Esse artigo tem como objeto uma categoria de arma de fogo ainda pouco explorada, em nosso país: as armas de alma lisa, cuja maior representante é a espingarda. De modo geral, as espingardas são pouco compreendidas, por aqui. No cenário da defesa, a espingarda tem uma versatilidade ímpar e um grande potencial de incapacitação. Mas, curiosamente, essa categoria parece ser negligenciada tanto pelas forças de segurança pública brasileiras quanto pelo público civil.
No decorrer desse texto, iremos abordar, ainda que superficialmente, as principais características técnicas das espingardas, sobre o sistema gauge, sobre os cartuchos de projéteis múltiplos e os cartuchos com projéteis singulares.
As espingardas
São, originalmente, armas dotadas de cano com alma lisa (não raiados). Digo originalmente pois, hoje, fabricam-se espingardas com canos dotados de algum tipo de raiamento, ainda que parcial. São exceções, normalmente, destinadas à caça de animais de grande porte, utilizando cartuchos com projéteis singulares.
O fato de utilizarem canos não raiados implica na redução do alcance efetivo dos projéteis, se comparado com os fuzis, cuja utilização potencial, não raro, ultrapassa a marca de 1.000 metros. Apesar de caracterizadas por utilizarem cartuchos carregados com projéteis múltiplos, também podem utilizar projéteis singulares.
As espingardas são comercializadas em diversas configurações. Existem espingardas de tiro unitário, de repetição, semiautomáticas, automáticas, espingardas híbridas (que podem funcionar tanto no sistema de repetição como no sistema semiautomático)… Essas tantas opções, combinadas com a variedade de cartuchos, tornam as espingardas armas muito versáteis e garantem lugar às mesmas, em diversas aplicações: defesa, controle de distúrbio civil, caça, tiro desportivo…
Alguns insistem em intitular as espingardas como armas de utilização a curtas distâncias. Considero essa classificação equivocada pois, dependendo da configuração do conjunto (arma, munição, aparelho de pontaria), trabalha-se com precisão e segurança aos 100 metros de distância do alvo.
Mesmo utilizando cartuchos carregados com projéteis múltiplos, a distâncias intermediárias, ainda se tem controle e aproveitamento do equipamento.
Para exemplificar, tomarei como referência resultados de testes realizados com a espingarda Bennelli M3, 12 gauge, cano de 18,5″ e choke “Modified”. Utilizando cartuchos CBC Hi-Impact, carregados com chumbo SG, nos disparos em alvos a 25 metros, a média da dispersão máxima entre os balins foi de 54,6 cm. Ou seja, os resultados corroboram minhas afirmações.
Ao caracterizar a arma utilizada no teste, mencionei se tratar de uma espingarda 12 gauge. Se você não sabe o que isso significa, vai aprender agora!
O Sistema Gauge
Como funciona esse sistema de classificação dos calibres para armas de fogo de alma lisa? Primeiro, ressalto que tem origem na Inglaterra, portanto o sistema gauge relaciona-se com libras e polegadas e não com as unidades de medida do sistema métrico.
Foi herdado, ou derivou-se, do sistema que definia o calibre dos canhões. O canhão de 1 gauge disparava esfera de chumbo pesando 1 libra, o de 2 gauge disparava esferas de 2 libras e assim por diante…
Essa dinâmica de determinação do calibre foi aproveitada e adaptada às armas portáteis de alma lisa, surgindo uma curiosa metodologia. Em síntese, o número que antecede o termo “gauge”, ou sua abreviatura (GA), representa a quantidade de esferas de chumbo, com o mesmo diâmetro do cano da arma, necessárias para se obter uma libra (453,59 g).
Dessa forma, quando tratarmos, por exemplo, de uma espingarda que utilize cartucho 12 GA, se dividirmos uma libra de chumbo em esferas com o diâmetro de seu cano, obteremos 12 esferas. Atualmente, são comercializados, no Brasil, os seguintes calibres para armas de alma lisa: 36, 32, 28, 24, 16 e 12. Mas, como toda regra tem exceção, aqui não será diferente. O calibre 36 não segue a referida dinâmica de mensuração, apesar de ser citado como 36 gauge. Se aplicada a regra geral, seria 67 GA. Por quê? Veremos a seguir.
O calibre 36
Apesar de ser um calibre relativamente popular no mundo todo, o calibre 36 tem uma história marcada por polêmicas e incertezas. Não há consenso sobre sua origem, tampouco sobre a origem de suas denominações.
Os norte-americanos sustentam uma versão onde o calibre 36 é descendente direto do .44XL, um cartucho para armas de alma lisa construído a partir do estojo do 44-40 Winchester. Já os europeus contestam essa versão e dizem que o 36 já existia muito antes do 44-40 Win, o que impossibilitaria a teoria da descendência do 44 XL.
Mas a confusão envolvendo esse calibre não termina aí, não se sabe ao certo nem de onde saiu o número 36. Aparentemente, esse número não tem relação com nenhuma característica técnica do cartucho. No sistema gauge, seria classificado como 67 GA. O diâmetro do cano, no sistema imperial, tem .410 polegadas enquanto no sistema métrico tem pouco mais de 10mm.
De onde saiu esse 36?
Vou resumir a explicação mais plausível que já li. Dizem que, no século XIX, existiam tantos calibres distintos que era difícil encontrar duas armas iguais. No início do século XX, começou um movimento, marcado pela constituição da CIP, voltado a reunir e padronizar os calibres existentes na Europa.
Os calibres derivados do sistema gauge sobreviveram a essa reorganização, ficando elencados da seguinte forma: 4, 8, 12, 16, 20, 24, 28 e 32. Mas restou um calibre menor que, se fosse classificado de acordo com o sistema “gauge”, destoaria da sequência uniforme (que varia de 4 em 4). Como o cartucho era menor que o 32, optaram por classificar com o próximo número da sequência: 36.
Tempo depois, a CIP voltou atrás, adotando o termo .410 para o calibre nominal. Mas, como a indústria já utilizava a nomenclatura 36, ela permanece até os dias de hoje nas normas técnicas da Agência, como classificação alternativa para o calibre. A SAAMI classifica o 36 como 410 Bore.
O SAAMI (“Sporting Arms and Ammunition Manufactores Institute”) e a CIP (“Commission Internationale Permanente pour l’Epreuve des Armes à Feu Portatives”) são as duas mais conceituadas organizações normatizadoras sobre armas de fogo e munições, no mundo.
Projéteis Múltiplos
Como salientado anteriormente, as armas de alma lisa, apesar de aceitarem projéteis singulares, são caracterizadas pelos cartuchos carregados com múltiplos bagos. Esses bagos esféricos, também chamados de balins, apesar de usualmente serem de chumbo, podem ser constituídos de materiais diversos, dentre eles: aço, latão, chumbo revestido com cobre…
As esferas seguem padrões de tamanho, mas não há universalidade; por exemplo, os EUA, em regra, seguem escala distinta da utilizada no Brasil. O diâmetro, em média, varia de 1mm a 9mm. Balins menores são usados para caça de animais de pequeno porte, enquanto balins maiores para caça de grandes animais e também para defesa.
Há quem defenda o uso de chumbo fino para defesa domiciliar, em razão dos menores efeitos colaterais. No entanto, o reduzido poder de penetração do chumbo fino é o principal argumento dos que desaprovam esse tipo de cartucho para defesa.
É comum encontrar na literatura estrangeira o termo “birdshot” fazendo referência aos cartuchos carregados com chumbo fino e “buckshot” referindo-se aos carregados com chumbo grosso.
Não há consenso em relação às medidas que separam essas categorias. A CBC utiliza mais de uma dezena de tamanhos de chumbo. Os numerados pela CBC podem ter seu diâmetro calculado. Basta usar a seguinte fórmula: (17 – número do chumbo)/100. O resultado representa o diâmetro de cada esfera, em polegadas.
Essa regra serve também para boa parte dos chumbos classificados como “birdshot”, nos EUA. Tomemos como exemplo o chumbo número 7. Para descobrir seu diâmetro, aplicaremos a fórmula: (17-7)/100 = 0,1” ou 2,5mm.
Projéteis singulares
Apesar de não ser a opção mais utilizada nas armas de alma lisa, os projéteis singulares merecem atenção. Bagos múltiplos tendem à dispersão, além disso, a pouca massa e a ausência de estabilização giroscópica fazem com que o aumento da distância limite a utilização dessa categoria de munição.
Na tentativa de preencher essa lacuna, quando se almeja letalidade a distâncias maiores, cartuchos carregados com projéteis singulares ganham espaço no universo das armas de alma lisa. Chamados de “balotes”, esses projéteis têm maior capacidade de manter a trajetória e conservar energia.
Existe uma infinidade de formatos e soluções adotadas nesse tipo de projétil, desde os tradicionais balotes “Foster” e “Brennke”, aos modernos projéteis do tipo “Sabot” destinados a espingardas com cano raiado.
Considerações finais
Esse texto teve por objetivo apresentar as principais características técnicas das espingardas. E, também, estimular a discussão sobre essa categoria pouco explorada no Brasil, apresentando um pouco de sua versatilidade. Iniciamos com a conceituação dessa categoria de armas e chamamos a atenção para o potencial de aplicações desse equipamento. Em seguida, foi apresentado o método pelo qual, em regra, são determinados os calibres nominais destinados às armas de alma lisa. Aproveitamos para dissertar sobre o calibre 36, único cartucho comercializado no país que não segue a regra do “sistema gauge”. Por fim, apresentamos algumas considerações a respeito dos cartuchos carregados com projéteis múltiplos e sobre a possibilidade do uso de projéteis singulares.