Há cinco dias andávamos atrás dos búfalos. Saíamos ainda escuro e íamos de Toyota até perto das serras. Depois abandonávamos o carro e seguíamos a pé pelo vale, procurando um bom vento, checando se as poucas aguadas que ainda resistiam ao sol implacável da África tinham recebido a visita das manadas durante a noite. Quando conseguíamos encontrar rastros novos, iniciávamos a perseguição. Às vezes, andávamos até o fim da tarde para conseguirmos chegar perto de uma das manadas. E quando chegávamos, não tínhamos nenhuma garantia de que o cliente daria um tiro. Pois não procurávamos búfalos, procurávamos “O búfalo”. Quando coloco isso entra aspas, quero dizer que não é qualquer animal que serve.
Queríamos um bom macho. De preferência velho, com boças largas e completamente endurecidas. Não estávamos preocupados com recordes ou comprimento de chifres e sim com a maturidade do animal. Afinal, o meu amigo e cliente Marco Demeterco pensa como eu. E para nós o que faz a caçada é o lance e não algumas polegadas a mais nas pontas dos chifres. Ainda sobre esse raciocínio, cabe aqui um dizer de muita sabedoria proferido pelo meu amigo e colega português Manuel Vassalo. Ele diz que todo animal, desde que bem caçado, é um grande troféu. Seja ele um pequeno Dik-Dik de três quilos ou um grande elefante da savana com seis toneladas.
Então procurávamos um búfalo velho cheio de cicatrizes de lutas passadas que já tivesse cumprido com folga o seu papel de reprodutor, distribuindo a sua boa genética para várias outras gerações que seriam o futuro da manada. Até já tínhamos chegado a duas pequenas manadas, mas eram compostas de velhas fêmeas com crias e machos muito jovens.
A volta dos búfalos, naquela propriedade de seis mil hectares, já era conhecida pelo nosso pisteiro negro, o Shinhama. Naquela época do ano eles bebiam durante a noite, pastavam de madrugadinha nos vales planos e, assim, que clareava o dia eles subiam as serras íngremes onde se abrigavam do sol, no terreno mais alto e arborizado. As serras eram um terreno dificílimo para caçar. Lá os ventos eram inconstantes e as subidas e descidas repletas de pedras soltas que dificultavam de mais as nossas longas caminhadas. Eu levava um GPS e por curiosidade, media as nossas jornadas diárias. Andávamos em média dezenove quilômetros por dia e, naquele dia nós havíamos saído bem cedo, pois na tarde anterior já quase escurecendo, tínhamos visto um grande macho, em uma manada pequena de pouco mais de vinte animais, em um vale aberto com poucas árvores.
Até andamos alguns quilômetros atrás dele, mas o terreno era muito aberto e nunca conseguíamos distância de tiro. Quando eles finalmente pararam para pastar, já no finzinho do dia, misturaram-se com uma manada grande de Gnus. E os Gnus, ou “Bois cavalos” como gostam de chamar os portugueses erradicados em Moçambique, além de possuírem uma ótima visão, são muito desconfiados e observadores. Quando suspeitam que algo está errado, eles emitem um alerta soprado, uma espécie de espirro forte e muito alto. E isso espanta qualquer forma de vida que estiver por perto. Eu até acho que é por isso que os búfalos gostam tanto de misturar-se com eles e também com as zebras. Deve ser algum tipo de relação simbiótica onde uma espécie de alguma forma, tira proveito da presença da outra.
O sol ainda não havia saído, mas o dia já estava claro. Um laranja bem escuro e bonito surgia por trás das serras nos dizendo que aquele seria mais um dia de altas temperaturas, no sertão africano. Nós seguíamos ainda pela estrada sofrendo com o frio do início de julho. Nessa época em Moçambique é assim, dias quentes e noites geladas. Por isso, estávamos encolhidos em cima das cadeiras do Land Cruiser e vínhamos rápido, quando o Shinhama viu e disse alguma coisa. Demos alguns tapas no teto do carro e o motorista parou. E, sem nada dizer, ele desceu e andou alguns metros para trás olhando atentamente para o chão. Investigava a terra dura batida pelo vai e vem dos pneus. Eu olhava lá de cima do carro e não via nada. Mas logo ele nos chamou e disse que os búfalos haviam bebido na lagoa, e ao invés de subirem as serras desceram para o vale. Acho que a nossa constante perseguição lá, nas serras, mudou a rotina deles. Achei aquela uma ótima notícia, afinal caminhar no vale plano é bem melhor que andar no terreno íngreme e pedregoso das serras.
Desembarcamos todos, e rapidamente nos livramos das roupas de frio. Depois carregamos as armas e andando em fila começamos a seguir a pista dos búfalos que tinham atravessado, ali, a estrada. Na ocasião estávamos eu, os amigos e clientes Marco Demeterco e Agostinho Blasius. E ainda, meu colega e também PH Edgar Cordeiro, o metre Manuel Vassalo e o Shinhama que puxava a ponta da fila e seguia em sua interminável tarefa de interpretar uma história escrita por algumas dezenas de cascos durante a madrugada anterior.
Andamos seguindo o rastro mais ou menos uma hora. Sempre às voltas, nunca em linha reta. Os búfalos caminhavam pastando e, por isso, quem escolhia o caminho era a altura do pouco capim que ainda restava naquela linda planície. E nós seguíamos atrás deles, refazendo fielmente o percurso original. Andamos até chegar a um varjão fechado, coberto por árvores mais altas, vegetação espinhenta e muitas moitas de micarias. O chão era um tapete de gramínea. Dava para ver que naquele baixão empoçava água na época das chuvas, por isso o capim era mais alto e aguentava melhor a seca. O lugar também tinha arvores altas e proporcionava pontos de muitas sombras, portanto ideal para o descanso dos búfalos nas horas mais quentes do dia.
Logo que entramos o Shinhama foi logo dizendo:
– Eles tão ai dentro doutor Vassalo…
Eu senti tanta confiança e certeza na frase dita por ele que me animei. Ele mais uma vez pediu silêncio absoluto e seguimos em fila andando bem devagar e atentos. Descemos uma ladeirinha pouco íngreme e entramos de vez no varjão de capim mais alto. La adiante, a vegetação foi se fechando em árvores maiores e centenas de arbustos bem encorpados. Logo à frente, havia um tronco grosso caído embaixo de uma sombra muito fresca. Sentamos lá por alguns instantes, bebemos uma água e em total silêncio nos pusemos a escutar.
O Shinhama se adiantou uns dez metros e na fronteira da sombra da árvore com o sol quente, ele se abaixou de cócoras, sentado sobre os calcanhares tirou o chapéu de pano e de cabeça baixa ficou quieto, apenas escutando. Logo, eu o vi levantar o dedo indicador direito e olhar para nós por sobre o ombro com um grande sorriso no rosto. Em seguida, veio abaixado e disse no meio da roda:
– Estão logo aí na frente… Vamos fazer igual aquele dia doutor Vassalo.
Eu não havia escutado nada, os outros também não. Mas confiávamos plenamente em sua capacidade auditiva superior e, em seu instinto de caçador. Eu também não sabia como eles tinham feito “aquele dia”, provavelmente, teria sido uma caçada do ano anterior, mas como um aprendiz dedicado eu iria fazer exatamente o que eles mandassem.
O vendo continuava bom e firme sem mudar de direção. Abaixados e protegidos pela vegetação seguimos por um pequeno caminho. Fomos até onde a manada saiu da fila e espalhou-se. Protegidos por algumas moitas espinhentas, já víamos alguns vultos pretos e já podíamos escutar claramente a vegetação se partindo e o caminhar de animais pesados lá na frente. A manada era grande. Eles tinham acabado de se levantar e parte dela começava a caminhar na direção de uma campina completamente aberta que ficava depois daquela sombrosa mata.
O Shinhama trocou lá algumas ideias com o Vassalo e o Edgar e, eles definiram um plano de ação. A nossa turma era muito grande para uma aproximação direta. Resolvemos nos dividir. Parte da turma ficaria naquele lado da vereda e o resto atravessaria lá mais adiante para o outro lado. Eu fui designado para seguir o Shinhama, o Vassalo e o Marco. Faríamos uma caminhada rápida em forma de meia lua, e esperaríamos os búfalos na borda da vereda de mato alto com o campo aberto. Eles pareciam seguir lentamente para aquela direção, quando saíssem da vegetação mais alta para o campo aberto, nós teríamos uma ótima visão deles e uma boa distância de tiro. Assim, poderíamos escolher um bom macho e fazer fogo. Tínhamos a certeza de que chegaríamos ao ponto da emboscada primeiro do que eles, pois os búfalos caminhavam lentamente, parando para comer aqui e ali.
Sem demora deixamos parte da turma lá atrás das moitas e voltamos ao ponto onde tínhamos parado para descansar minutos antes. De lá iniciamos em marcha rápida o “corte” e tudo correu bem. Chegamos ao ponto da emboscada e nenhum búfalo havia saído na campina ainda. Cinco zebras é que lá estavam em campo aberto e nós tivemos que romper bem devagar nos últimos metros para não alertá-las. Uma delas era um garanhão lindo e como gostava de dizer o Mestre Vassalo. Aquele já merecia um “estoiro”.
Atrás de uma moita armamos as varas de tiro, checamos, novamente, o vento e nos sentamos no chão à espera dos búfalos que a qualquer momento surgiriam do mato para o campo, uns cinquenta metros à frente. E não demorou nadinha, logo conseguimos escutá-los. Mas eles vinham espalhados e bem mais próximos da nossa posição do que imaginávamos. Tivemos que nos deitar no chão para esconder-nos melhor. E foi deitado no chão, olhando em meio à vegetação que eu vi os grandes vultos negros atrás da de uma ilhota de mato ralo, que nos protegia.
Eles não estavam a mais que trinta metros da nossa posição. Percebemos que parte da manada iria sair a nossa frente e a outra parte as nossas costas. Esses, certamente, iriam nos pegar o cheiro e aquilo começou a ficar perigoso. Porém, agora nós não tínhamos mais o que fazer, não tínhamos mais como nos mexer, nos restava ficar atentos e esperar. A coisa evoluiu e os búfalos não saíram a limpo como pensamos. Ao invés disso passaram as nossas costas e seguiram pastando protegidos pela segurança da vereda mais fechada. Uma vaca com cria passou a menos de dez metros de nós, mas não nos sentiu. Aliás, aquele era o nosso dia de sorte, pois assim que os búfalos mudaram seu itinerário o vento, lentamente, virou nos colocando de volta ao jogo.
Fechamos as varas de tiro e voltamos para dentro da vereda andando de quatro pés. Naquele momento nós estávamos literalmente entre eles. Procurávamos de joelho por um bom macho. Com os binóculos nos olhos vasculhávamos tudo, mas não tínhamos muito como nos mover, pois os búfalos andavam realmente a nossa volta. Uma fêmea comeu tão perto que eu tive que me deitar novamente. E, do chão eu via os galhos balançando a dez metros de mim. Eu tinha em mãos um rifle CZ 550 Safari, em calibre 416 Rigby com munição sólida, mesmo tendo que rastejar em meio aos espinhos eu não o largava por nada. O Vassalo levava um lindo Express francês que disparava o poderoso calibre 577 NE. E com um pouco de sorte e muita habilidade ele e o Shinhama haviam conseguido avançar uns quinze metros em relação a minha posição. Mas depois me contaram que uma vaca deitada, em uma sombra não tirava mais os olhos do lugar, em que eles se encontravam, por isso foi impossível romper mais.
Então, ficamos ali rodeados por búfalos por vários minutos. Eu imóvel só tinha olhos para a vaca que agora fungava ainda mais perto. Eu tinha nela a alça e massa do 416 Rigby. E não me preocupava com mais nada além de vigiá-la. Meu medo é que a cria viesse para o meu lado e ao perceber-me ou farejar-me tão perto, a vaca avançasse sobre mim para defendê-la. Aí eu teria que abrir fogo. Olhando para frente vi o Vassalo chamar o Marco que havia se imobilizado, sentado no chão a meio caminho entre a minha posição e a do Vassalo. A mesma vaca que tirava o meu sossego, também o amarrara ali. O Vassalo, que não via essa vaca, insistia chamando com os dedos no ar, puxando a mão em direção ao peito. Ele certamente havia visto um bom macho e queria que o Marco chegasse até onde ele estava para fazer o tiro.
Por fim, a vaca que nos “amarrava”, sumiu atraída por algum arbusto mais apetitoso e eu pude respirar aliviado. O Marco também já podia se mover a frente. E foi isso que ele fez, sem perder tempo, andou de quatro pés ligeiro e silencioso como uma onça. No caminho, espinhou as mãos e um joelho, mas na hora a adrenalina é tão alta que nem sentimos dor. Ele foi sem parar até onde estavam o Vassalo e o Shinhama. Depois vi os dois, lentamente, erguerem-se sobre os joelhos e vi o Vassalo apontar alguma coisa fora do meu campo de visão. Em seguida, o Marco sacudiu a cabeça como quem concordava com alguma coisa.
Depois disso, a coisa se desenrolou bem rápido. O Marco levou aos olhos um belo rifle Express da marca alemã Merkel em calibre 470 NE. E, de onde eu estava pude vê-lo fazer uma pontaria cuidadosa. Logo após, ecoou um tiro enorme, seguido imediatamente por outro, do segundo cano. Aí aquele mato inteiro torceu e o chão literalmente tremeu abalado por cascos poderosos. Búfalos rasgavam a vegetação em todas as direções, eu não tinha nem onde me proteger. Ajoelhei-me no meio das moitas de espinho e com a arma no ombro e os olhos arregalados na direção do barulho, fiquei pronto para desviar a tiro o que viesse em minha direção. Mas os barulhos foram ficando distantes até que, tudo se acalmou, felizmente nenhum búfalo havia corrido para o nosso lado!
Com o fim daquele pandemônio, eu me levantei e corri até o pessoal lá adiante, estava ansioso para ver o resultado do trio. Quando cheguei até eles, o Marco acabava de renunciar o rifle, mas a poeira ainda cobria tudo. Aí veio o vento que, naquele dia tanto colaborou e limpou o ar. E nós conseguimos ver lá, a uns quarenta metros, embaixo de umas árvores um grande búfalo negro batendo fortemente os chifres em um galho, lutando para se levantar. Ele estava mortamente ferido, o primeiro tiro havia lhe partido a coluna, o segundo o atingiu no meio do ombro. Os pesados projetis australianos Woodleigh de 500 grains cumpriram com perfeição a sua função.
Aguardamos de onde estávamos até que ele parasse de se mexer. Sabíamos pela reação dele que não conseguiria se levantar. E, respeitosamente, deixamo-lo “morrer em paz” sem ter que nos olhar chegando e não ter como reagir. Logo ele se entregou dando aquele tão característico berro final. Fomos até lá admirar aquele belíssimo animal. Aquele foi o primeiro cape búfalo em que eu coloquei as mãos. Ele não era um búfalo muito velho como queríamos, mas era um touro magnífico, no auge da sua forma física. Tinha uma bela boça já completamente endurecida e chifres beirando as 39 polegadas. Devia ter por volta de dez ou onze anos, certamente, era um dos reprodutores e guardiões do grande rebanho.
Cumprimentamos o Marco não só pela precisão, mas também, pela velocidade entre os dois tiros. Ele estava radiante, finalmente havíamos conseguido o seu troféu. A animação foi geral, logo chegou o pessoal que havia ficado do outro lado da vereda. Estavam preocupados conosco, pois sabiam que a manada tinha caminhado em nossa direção e demoramos muito a disparar. Mas, no fim deu tudo certo. O Agostinho acendeu lá um grande cigarro de palha e, sentando à sombra foi curtir o momento. Tiramos muitas fotos, em seguida fomos passar o rádio para o pessoal do apoio que viria com o trator recolher e levar o grande búfalo. Naquele dia, não caçamos mais.
À tarde e a noite foi dedicada a comemorações regadas a um bom wisque e charutos cubanos. A conversa seguiu animada até o chamado para um delicioso jantar de frutos do mar fresquinho. Aqueles foram os maiores camarões que eu já vi… Haviam sido comprados há poucas horas, no mercado do peixe às margens da riquíssima costa Moçambicana. Depois do jantar, estávamos todos de barriga cheia, mente entorpecida e alma leve. Fomos para as camas recuperar as energias e renovar o corpo para a caçada do dia seguinte, afinal, ainda tínhamos mais uma semana de aventuras e outros grandes desafios pela frente.