No dia 12 de novembro de 1984, Dethorne Graham, um funcionário do Departamento de Transporte da Carolina do Norte (EUA), apresentou um quadro de hipoglicemia. Ele pediu a um amigo para levá-lo até uma loja de conveniência para que pudesse comprar um suco de laranja.
Quando entrou na loja, Graham percebeu uma viatura policial estacionada em frente ao local, mas não deu muita importância para isso, pois precisava de açúcar e não podia esperar. No interior do estabelecimento, Graham viu que havia muitos clientes na fila. Então ele saiu correndo e pediu ao amigo para levá-lo para outro lugar. O policial M.S. Connor, do Departamento de Polícia de Charlotte, viu Graham entrar na loja e depois sair correndo, numa circunstância compatível com um assalto.
No mundo inteiro, policiais são treinados para procurar coisas suspeitas e investigá-las. E foi exatamente o que Connor fez. Ele seguiu o carro no qual Graham estava e o parou poucos quarteirões adiante. O motorista do carro, William Berry, disse ao policial que Graham era diabético, mas Connor pediu que os dois aguardassem até que ele descobrisse o que havia acontecido na loja.
Quando Connor voltou para a viatura para pedir apoio, Graham saiu do carro, correu em volta dele duas vezes e, finalmente, sentou-se na calçada, onde desmaiou por um instante.
Quando o reforço chegou, um dos policiais rolou Graham sobre a calçada e o algemou firmemente com as mãos para trás. Vários policiais levantaram Graham por trás e o colocaram com o rosto contra o capô do carro de William Berry, que já havia pedido que os policiais dessem um pouco de açúcar para o amigo.
Recuperando a consciência, Graham pediu aos policiais para verificarem um cartão (com informações sobre sua doença) que estava na carteira. Em resposta, um dos policiais ordenou que ele ficasse quieto e empurrou seu rosto contra o capô do carro. Os quatro policiais pegaram Graham e o colocaram no interior de uma viatura.
O amigo de Graham trouxe um pouco de suco de laranja até a viatura, mas os policiais impediram sua aproximação. Connor recebeu um relatório de que Graham não havia feito nada de errado na loja de conveniência. Finalmente os policiais levaram Graham para casa e o libertaram. Durante seu encontro com a polícia, Graham sofreu um corte no pulso, esfolou a testa e machucou o ombro.
Após o episódio, Graham processou o Estado e os policiais alegando que eles usaram força excessiva durante a abordagem, violando os direitos assegurados pela Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos. A Quarta Emenda afirma que “O direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres contra busca e apreensão ARBITRÁRIAS não poderá ser violado…”
A que disse a Suprema Corte Americana
Então a Suprema Corte determinou que um padrão de razoabilidade objetiva deveria se aplicar a qualquer alegação de uso excessivo da força policial (letal ou não) durante buscas pessoais ou prisões. Apesar disso, a justiça americana considerou que a ação policial foi razoável em relação à informação prévia repassada pelo policial Connor e apropriada para a circunstância, sendo que o uso da força não havia sido mal-intencionado ou propositalmente usado para causar danos ou ferimentos.
Na sequencia, o tribunal delineou uma lista (teste) com considerações relevantes sobre o uso da força policial para equilibrar os direitos de civis e policiais (sociedade e estado): a gravidade do crime em questão; se o suspeito representa uma ameaça imediata para a segurança dos policiais ou terceiros e se o suspeito está ativamente resistindo à prisão ou tentando empreender fuga.
O Presidente da Suprema Corte Americana (1986 a 2005), William Hubbs Rehnquist, INTELIGENTEMENTE resumiu o caso com as seguintes palavras:
A razoabilidade de um uso particular da força deve ser julgada sob a perspectiva de um policial sensato no local da ocorrência, e não com uma visão retrospectiva 20/20. O cálculo da razoabilidade deve consistir no fato de que os policiais são frequentemente obrigados a fazer julgamentos em frações de segundo – em circunstâncias que são tensas, incertas e que evoluem rapidamente – sobre a quantidade de força que é necessária numa situação particular. O teste de razoabilidade não é capaz de uma definição precisa ou aplicação mecânica.
Isso significa que o policial deve aplicar níveis constitucionais e apropriados de força com base nas circunstâncias singulares de cada caso. A força aplicada por um policial deve ser compatível com aquilo que outro policial sensato faria na mesma situação. Além disso, a Suprema Corte (americana, é claro!) afirmou que o fator mais importante a considerar na aplicação da força é a ameaça ou percepção de ameaça enfrentada PELO POLICIAL E SEUS COLEGAS NO LOCAL DA OCORRÊNCIA.
E no Brasil
Por volta das 22h do dia 4 de setembro de 2009, uma equipe policial foi informada de que três homens armados tinham, com uso de grave ameaça, roubado um carro e se dirigiam para uma estrada. A equipe montou uma barreira com o objetivo de prender os criminosos e recuperar o veículo. Entretanto os delinquentes desobedeceram à ordem de parada e seguiram pela estrada em alta velocidade, forçando os policiais a iniciarem uma perseguição. Em certo momento, um dos policiais disparou um tiro e acertou o pneu do carro roubado.
Com o pneu furado, o veículo roubado foi obrigado a parar e os ocupantes desceram. Segundo os policiais, com a parada do veículo, o criminoso que estava no assento traseiro do lado direito, “abriu a porta, saiu com uma arma em punho e efetuou disparo contra a viatura”. Nesse momento a equipe reagiu e um dos policiais acertou um tiro de fuzil no agressor, que morreu no local.
Em 2017, a Direção da polícia emitiu uma nota informando que as investigações internas sobre o caso demonstraram se tratar de “…um quadro claro de legítima defesa em uma ação que se desenvolveu dentro dos protocolos de atuação da Instituição.”
Mas três dias antes da publicação da nota, outra instituição concluiu o contrário. A denúncia, em desfavor do policial, rejeitou a alegação de legítima defesa ao interpretar um laudo pericial.
O laudo informou o seguinte:
Em relação à Arma nº 3, Revólver marca
, calibre .38 SPECIAL, com número de série suprimido, capacidade de 5 (cinco) tiros, apresentada em sede da OC, tendo sido recebida com 5 (cinco) cartuchos de calibre .38, ‘dois deles com marcas de percussão na espoleta (não deflagrados)’, grifo nosso, relacionada ao fato, teve o ‘Exame de Eficiência’, onde obteve resultado satisfatório em ação simples (necessário engatilhamento prévio do cão), contudo em ação dupla (procedimento normal de acionamento direto do gatilho) apresentou desalinhamento no conjunto percussor-câmara, fazendo com que o percussor incida excentricamente na espoleta (ou fora dela) do cartucho depositado na câmara, por vezes, não a detonando, acarretando falhas de disparo.
A denúncia citou que a arma usada pelo criminoso possuía cinco cartuchos, sendo dois não deflagrados, apesar das marcas de percussão. Como nenhum dos cartuchos foi utilizado, NÃO HOUVE O EFETIVO TIRO. Sem o tiro, não haveria que se falar em legítima defesa, portanto.
O documento inspira algumas perguntas: se um policial for atacado por um agressor com uma faca, sua alegação de legítima defesa só será consistente se a arma tiver sido cravada no seu corpo? É preciso esperar o golpe para depois reagir? E quanto ao cartucho deflagrado? O laudo informou a expressão POR VEZES, isso não significa o contrário de SEMPRE? E o funcionamento em ação simples?
O Auto de Apreensão apontou que o revólver .38 SPL usado pelo criminoso estava municiado com “quatro cartuchos do mesmo calibre, todos da mesma marca e UMA CÁPSULA.”
Sendo assim, é possível afirmar que a arma possuía cinco objetos dentro do tambor: quatro cartuchos (dois intactos e dois percutidos, mas não deflagrados) e um estojo/cápsula. Portanto, o criminoso ainda dispunha, no mínimo, de mais duas chances de tiro, sem contar a chance de os cartuchos não deflagrados funcionarem numa nova rodada do tambor.
Padrão de Razoabilidade
Agora vamos examinar o caso conforme o teste de razoabilidade delineado pela Suprema Corte Americana:
- Os crimes cometidos pelos suspeitos eram graves? SIM. Roubo (mediante grave ameaça a pessoa, exercida com emprego de arma e concurso de duas ou mais pessoas); porte ilegal de arma de fogo; resistência; direção perigosa e tentativa de homicídio.
- Os suspeitos representavam uma ameaça imediata para a segurança dos policiais ou terceiros? SIM. Representavam ameaça imediata para os usuários da rodovia (no caso de um acidente de trânsito) e para os policiais (forçados à uma perseguição em alta velocidade em razão da desobediência e resistência dos suspeitos, além da possibilidade de ferimento grave ou morte provocado por disparo de arma de fogo).
- Os suspeitos estavam ativamente resistindo à prisão ou tentando empreender fuga? SIM.
- Outro policial sensato reagiria da mesma forma ao perceber uma arma sendo apontada para ele após uma perseguição a um veículo roubado, onde já se sabia da presença da arma de fogo? SIM.
Contudo o teste de razoabilidade não é capaz de uma definição precisa ou aplicação mecânica para cada situação vivenciada pelo policial, conforme entendeu o Presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, William Hubbs Rehnquist. Ele afirmou que o uso da força deve ser avaliado sob a perspectiva de um policial sensato no local e no momento da ocorrência, e não sob o olhar frio, retroativo, distante e perfeccionista.
Segue o documento
Pelo que se infere, o denunciado, sendo policial e apto a usar armas de fogo, tem plena ciência de que só deve utilizá-las em situações estritamente necessárias. E, portanto, ao efetuar um disparo de fuzil, arma de extrema precisão (tanto que acertou a vítima de trás para frente na região da nuca), com o intuito de repelir uma (suposta) ameaça, materializada no uso de arma de fogo – mas, frisa-se novamente, sem que a vítima tivesse efetivamente efetuado qualquer disparo –, pretendeu o resultado lesivo grave (no caso, a morte).
É seguro dizer que a situação naquela rodovia foi tensa, incerta e evoluiu rapidamente, uma vez que o incidente foi relatado como um confronto que começou com uma barreira, uma perseguição e um tiroteio no meio da rua.
Não resta dúvida de que o policial utilizou sua arma de fogo numa situação de rigorosa e extrema necessidade. Naquela circunstância, qualquer policial sensato (em qualquer parte do mundo) faria exatamente o que o agente fez. Não é por outro motivo que ele não foi o único a disparar contra o agressor. Uma colega fez o mesmo, porém sem acertar. Quer dizer, os dois policiais (um homem e uma mulher) tiveram a mesma reação durante a mesma situação de ameaça imediata, quando o criminoso saiu do carro e apontou uma arma para a equipe. A diferença é que um acertou e o outro errou.
“Ir devagar” nem sempre é possível, pois na maioria das vezes o policial é atacado de repente. Qualquer um que perceba uma arma de fogo sendo apontada na sua direção precisa ser mais rápido e preciso, se quiser continuar vivo. Mas se já é difícil explicar o óbvio, imagine falar sobre o ciclo OODA (Observação, Organização, Decisão, Ação), os tempos de reação, as questões ligadas ao estresse, tudo explicando o tiro na nuca do agressor.
Do mesmo modo, é desumano exigir que o policial tenha, no momento do confronto, a capacidade de saber se a arma de fogo do criminoso está funcionando ou não, se tem ou não munição na câmara, se está travada ou destravada, se os acionamentos percutem a espoleta, mas não iniciam a pólvora, se funciona em ação simples, mas não em ação dupla (por vezes).
É igualmente inadmissível supor que o policial só possa lutar pela própria vida APÓS OUVIR O TIRO da arma do agressor, mesmo com a sirene da viatura ligada e as distorções e inibições sensoriais produzidas estresse.
A falha da munição não eliminou a intenção hostil do agressor, pois o que contava era a percepção da ameaça tida pelos policiais. Para eles, a falha da munição, conhecida no laudo, foi uma questão de sorte. Vale lembrar que o criminoso possuía mais dois cartuchos intactos que poderiam ter sido disparados não fosse o tiro do policial que interrompeu a agressão. Mesmo assim, o agressor apontou a arma e pressionou o gatilho duas ou três vezes. Se isso não é vontade de matar…!
A denúncia também afirmou que o fuzil era uma arma de extrema precisão. O uso de uma arma de extrema precisão reforçaria a intenção de matar do policial. Qualquer arma de fogo é um instrumento de precisão variável. Essa precisão depende de alguns fatores, tais como: habilidade do atirador e sua condição emocional, acessórios acoplados, distância, características da munição, condições climáticas, horário, etc. Assim, qualquer variação num desses fatores pode eliminar o caráter de precisão de uma arma de fogo, seja ela qual for.
Provavelmente o fuzil utilizado pelo policial não possuía uma mira especial. E mesmo que houvesse um dispositivo ótico acoplado, ele seria inútil considerando a emergência da reação, a curta distância do alvo e a circunstância da ocorrência. Portanto é possível supor que o policial apontou rapidamente na direção do agressor e disparou. Mais uma vez a sorte esteve presente no confronto e o projétil encontrou seu alvo.
*A denúncia não prosperou.