Não tenho a pretensão de esgotar a história do calibre 5,56x45mm, não conseguiria ainda que dedicasse a ele um livro. Se mergulharmos nas tramas que têm o 5,56mm como protagonista, nos perderemos, são inúmeras histórias nessas décadas de vida.
No entanto, tecerei uma síntese dos principais fatos que narram a trajetória desse cartucho, abordando as circunstâncias que fomentaram seu projeto e as principais versões de seus cartuchos, de modo a criar uma narrativa cronológica de sua evolução.
Tudo começa em meados do século passado, quando as forças armadas norte americanas questionavam a conveniência do cartucho 7,62x51mm NATO para suas tropas. Buscava-se um calibre intermediário, que permitisse ao soldado carregar mais munição, que proporcionasse a construção de armas mais leves, que tivesse um MPBR otimizado, que gerasse menos recuo e, consequentemente, maior precisão quando utilizado o modo automático de tiro.
Dentre os requisitos, o novo cartucho deveria utilizar projétil com 0,22” de diâmetro, que mantivesse velocidade supersônica além das 500 jardas. Além disso, deveria ser capaz de penetrar um capacete balístico a essa distância.
Naquela ocasião, Eugene Stoner já havia projetado o fuzil AR-10 (7,62x51mm NATO) e a Remington já tinha desenvolvido um cartucho para rifle, de uso civil, denominado .222 Remington (.222 Rem). O .222 Rem foi lançado no início dos anos 1950, para ser usado no rifle “bolt action” 722, tornando-se muito popular entre os competidores de “benchrest” e entre os caçadores de “varmints”.
Tendo como referência as exigências postuladas pelos militares, a Remington convidou Stoner para adaptar o AR-10 ao calibre .222 Rem. Mas os primeiros experimentos apontaram para o fato de que tal calibre não se mostrava capaz do desempenho esperado. Criou-se, então, o calibre .222 Special, a partir do alongamento do estojo do .222 Rem.
O .222 Special, em armas com cano de 20”, foi capaz de acelerar um projétil de 55 grains acima dos 3.000 pés/s. Mas não era apenas a Remington que estava nessa corrida, existiam outros projetos que também utilizavam como ponto de partida o cartucho .222 Rem. Foi então que a empresa, para diferenciar sua criação e manter sua assinatura, rebatizou o .222 Special para .223 Remington (.223 Rem)!
O surgimento do cartucho M193
Junto do .223 Remington surgiu o fuzil AR-15. Eugene Stoner, pai da plataforma AR, reconfigurou o AR-10 para trabalhar com o novo cartucho intermediário. Portanto, a história do calibre .223 Rem e do fuzil AR-15 se confundem.
O título desse artigo faz menção ao calibre 5,56x45mm, mas, até agora, só falamos do .223 Rem. Para alguns, isso pode estar soando estranho, mas em breve entenderão essa aparente contradição. Veremos que o .223 Rem tem uma estreita relação com o 5,56mm.
No final dos anos 1950, tínhamos o conjunto fuzil AR-15 e seu cartucho de dotação, o .223 Rem. O AR-15 passou a disputar a vaga de fuzil padrão das forças armadas dos EUA. Foi um longo e conturbado período de testes e aceitação da nova plataforma. Além dos requisitos técnicos, existiam muitos interesses obscuros envolvidos nesse processo.
Nesse meio tempo, o .223 Remington foi normatizado pelo SAAMI (“Sporting Arms and Munition Manufacturers Institute”). Em 1963, o novo cartucho foi oficialmente aceito pelo exército dos EUA e denominado como “5.56mm Ball, M193”. E o fuzil AR-15 passou a ser tratado pelos militares como M-16.
Surge, então, o 5,56mm (ou 5,56x45mm) como versão militar do .223 Remington e a configuração M193 como primeiro padrão de munição militar para o calibre. Até aqui, o .223 Rem se confundia com o cartucho 5,56mm de uso militar. Eram apenas nomenclaturas distintas de um mesmo cartucho, o .223 Remington regulamentado pela SAAMI.
Em síntese, o novo conjunto (M16 + M193) era capaz de acelerar um projétil FMJ (“full metal jacket”) de 55gr à velocidade inicial de 3.250 pés/s. O M193 ainda é produzido, apesar de ter se tornado obsoleto diante das demandas mais atuais de desempenho. Nessas décadas de história, surgiram algumas evoluções do cartucho 5,56mm. Veremos, a seguir, algumas dessas variações.
A origem do 5,56mm NATO
Vimos que fuzil M-16 e o calibre 5,56mm surgiram juntos, o conjunto passou a ser adotado pelas forças armadas estadunidenses, nos anos 1960. No início da década seguinte, a OTAN (Organização do Tratato do Atlântico Norte) inicia um processo de seleção de um segundo cartucho, intermediário, a ser adotado como padrão.
Naqueles idos, a belga FN Herstal já havia desenvolvido um cartucho que melhorava o desempenho do 5,56mm em armas com o cano de 20”. Esse cartucho adotou um projétil de 62 grains, com uma estrutura diversa do original FMJ de 55 grains do M193.
O novo projétil continha, sob a jaqueta e à frente do núcleo de chumbo, uma ponteira de 7 grains feita em aço endurecido. Esse incremento tinha como funcionalidade deslocar o centro de gravidade do projétil para trás, aumentando sua estabilidade e, consequentemente, seu alcance.
Além disso, a ponteira de aço aumentava a capacidade de penetração do projétil, tornando capaz de transfixar um capacete balístico, de uso militar, a 800 metros. Essa habilidade tornava o cartucho 5,56mm mais consistente contra barreiras rígidas.
Em 1980, a OTAN, através da norma STANAG 4172, adota o calibre 5,56mm como segundo calibre de fuzil. E o cartucho da FN Herstal, então batizado de SS109, foi escolhido como padrão, pela referida organização. Assim nasceu o 5,56mm NATO, mais de duas décadas depois da Remington apresentar o .223 Remington ao mundo.
A adoção do SS109 trouxe à luz uma discussão que se estende até os dias atuais pois, a STANAG criou diferenças técnicas entre o 5,56mm NATO e o .223 Remington, ao determinar limites de pressão e métodos de aferição diversos do utilizado pelo SAAMI.
Nos EUA, o SS109 ganhou a denominação M855 e sua ponta recebeu uma marcação na cor verde, para diferenciá-lo do M193. Junto do novo cartucho, veio a necessidade de adequação das armas, pois, o projétil de 62 grains ficou mais longo que o tradicional 55 grains do M193. Essa alteração estrutural tornou o passo de raiamento original do M16 (1:14″) inadequado, o projétil mais longo demandava um passo mais rápido. Adotou-se, então, o passo de 1:7”.
Se utilizarmos uma calculadora balística para calcular o passo ideal para estabilizar o SS109, teremos uma surpresa. O resultado será algo próximo de 1:9”. Fica a pergunta: então, por que usar um passo 1:7”?
O cartucho traçante da OTAN
O passo de raiamento adotado no M-16 (1:7”) parecia exagerado, tendo em vista que, teoricamente, 1:9” seria suficiente para estabilizar o SS109. Mas o passo definido pela OTAN foi determinado em razão de outro cartucho, o traçante L110 (chamado de M856 pelos EUA). O cartucho traçante 5,56mm NATO, também definido pela STANAG 4172, tem os mesmos 62 grains do SS109, porém, distribuídos de maneira diferente.
O projétil do L110 contém uma grande cavidade destinada a acondicionar o material pirotécnico, isso o torna significativamente mais longo do que o projétil do cartucho ordinário OTAN. Diferente do que muitos pensam, o principal fator determinante do passo de raiamento não é a massa do projétil, mas o seu comprimento.
Portanto, o passo 1:7” foi definido em razão do L110, sendo uma escolha capaz de estabilizar ambos cartuchos 5,56mm NATO. Mas qual o motivo dessa discussão se o passo mais rápido estabiliza satisfatoriamente ambos projéteis?
Quando se encolhe o passo, diminui-se o intervalo no qual o raiamento confere um giro completo ao projétil, aumentando, consequentemente, a taxa de rotação do mesmo. Quanto menor o caminho do giro completo, mais rápido será o passo.
Porém, quanto menor o intervalo, maior a resistência oferecida ao projétil em sua trajetória pelo cano. Essa maior resistência pode diminuir a velocidade inicial do projétil e aumentar o recuo do conjunto. Mas o efeito negativo mais relevante parece ser o comprometimento da vida útil do cano. Se não houvesse a necessidade de estabilizar o longo projétil do cartucho traçante (L110), talvez o passo de 1:9” seria mais conveniente de ser adotado.
O cartucho SS109 e as carabinas
Cartucho 5,56x45mm SS019 – Foto: Paulo Bedran
Já sabemos que o calibre 5,56mm NATO surgiu com o cartucho SS109. Naqueles idos, o referido cartucho, em conjunto com o fuzil M-16, atendiam às demandas das forças armadas do ocidente. Porém, com o passar dos anos, o fuzil de batalha M-16 foi dando lugar a versões reduzidas do mesmo, dentre elas, a carabina M4. A mudança dos cenários de guerra contribuiu para a consolidação das carabinas nas tropas, lutar em ambiente urbano exigia maior mobilidade.
O cano de 20” do M-16 foi sendo substituído por canos menores. Como as distâncias de combate encurtavam, a perda inicial de velocidade do projétil parecia não comprometer o desempenho do conjunto. Porém, o tempo foi dando sinais de que o cartucho SS109 tinha seu desempenho terminal significativamnte prejudicado quando utilizado nas carabinas.
Para compreender esse fato, precisamos alinhar o entendimento básico da balística terminal das armas de alta velocidade. Quando falamos de defesa com arma curta, a discussão gira em torno da penetração do projétil e da cavidade permanente. No entanto, em se tratando de armas de alta velocidade, outras variáveis passam a ter grande influência na capacidade de ferir, como o tombamento do projétil, a cavidade temporária e a capacidade de fragmentação.
Fragmentação? Cavidade temporária? Tombamento do projétil? Exato! Quem não tem familiaridade com armas de alta velocidade deve estar um pouco ressabiado com essas afirmações. A desconfiança é justificada pois, em regra, no universo das armas de porte, a fragmentação é indesejada, a cavidade temporária é insignificante e o tombamento do projétil não é algo esperado.
Podemos simplificar essa dinâmica da seguinte forma: no momento do impacto, a parte traseira (mais pesada) tende a passar à frente, fazendo o projétil tombar, aumentando a cavidade permanente e otimizando a transferência de energia. Nesses casos, em razão da alta velocidade a que são acelerados, aumentam-se as chances de fragmentação do projétil. Esses efeitos combinados, maximizam a cavidade permanente e, principalmente, a cavidade temporária, impactando significativamente a capacidade de ferir e incapacitar.
Vale ressaltar que, em se tratando do SS109, esses fenômenos são muito dependentes das altas velocidades. O projétil do SS109 tem maior densidade seccional e melhor coeficiente balístico, se comparado com o M193. Porém, essas “qualidades” balísticas, se combinadas com uma redução drástica de velocidade, tornam o projétil menos suscetível a tombar e fragmentar-se. O que diminui sua eficácia terminal. Essas constatações deram início a uma nova corrida por cartuchos 5,56mm mais eficientes para as carabinas.
Cartuchos 5,56mm de 3a geração
Quem leu o livro “Black Hawk Down” vai lembrar do trecho onde Mark Bowden narra a dificuldade de um soldado norte-americano incapacitar o oponente com uma carabina CAR15, utilizando cartuchos SS109 (M855).
Quando os militares dos EUA assumiram as limitações do cartucho 5,56mm NATO, criou-se a demanda por uma solução mais eficaz para ser usada nas carabinas e teve início a busca por uma 3ª geração de cartuchos. Nesse processo, surgiu o MK262, um 5,56mm com uma história curiosa.
O exército dos EUA mantém uma unidade destinada a treinar militares para competições de tiro, a AMU (“Army Marksman Unit”) fica em Fort Benning. Historicamente, a AMU fomenta pesquisas e desenvolvimento de armas e munições. A pistola S&W 52, a rainha das provas de precisão, foi desenvolvida pela Smith & Wesson a pedido da AMU.
No final do século passado, a AMU estava usando um cartucho 5,56mm Match em seus rifles. Utilizava projétil do tipo OTM (“Open Tip Match”), de 77 grains, e mostrava-se muito preciso nas provas de longa distância. Nessa categoria de projéteis, o oco da ponta tem por finalidade deslocar o centro de gravidade para a parte traseira, visando ganho de estabilidade.
Porém, em se tratando de armas de alta velocidade, esse desenho de ponta acaba por contribuir com o desempenho terminal do conjunto. Embora não expanda como os projéteis ponta oca tradicionais, a configuração do OTM aumenta as chances de incapacitação do alvo. O desenho do OTM facilita seu tombamento, a maior concentração da massa na parte traseira, associada à fragilidade da porção oca da ponta, proporcionam tombamento e fragmentação em velocidades inferiores às exigidas pelo SS109.
Algumas unidades militares viram potencial operacional nesse cartucho criado para competição. Batizado de MK262, o OTM de 77gr começou a ser adotado por diversas unidades e provou ser eficaz numa ampla faixa do espectro de velocidade, cumprindo sua missão mesmo disparado de um SBR (“Shot-Barreled Rifle”, termo usado nos EUA para representar os fuzis com cano menor que 16”).
Cartucho 5,56x45mm MK 262 – Foto: Paulo Bedran
Nas últimas duas décadas, surgiram outros cartuchos 5,56mm, como o MK318 e o M855A1, mas o MK262 segue sendo uma ótima opção para as carabinas 5,56mm. Acredito que, nessa altura do artigo, alguns devem estar se perguntando: por que não utilizar projéteis expansivos nesses cartuchos militares? A resposta é simples: porque o uso de projéteis expansivos, em guerra, é proibido pela Convenção de Haia.
Para outras aplicações, excetuando-se guerras, os projéteis expansivos são permitidos e muitas vezes recomendados. São comuns na atividade policial e na prática da caça. Atualmente, o FBI utiliza, em suas carabinas 5,56mm, um cartucho .223 Remington fabricado pela Federal Premium, com projétil expansivo do tipo “soft point”, com 62 grains, da linha “Tactical Bonded”. Mas eu posso usar munição .223 Remington em armas produzidas para o calibre 5,56mm?
.223 Remington x 5,56mm
No início do artigo, ressaltei que quando “militarizaram” o .223 Remington surgiram diferenças técnicas suficientes para caracterizar dois calibres nominais distintos. O .223 Rem permaneceu como cartucho de uso civil e o 5,56x45mm tornou-se o cartucho militar. Ambos têm as mesmas dimensões, no entanto, não são padronizados pela mesma norma técnica. O 5,56x45mm segue as normas especificadas pelo exército dos EUA e pela OTAN, enquanto o .223 Remington segue regulamentação do SAAMI.
Na prática, o que isso significa? Primeiro ponto a ser destacado: tais normas adotam protocolos distintos para aferição de limites de pressão. Tal diferença de metodologia impede a comparação entre os valores estipulados pois, enquanto a norma SAAMI monitora a pressão na câmara, os protocolos militares aferem a pressão na boca do estojo. No entanto, estudos demonstram que quando utilizada mesma metodologia para comparar pressão interna gerada por esses cartuchos, o 5,56x45mm apresenta picos significativamente mais elevados, algo em torno de 10% a mais.
Essa diferença de limites de pressão já é motivo para considerarmos tais cartuchos, enquanto calibre nominal, distintos. Mas as diferenças não param por aí, um calibre nominal não é definido apenas pelas dimensões do cartucho e pelo limite de pressão, as dimensões da câmara fazem parte da normatização do calibre. A câmara destinada ao cartucho 5,56x45mm tem o desenho um pouco diferente da câmara .223 Remington.
O espaço de transição da câmara para o início do raiamento é conhecido por “leade”, nas câmaras acima citadas o “leade” difere em comprimento e angulação. Nas armas projetadas para o calibre .223 Remington, o “leade” é mais curto e, consequentemente, tem angulação mais acentuada.
Portanto, a câmara do .233 Rem, mais justa, combinada com o cartucho 5,56x45mm, potencialmente mais forte, pode resultar em picos de pressão acima do limite para o qual a arma foi projetada. No entanto, utilizar cartuchos .223 Rem em câmaras 5,56mm não acarreta risco, visto que, a câmara 5,56mm é projetada para suportar pressões maiores do que as geradas pelo cartucho .223. Isso explica o motivo pelo qual o FBI, por exemplo, utiliza munição .223 Remington nas suas carabinas 5,56x45mm.
Considerações finais
Conforme proposto no início desse artigo, fizemos um passeio pela evolução do calibre 5,56x45mm. Ficou explicada sua íntima relação com o calibre .223 Remington, assim como a forma com que a história desses cartuchos se confunde com a história da plataforma AR. Conseguimos pontuar o momento em que o .223 Remington passou a ser classificado como 5,56x45mm, até surgir o 5,56mm NATO, com regulamentações específicas que acabaram por separar os cartuchos quanto ao calibre nominal.
O artigo abordou, também, a natureza técnica e as características balísticas das duas principais configurações militares do 5,56x45mm: o cartucho M193 e o SS109. Além disso, foram feitas algumas considerações sobre versões mais modernas dos cartuchos militares, apresentando alguns detalhes técnicos do MK 262, um dos projetos de uma nova geração de cartuchos. Por fim, foram detalhadas as diferenças técnicas do .223 Remington e do 5,56x45mm enquanto calibres nominais, momento em que foi avaliada a possibilidade de intercâmbio entre eles.