A lateralidade cruzada mão-olho, quando do manuseio de arma de fogo, é um dos maiores obstáculos que o atirador pode enfrentar ao exercer suas atividades, no entanto, a boa notícia é que dá para administrar e contornar tal característica, bastando apenas treino, como a seguir explicitaremos. Contudo, primeiramente é necessário que adentremos em alguns conceitos e explicações médico-científicas que indicam qual norte seguir.
Ressalte-se que não tenho qualquer formação na área de saúde ou qualquer pretensão de dissertar como um profissional da mesma, porém, antes de indicar técnicas que nos são comuns no mundo da instrução de tiro, por quê em parca síntese, não discorrer um pouco sobre a parte clínica?
Dito isso, resolvi dividir este artigo em duas partes: a primeira com a explicação clínica da lateralidade cruzada mão olho, sob a ótica médico-científica, e a segunda, com a metodologia empírica, reconstrutiva, que um instrutor de tiro alheio a uma formação específica da área de saúde, emprega ao ministrar aulas para seus instruendos. Voltada ao leitor que quer ir direto a parte prática.
1. Explicação clínica
Pois bem, antes de mais nada, precisamos trazer à luz, os seguintes conceitos:
1.1 Lateralidade
É a capacidade de controlar os dois lados do corpo juntos ou separadamente. É a predisposição à utilização preferencial de um dos lados do corpo, em três níveis: mão, olho e pé.
1.2 Lateralidade cruzada ou assimetria funcional
O uso preferencial de membros opostos dos diferentes pares de órgãos em atos motores voluntários, por exemplo, olho direito e mão esquerda.
1.3 Lateradidade dominante
Predomínio ou maior eficiência de um dos lados do corpo, de um entre dois membros simétricos ou de um dos hemisférios cerebrais, em ato motor voluntário (certa atividade ou função).
Quando o assunto é manuseio de arma de fogo, tratamos da lateralidade cruzada mão-olho e que tem sido uma das mais estudadas e com frequência é sinónimo de problemas na aprendizagem, em especial nos processos de leitura e de escrita.
A literatura médica reza que é possível “ensinar” ao cérebro corrigir tal “preferência”, principalmente quando diagnosticada ainda na infância, o que não quer dizer que é impossível realizar na fase adulta. Saindo um pouco do tema e a título exemplificativo quanto ao condicionamento do cérebro, o tenista espanhol Rafael Nadal é destro, porém sua empunhadura na raquete é com a mão esquerda, fazendo todas as outras atividades com a mão direita. Seu treinador que também é seu tio, o condicionou a usar a mão esquerda no esporte, visualizando que o mesmo levaria uma grande vantagem sobre seus adversários e o resto da história, todos sabemos.
É certo que o exemplo acima não trata de uma lateralidade cruzada mão-olho, mas isto só denota que as é possível condicionar a neuromotricidade ao que se pretende.
Tal condicionamento está ligado diretamente a propriocepção (ou cinestesia), e é definida como sendo qualquer informação postural, posicional, encaminhada ao sistema nervoso central (SNC) pelos receptores encontrados em músculos, tendões, ligamentos, articulações ou pele. Em outras palavras, é a consciência dos movimentos produzidos pelos nossos membros.
Para falar sobre propriocepção, é necessário falar sobre os receptores sensoriais, afinal, são eles que transmitem ao sistema nervoso central a posição articular e o nível de tensão muscular, no entanto mitigarei a vasta classificação funcional, e pularei direto para os proprioceptores, que são receptores encontrados mais internamente na musculatura, tendões, ligamentos, articulações e no labirinto, apresentando função reflexa locomotora e postural. Podem produzir impulsos conscientes ou inconscientes.
Os primeiros alcançam o córtex cerebral possibilitando, mesmo que de olhos fechados, que se tenha percepção do próprio corpo e movimentos articulares, sendo este, então, responsável pelo sentido de posição e movimento (cinestesia).
Os impulsos nervosos proprioceptivos inconscientes não levam a nenhuma sensação, sendo utilizados pelo SNC como regulador da atividade do músculo, por meio do reflexo miotático (reflexo motor que ocorre em resposta ao estiramento de um músculo, pode ocorrer em todos os músculos esqueléticos do corpo) ou dos diferentes centros relacionados com a atividade motora, como, por exemplo, o cerebelo.
De acordo com a teoria das múltiplas inteligências, a Inteligência corporal-cinestésica diz respeito às habilidades apresentadas por atletas e artistas, que executam movimentos precisos que são exigidos para a execução de suas técnicas. Tanto que, é muito comum no mundo do tiro, presenciarmos shows de exibição, onde os atiradores beiram o impossível em suas demonstrações. Geralmente ligadas à motricidade, velocidade e percepção de espaço, o que lhes permitem muitas vezes acertarem o alvo, sem mirar.
Note que na contextualização acima, em nenhum momento citei o termo lateralidade cruzada mão-olho, que passarei a chamar de “visada cruzada”. Fiz propositadamente, simplesmente porque o “olho diretor”, não muda. O atirador não pode condicionar tal característica, ao contrário do uso ambidestro de suas mãos. A visada cruzada é uma característica inata da pessoa.
Continuando, a lateralidade cruzada mão-olho quando do manuseio de arma de fogo, além de uma condição neurológica, também é fisiológica/genética. Em querendo, a literatura médica diz que enseja o acompanhamento multidisciplinar de no mínimo 3 (três) classes de profissionais, quais sejam, fisioterapeutas, ortopedistas e oftalmologistas, mas na minha opinião, como estamos tratando apenas dos indivíduos que manuseiam arma de fogo, é perfeitamente possível aprender a utilizar a mesma mão que lateraliza com o olho diretor ou aprender a utilizar o outro olho para empregar a visada. Basta que o aluno seja devidamente instruído com os fundamentos necessários.
A instrução de armamento e tiro, por ser dinâmica e na maioria das vezes de curta duração, não recepciona tal complexidade e o estudo clínico acima. Cabe ao instruendo promover seu próprio treino, optando pela busca de um profissional ou não, mas jamais mitigar o treinamento contínuo, seja para troca de mão forte/ativa, seja para construir uma nova “visada”.
2. Metodologia empírica
Agora no âmbito da prática da instrução de tiro, podemos reduzir a 3 (três) métodos tanto quando do emprego de armas curtas (de porte), como de armas longas (portáteis).
Como eu não tenho tal condição genética, utilizarei como exemplo a experiência de um exímio atirador, o Lucas Botkin que tem o canal no youtube, T.REX ARMS e que possui tal condição. Ele gravou um vídeo onde aborda exatamente os métodos existentes e quais ele usa. As imagens que extrai deste vídeo, ilustrarão perfeitamente o que aqui se pretende mostrar.
2.1 Armas curtas (de porte)
Antes de citar os métodos, tomaremos como base, a posição isósceles, onde a arma fica perfeitamente alinhada à visada, formando assim um triangulo perfeito.
Método 1 – Empunhadura dupla, sustentando a base triangular da posição isósceles, inclinando o conjunto alça-maça (sim, é com cedilha) de mira.
Este método não é indicado, pois ao inclinar a arma, fica difícil absorver o recuo e prontamente retomar a fotografia do alvo.
Método 2 – Empunhadura dupla, sustentando a base triangular da posição isósceles, trazendo para o lado do olho diretor, o conjunto de mira.
Ainda não é o ideal, mas segundo ele (que não se utiliza deste método), muitos atiradores que ele conhece obtém sucesso e bons resultados. Eu particularmente ainda acho que compromete a base triangular do atirador, pois a arma por ser segurada com a mão cruzada, ultrapassará a linha imaginária da base triangular como visto na imagem mais acima.
Método 3 – Empunhadura dupla, sustentando a base triangular da posição isósceles, rotacionando a cabeça, de modo que o olho diretor cruzado, fique alinhado com o conjunto de mira.
Este é o método que ele utiliza e eu também indico. Note que a arma se mantém no centro do triangulo, absorvendo a força de recuo por igual com a ajuda dos braços, ombros e postura, além de proporcionar uma rápida reaquisição do alvo engajado.
2.2 Armas longas (portáteis)
Método 1 – Alteração física e anatômica da arma.
Pela posição limítrofe da coronha com o rosto, resta inviável uma visada cruzada com o conjunto de mira. Por conta disso, alguns atiradores encomendam coronhas artesanais com formato em “S”, para que possam acomodar o rosto e consigam fazer a visada. Na minha opinião, resta inviável, pois este atirador está fadado a não conseguir utilizar qualquer outra arma longa que não a dele, justamente por falta de treino e condicionamento.
Há também a utilização de acessórios tal como o red dot, geralmente empregado em fuzis e carabinas, que com um retículo bem iluminado e livre de parallax, ajuda e muito na execução do tiro. Proporciona inclusive o tiro com os dois olhos abertos. Contudo, como o foco aqui é o condicionamento neuromotor e o fato deste dispositivo não ser aceito nos testes de aptidão técnica exigidos pela Polícia Federal e Exército Brasileiro, não me aprofundarei neste método.
No vídeo do Lucas, de onde extraí as fotos, ele aborda uma série de configurações com as mais variadas marcas de red dot, magnifier e lunetas, bem como demonstra a utilização destes visando compensar sua visada cruzada. O link se encontra ao final do artigo, em “Referências”.
Método 2 – Troca de ombro e consequentemente da mão forte, de forma que alinhe o conjunto de mira com o olho diretor cruzado.
Demanda um certo tempo para que o atirador se acostume. Este método é mais eficaz para pessoas ambidestras, porém lembremos, que pouquíssimas armas são ambidestras. Pessoas destras ou canhotas, levarão mais tempo a se condicionarem, pois ainda que o atirador aprenda a atirar com o lado trocado, há o vício de continuar se utilizando da mão forte em outras funções, como exemplo, a troca de carregador ou municiamento/carregamento da arma, bem como a obrigatoriedade do acionamento das travas e reténs que em sua maioria, estão dispostos nas armas para destros. Agora uma vez condicionado, seja por treinamento próprio ou com ajuda dos profissionais anteriormente citados, terá uma maior agilidade que no método seguinte se a arma for ambidestra.
Observação: Ainda que a pessoa seja ambidestra, ela pode ter uma lateralidade dominante de funções motoras opostas ao olho diretor (troca de carregador como já citei, bem como ajustes finos), sendo assim, há chance que este grupo também precise do mesmo condicionamento que o grupo de destros e canhotos.
Método 3 – Fechar o olho cruzado e assim continuar utilizando sua mão forte.
Este é o método que eu prefiro instruir, pois o atirador suprime uma série de preocupações relacionadas a troca de mãos e características do armamento (método 2), se preocupando apenas com o condicionamento dos olhos.
Há uma troca de funções, no caso, de percepção. O atirador mantém todas as atividades que executa com a mão forte, mas obrigatoriamente tem de fechar o olho cruzado, pois o excesso de informação que chega ao cérebro, atrapalha a execução do tiro.
Por incrível que pareça, não é uma coisa tão simples, tanto que alguns atiradores só conseguem utilizar este método, se aplicarem em conjunto com óculos contendo a lente do olho cruzado escurecida/tapada. Mas se o Lucas Consegue, por quê você não conseguiria? 🙂
Em suma, estas são as soluções para quem tem lateralidade cruzada mão-olho, tanto para armas curtas, como longas. A solução para armas curtas, é bem mais fácil e simples do que das armas longas, mas tudo, absolutamente tudo, demanda treinamento aplicado e disciplina.
Um vídeo interessante e que vale a pena assistir, é do professor de comunicação e Ph.D., Robert L. Duran, onde ele te instiga a se fazer uma pergunta: Você realmente é destro? Não darei spoiler. Assistam e não irão se arrepender.
Concluindo, espero que as informações aqui passadas sejam de valia para os leitores. Este artigo foi feito especialmente para o portal infoarmas.com.br a pedido de um dos inscritos.
Estou aberto a qualquer tipo de sugestão ou crítica, pois somente desta forma podemos crescer e aprimorar nossos conhecimentos. Sou um eterno aprendiz.’.
Referências:
BOTKIN, Lucas. How to Shoot if You’re Cross Eye Dominant. Youtube, 2020. Disponível em: https://youtu.be/DV_WTsF_7kM . Acesso em: 19, janeiro de 2020.
FOZ, Adriana. Lateralidade e dominância cerebral: esclarecimentos importantes para a educação escolar. Tutores, 2020. Disponível em: https://tutores.com.br/blog/lateralidade-e-dominancia-cerebral-esclarecimentos-importantes-para-a-educacao-escolar/. Acesso em: 19, janeiro de 2020.
MELDAU, Débora Carvalho. Propriocepção. Infoescola, 2020. Disponível em: https://www.infoescola.com/corpo-humano/propriocepcao/. Acesso em: 19, janeiro de 2020.
Cross-dominance. Wikipedia, 2020. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Cross-dominance . Acesso em: 19, janeiro de 2020.