Magrini; tradução: Carlos Aboim de Brito; revisão: Florbela Barreto. Porto Salvo, Portugal. Ed. Saída de Emergência, 2019.
9-Rego, Ana Cristina. …[et al.]. Neurociências. -1.ed.- Lisboa: Lidel, 2017.