Não se assuste! Não temos a intenção de contrapor consensos popularmente enraizados. Partimos da premissa incontestável de que o comando de uma tropa é revestido de grande complexidade, ainda mais quando se almeja atingir níveis técnicos de adestramento de todos os comandados. Dentro desta perspectiva, entendemos que dominar e ser bom no básico é fundamental para o fiel comprimentos de missões que serão empregados. Aqui citamos o General da 1ª Divisão de Fuzileiros Navais, James N. Mattis, antes da Operação Iraque Livre I (Operation Iraq Freedom I – OIF I) em 2003, reuniu seus comandantes de batalhão e descreveu sua visão de sucesso. Parte dessa visão era ser “brilhante no básico”.
Clausewitz (o filósofo da Guerra) afirmou:
O hábito endurece o corpo para grandes esforços, fortalece o coração em grande perigo. O hábito gera aquela qualidade inestimável, calma, que, passando de atirador a comandante, tornará a tarefa mais leve.
E completou:
Ótimas unidades fazem bem o básico, com alto grau de proficiência e como hábito. Bons hábitos geram fuzileiros navais e marinheiros inteligentes, resistentes e agressivos que vencerão em combate. Maus hábitos geram timidez, e a timidez gera baixas e falha na missão.
Protocolos simples já são difíceis de serem compreendidos por demandarem tempo de assimilação e exigirem aprendizagem prática com a utilização de muitas munições – artigos de luxo no meio de grande parcela dos atiradores e policiais brasileiros. Imaginemos agora vários protocolos com diversas metodologias e práticas. Acredito que apenas servirá para confundir os caminhos mentais que serão percorridos na hora da verdade, na hora em que sua vida estará em jogo.
Fortalecendo a importância da simplicidade, na sua brilhante obra, reforçam Pellegrini e Moraes (2017):
Todo mundo gosta de treinos dinâmicos, com mudanças de posição, correria, acrobacias e outras atividades circenses que alguns instrutores inserem em seus métodos de ensino, mais como forma de marketing para ganhar simpatia do público do que como método didático para ensinar alguém a atirar. A verdade é que todo esse dinamismo não vale de nada se o atirador for incapaz de acertar o alvo ou, pior, se o atirador acertar o alvo errado. O importante no tiro de combate é neutralizar a ameaça e, para isso, o atirador deve ser capaz de acertar o alvo. São os fundamentos do tiro que vão fazê-lo acertar o alvo. O atirador deve dominar completamente os fundamentos do tiro, sendo proficiente no básico. Excelência no básico é o que pregamos.
Dessa forma, podemos concluir que realmente dominar e ser excelente no básico salva vidas. Mas, de outro lado, entendemos também que a grande maioria daqueles que decidiram possuir uma arma para autodefesa e talvez portá-la possuem alguma dificuldade em identificar o que é ser excelente no básico.
Neste contexto passamos a analisar o que chamamos de honestidade cognitiva. Que pode ser representada pela autocritica demandada do cidadão antes da tomada de decisão de aquisição de uma arma de fogo. É solicitado que seja honesto com ele mesmo, visamos mostrar que a deliberação em portar uma arma de fogo para defesa engloba tópicos que ultrapassam o limite do aprendizado técnico e invadem a esfera do risco de morte do cidadão armado e de quem o acompanha. Deve-se observar preceitos morais, legais, psicológicos e técnicos para chancelar esta escolha.
A ética está relacionada ao caráter individual de cada um e aos seus bons costumes, assim como suas ações e decisões. O respeito à ética deve ser uma obediência natural, mesmo que não positivada. A conduta individual deve ser pautada pela moral, pois comportamentos antiéticos serão condenados pela sociedade, mesmo que não gere sanções jurídicas, e podem produzir sanções sociais ou administrativas, como a exclusão de uma pessoa do convívio social de determinado grupo. O cidadão que decide ter a posse ou o direito de portar uma arma de fogo precisa ter ciência de que deverá adotar condutas éticas ao portá-la, admitidas moralmente pela sociedade. Não serão tolerados comportamentos agressivos e repulsivos dignos de quem não tem a mínima capacidade de possuir uma arma.
A legalidade é o princípio fundamental que rege a conduta de um indivíduo armado. Se não for legal estará tipificado penalmente como crime e o indivíduo responderá por isso. Porém, nem todo fato típico é ilícito pois há previsão legal de excludentes de ilicitude. A conduta humana formal e material típica é apenas indício de ilicitude. Neste sentido, citamos Menezes (2020, p. 176):
Desse modo, para ponderar a antijuridicidade de uma conduta, deve-se analisar se a conduta típica não está permitida por alguma causa de justificação prevista em direito. Adentra-se, dessa forma, na seara atinente às causas excludentes de ilicitude, que estão previstas principalmente no artigo 23 do Código Penal:
Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.
Decidir por usar uma arma para se defender significa também estar disposto a morrer e/ou a matar e nem todos pensam nisso ou procuram se preparar. Carregar, pelo resto da vida, a culpa da morte de um parente ou de uma lesão grave em consequência dessa decisão não é algo tão simples. Assim, seja exigente e sincero consigo mesmo. Antes de decidir comprar uma arma, questione-se e busque respostas sinceras – a depender, desista ou vá em frente. Em um mundo cheio de lobos, é sempre bom ter mais um cão pastor.
Da mesma forma, o cidadão deve ser sincero consigo mesmo e assumir caso não leve jeito com armas ou não possua coordenação motora suficiente. Não basta gostar e querer. O indivíduo que deseja possuir uma arma de fogo para defesa é obrigado a dominar sua arma, ter intimidade com ela e sentir-se seguro tecnicamente para portá-la. Ao ingressar nesse mundo das armas de fogo, aconselha-se manter um ritmo continuado de treinamentos. O atirador deve ser capaz de executar todas as operações com sua pistola e isso requer treino e dedicação.
E o que se configura ser Excelente no Básico?
É dominar sua arma e saber usá-la dentro de um estágio autônomo motor, utilizando-se de movimentos com coordenação motora grossa, sem o refinamento e domínio de técnicas mais apuradas e que exijam coordenação motora fina e tempo de resposta acima da média. Estágio Autônomo (CALAÇA, MENEZES, p. 59):
Por já possuir suas respostas programadas e que serão executadas com automaticidade, o atirador no seu treinamento ou mesmo em uma situação de ameaça armada real diminui sua atenção para os movimentos reativos, por já ter sua programação motora bem definida, podendo utilizar sua capacidade cognitiva para atividades simultâneas e tomadas de decisão mais estratégicas.
Ok, mas e o avançado?
Fazendo uma analogia com saber dirigir, podemos dizer que o excelente no básico é dirigir bem ordinariamente e o avançado é quando o motorista (excelente no básico) deseja aprimorar seus conhecimentos e aprender técnicas novas, buscando por exemplo um circuito de velocidade ou curso de direção ofensiva e defensiva. Para o atirador, nesta fase de domínio de todas as habilidades motoras exigidas para atingir níveis desejáveis de autodefesa, será acrescentado estresse no treinamento para que descubra se o raciocínio e a tomada de decisões corretas estarão presentes também em situações de crise.
O treinamento avançado permite o atirador a se aprofundar em técnicas mais refinadas e que o fará ter vantagens em um confronto armado. Técnicas essas que exigem mais coordenação motora e sincronicidade entre todos os músculos do corpo e bom diálogo entre membros inferiores e superiores, assim como total liberação da atenção cognitiva para todo o cenário que está inserido.
Dicas sobre rotação de cotovelo, diferenciação das forças aplicadas pelas mãos na arma, vencer o arrasto livre da tecla do gatilho, propriocepção e dedo indexador, apresentação da arma com a execução de diversos movimentos corporais coordenados, fuga do “x” executado pelos membros inferiores simultaneamente a uma resposta iniciada pelos membros superiores, ou trocas de carregadores e sanar panes em movimentos. Ou seja, são detalhes que sim, exigem muito mais do atirador e devem ser encarados e tratados como técnicas avançadas.
A conclusão que chegamos é que o mais difícil é fazer o atirador se tornar Excelente no Básico antes de dar o próximo passo. Diante de tantas ofertas comerciais e hollywoodianos apresentadas no mercado, o atirador se sente atraído por esses cursos e pulam etapas, caindo na própria armadilha da confusão mental e dificultando seu processo de aprendizagem. Sugerimos a honestidade cognitiva e autocrítica para que se gaste tempo e dinheiro em alcançar a excelência no básico antes de aventurar-se no avançado.