1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Após alguns meses ausente do Portal, tenho a grata satisfação de retornar ao pioneiro e maior portal do segmento de armas e assuntos correlatos da América Latina. E, claro, nesse retorno, venho falar sobre um tema de grande relevância para o público desse portal – as instruções com armas de fogo.
Creio que todos os leitores, em alguma época, já manuseou uma máquina fotográfica, utilizando o famoso filme de revelação da marca KODAK para ter em mãos as suas fotos de momentos marcantes.
A história da Kodak teve início em 1880, quando George Eastman passou a buscar formas de simplificar a fotografia e torná-la mais acessível. Naquele ano, Eastman patenteou a chapa seca. Em pouco tempo de funcionamento, a companhia desenvolveu o filme flexível, o papel para negativo e sua primeira câmera, criada em 1888.
O processo de simplificação da fotografia empenhado por Eastman deu início à popularização dos produtos, fazendo com que a empresa, já batizada como Eastman Kodak Company, se tornasse referência mundial no assunto.
Entretanto, em 1975 um engenheiro da Kodak, Steve Sasson, criou o que seria a primeira câmera digital, que tirava fotos de até 0,1 megapixel. Mas o que seria uma grande invenção da empresa seria também uma grande ameaça à maior fonte de renda da empresa, o filme fotográfico. Sendo assim, a empresa não investiu seu tempo e capital na tecnologia de fotos digitais.
A partir dos anos 90 a Kodak entrou em um declínio progressivo e em 2012 entrou com pedido de falência. Seu principal produto, os filmes e revelações de fotos, foram perdendo mercado para as fotos e máquinas digitais. O restante e o sucesso das câmeras digitais é pura história conhecida por todos.
2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS
2.1. E o que essa história tem a ver com as instruções com armas de fogo ?
Estamos acostumados a usar o termo “obsoleto” ou “ultrapassado” quando nos referimos a um produto ou empresa – caso da Kodak e sua câmera fotográfica analógica.
Não há dúvidas que a empresa KODAK teve e sempre terá extrema importância para o mercado do seu segmento. Este artigo não tem qualquer objetivo de critica a empresa e sim de fazer uma analogia do caso concreto com o que pode ocorrer com qualquer outra empresa.
A kodak, apesar de ser um gigante mundial que faliu, há poucos anos veio a se reinventar e se reestabeleceu em outros seguimentos do mercado. Em 2013, a empresa retornou após vender quase todo o seu portfólio de patentes, apostando principalmente no segmento de embalagens, serviços de impressão e tecnologias para telas de toque.
Muitos podem estar se perguntando qual seria a semelhança a história da empresa supramencionado com as instruções com armas de fogo. E a resposta é que há “muita coisa em comum”.
Primeiramente cabe pontuar que as instruções com armas de fogo são ministradas por empresas de instrução/instrutores e esses em geral, mesmo buscando entregar um produto de qualidade, procuram sempre obter balança positiva, ou seja, auferir lucros.
Segundo é que os produtos das empresas, nesse caso as instruções e adestramentos, devem acompanhar a evolução da sociedade e buscar resolver a necessidade das pessoas, tudo isso alinhado ao desenvolvimento tecnológico que implica diretamente na forma como o crime se desenvolve e como poderemos fazer frente a essas ameaças.
Esse talvez foi o pecado capital da Kodak, não entender a velocidade do avanço da tecnologia, das tendências e até mesmo subestimar a concorrência. A concorrência, olhando para o lado do nosso seguimento, poder ser vista como os criminosos que estão sempre se adaptando e buscando maneira de conseguir sucesso no seu intento.
Ocorre que a Kodak, mesmo sendo uma empresa inovadora, era uma empresa industrial do século XX, com pensamento e comportamento do século XX, onde as mudanças de mercado eram lentas e dominados por grandes corporações mundiais.
2.2 Sempre fiz assim e sempre funcionou
Constantemente vemos instrutores, normalmente pessoas até experientes com armas de fogo, se orgulhando que na “sua época era assim…assado” e inclusive ministrando cursos sem nenhum planejamento pedagógico ou mesmo sem os Meios Auxiliares de Instrução (MEI) adequados.
Os argumentos são os mais diversos como: “faço assim e funciona”, o “mestre tal faz assim”, o “mestre tal” é f….. , “ não vou me render a modinhas”, etc. Talvez os executivos da KODAK tivessem pensado exatamente assim quando, no final da década de 70, o engenheiro da empresa de nome Steve Sasson, criou o que seria a primeira câmera digital, que tirava apenas fotos de até 0,1 megapixel.
Tratando de treinamentos com armas de fogo, não podemos comparar o marginal da década de 70 e 80 com os marginais atuais e achar que possuem o mesmo perfil, muito menos equiparar os seus métodos de investidas atuais com os anteriores ou mesmo achar que os seus armamentos tem o mesmo potencial ofensivo de outrora, pois tudo evoluiu e ainda evolui em uma velocidade impressionante, inclusive técnicas do mal.
Não podemos ver o crime organizado atual da mesma forma de quando estava se organizando, no século passado. Não podemos querer enfrentar todo esse conjunto de evolução do crime com as mesmas técnicas e ferramentas que existiam em épocas passadas, até pelo motivo de o que nos dias atuais temos a nosso dispor diversos recursos e conhecimentos atualizados que devem ser potencialmente explorados.
No entanto, na prática não é bem assim, ainda existe uma certa confusão no que é ensinado nas escolas de instrução com armas de fogo. O que percebemos são instruções formatadas para alunos de diferentes níveis e bagagem, mas buscando-se um fim igual para todos.
Isso além de absurdo é ineficaz, pois cada pessoa tem um padrão cognitivo de aprendizagem. Então, como um instrutor pode acreditar e confirmar que em apenas 02(dois) dias o aluno A e B atingirão um nível avançado de tiro, por exemplo, sendo que o aluno A é um iniciante e o B um operador já experiente? Quais são as bases pedagógicas para explicar essa prática?
Os questionamentos acima mencionados não possuem uma resposta técnica e somente achismos e invenções, que por sinal as vezes empolgam muitos e encontra terreno fértil para se propagar.
Ocorre que as doutrinas das instrução com armas de fogo ainda é bastante tradicional no Brasil e não busca a performance funcional e eficaz do aluno. Nessas doutrinas, busca-se níveis mínimos para que o aluno possa sair na rua ,em tese, em condições de portar a sua arma de fogo. O que na prática é uma grande enganação. Isso também ocorre da mesma maneira nos Órgãos de Segurança Pública.
É nesse círculo vicioso, em busca do mínimo, muitas vezes corroborado pela prepotência de instrutores “veteranos” e ainda potencializado pelos conhecimentos rasos disponíveis nas redes sociais, que as empresas de instrução com armas de fogo/instrutores estão perdendo o foco e esquecendo de criar com propriedade a sua possível “ câmera digital”.
2.3 Pontuamos alguns problemas e buscamos soluções
Não tenho dúvidas que no Brasil existem excelentes empresas/instrutores que ministram instruções da mais alta qualidade, não devendo nada a grupos internacionais. No entanto, também posso afirmar que existe “muita fumaça sendo vendida como se fosse fogo” e empresas fazendo “mais do mesmo” sem estabelecer um objetivo definido no propósito de realmente preparar o operador de armas para o enfrentamento.
Para aprofundarmos no assunto, precisamos falar do Processo de Aprendizagem. Normalmente entendemos que quanto mais esforço você coloca, mais resultados você obtém. Esse seria o comportamento esperado, se nossos cérebros fossem armários repletos de prateleiras esperando por informações. Porém vários estudos já podem concluir entendimentos mais completos.
Embora não haja uma compreensão definitiva na área, cientistas têm feito um trabalho muito bom nas últimas décadas, de modo que já temos uma boa noção de como aprendemos.
O aprendizado de coisas novas é baseado em espécie de schemas – pequenos mapas da realidade. O ser humano tem schemas para representar um celular, outro para um automóvel, outro para uma fruta. Conforme as ideias ficam complexas, novos schemas são criados baseados nos esquemas anteriores, utilizando estes como pilares.
É por isso que a curva do aprendizado não é linear como normalmente se pensa. Nosso cérebro não é um balde vazio onde você vai jogando dados, pois se assim fosse, quanto mais dados você colocasse, conforme figura acima, proporcionalmente mais você saberia.
Segundo Paulo Ribeiro “o cérebro se assemelha mais a um organismo complexo, no qual as informações inseridas são processadas e conectadas aos pedaços já existentes. Quanto maior o número de conexões – e não de informações inseridas – maior o conhecimento.”
Como o número de conexões cresce fatorialmente com a adição de novas informações – contanto que sejam conectadas– o crescimento inicial, ou seja, o retorno inicial de aprendizado em termos de esforço, é muito grande.
Se as instruções, por exemplo, forem feitas de modo prático e funcional, as primeiras horas de aprendizado vão trazer o maior retorno possível; o aluno vai do zero até moderado muito rápido. No entanto, o retorno vai diminuindo com o tempo, até estabilizar em um platô. Aí começa surgir o maior desafio para o instrutor.
Ou seja, para ir de muito bom para excelente, o esforço é enorme, e será aí que as empresas/instrutores/professores começam a se perder, não sabendo como proceder e, por vezes, entram sob o “efeito Kodak”, não estando hábil a levar os seus alunos a um nível realmente superior.
A conclusão até aqui é que o verdadeiro gráfico de aprendizagem deve ser entendido como algo da seguinte maneira:
O claro entendimento do que foi escrito nas linhas anteriores é bastante relevante para a progressão do conhecimento e à saída da zona de conforto em que as empresas/instrutores permanecem por vários motivos como comodismo, falta de incentivo até mesmo pela ignorância de realmente não conhecer sobre o processo evolutivo do conhecimento.
Em síntese, se nem todo pedaço de informação é igual, o próximo passo e a saída será descobrir quais são as informações mais importantes e quais devem entrar primeiro para formar o “quebra-cabeça” do conteúdo na mente.
Será nessa seara que a empresa/instrutor deverá buscar qual a melhor maneira de aprender e repassar conhecimento de qualidade. Certamente não será utilizando somente as mesmas ferramentas que foram utilizadas em formações de recursos humanos ocorridas há muito tempo.
Estamos falando aqui da Meta-Aprendizado, mecanismo indispensável para qualquer professor/instrutor.
2.4 Eliminando o efeito “Kodak”
Como já sabemos que nem todo pedaço de informação jogado no cérebro é armazenado da mesma maneira e que tudo depende principalmente do quão bem ele é relacionado ao conhecimento já presente e, principalmente, do esforço aplicado para conectá-lo, é importante registrar que será desse esforço, consciente e aplicado, que nascerá o aprendizado de qualidade.
O meta-aprendizado cobre uma vasta área, desde a parte de desconstrução e seleção das informações, até a parte de estudo, como técnicas de memória, execução, métodos e afins.
Segundo Josh Kauffman, autor do renomado livro The First 20 hour, para a formação do conhecimento é preciso:
- Desconstruir – Qualquer habilidade é, na realidade, um amontoado de outras sub habilidades bastante específicas, você poderá também selecionar quais os mais importantes e em qual ordem irá abordá-los.
- Aprender – Aprenda o suficiente para se corrigir, pois reconhecer o próprio erro é fundamental.
- Remover barreiras – A remoção de barreiras na prática consiste na formação de hábitos, portanto reúna todas as ferramentas e conhecimento necessário sobre a atividade antes de iniciá-la, para tornar mais provável que você continue praticando.
- Praticar – O maior impedimento para o aprendizado não é intelectual, mas emocional. As técnicas do meta-aprendizado permitem que você aprenda as coisas no limite humano, mas você não chegará lá se nem ao menos sair do zero. Ser ruim em algo é desagradável, machuca nosso ego e senso de identidade.
Por fim, ao compreender os elementos acima mencionados, observa-se que a empresa/instrutor/professor deverá cultuar um estilo de mudança contínua para se diferenciar dos demais, buscando oferecer um produto atualizado que desperte o interesse do público alvo.
Assim sendo, a quantidade de tempo que levará o instrutor para adquirir uma nova habilidade e estar apto a repassar o conhecimento é largamente uma questão de quanto tempo concentrado ele está disposto a investir em prática deliberada e experimentação esperta e o quão bom ele precisa se tornar para agir no nível que deseja.
2.5 Fatores complicadores
Nos dias atuais, existe uma grande preocupação em se mostrar o que está fazendo, principalmente pelas redes sociais, do que fazer e ser reconhecido pelo bom trabalho feito. Até porque a primeira opção é mais agradável e exige menos esforço e sem dúvidas em tempos de conexão virtual o marketing passou mais do que nunca a ser uma relevante ferramenta de sobrevivência do negócio e, claro, não há nada demais em usar o marketing agressivo.
No entanto, como o produto que a empresa/instrutor entrega poderá gerar diversas consequências para a vida de pessoas, é importante que o marketing seja usado com responsabilidade e ética. O que muitas vezes não é visto.
Nessa senda, a premissa importante é: não ensine o que você somente viu, ensine o que você sabe realmente fazer. Se não sabe, primeiro aprenda para depois ensinar.
Muitos instrutores, por não estarem dispostos a evoluir e aplicar os elementos da Meta-Aprendizagem, continuam se apegando a métodos de instruções que tiveram nas década passadas ou com professores com pouco conhecimento. Alegam que os que estão mais evoluídos, com técnicas mais contemporâneas e consequentemente em maior destaque, são meros inventores. Já os que realmente evoluíram de forma responsável, esforçando-se em quebrar paradigmas, criticam os mais conservadores. Isso tudo fomenta a desagregamento ao invés da união do seguimento. Claro que para tudo e todos existe as exceções.
Além de tudo isso existe ainda ocorre a tal “birra” entre o desportista e o “tactical“. O primeiro, por estar em plena atividade e competindo acusa o segundo de não treinar no estande. O segundo alega que o esporte não é treinamento para o combate e não há necessidades para realizar. E assim seguem diversas celeumas, inclusive entre os clubes de tiro e empresas segmento.
Todos os fatos acima relacionados, dentre outros, corroboram direta e indiretamente com o a estagnação e a lentidão dos desenvolvimentos de métodos de treinamentos mais didáticos que beneficiem uma maior quantidade de alunos. Imaginem uma união de todas essas classes? Já imaginaram o efeito que isso teria no processo de aprendizagem de todo o segmento?
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje existem diversos mecanismos que podem se complementar e trazer excelentes resultados aos alunos. Simuladores de tiro podem ser usados em complementos a instruções no estande. Mecanismos como simunition, airsoft etc podem complementar as instruções voltadas a cenários mais realísticos. Mas para isso é preciso que os gestores de programas de treinamentos se atentem para as evoluções necessárias.
Uma boa instrução para portar uma arma de fogo não deve se limitar apenas a ensinar o aluno a atirar. É preciso que o mesmo tenha conhecimentos básicos sobre balísticas, entenda a dinâmica do combate, consiga fazer leitura de ambientes, atirar em movimento, sanear panes do armamento, possuir boas normas de segurança, dentre outros elementos importantíssimos para a hora do combate.
A empresa Kodak, assim como muitas empresas e instrutores de tiro, não tiveram a sensibilidade de perceber o movimento que se apresentava. Quando a Kodak percebeu esse movimento, já era tarde, seu gigantismo que no passado era garantia de estabilidade e supremacia no mercado, tornou-se seu maior pesadelo.
Todas as empresas de treinamento e instrutores estão sujeitos ao “efeito Kodak”. Acreditar fielmente que se tem um dos melhores programa de treinamento e não se abrir à perspectiva de conhecer outros projetos ou, ainda, sair criticando todos que não pensa igual a sua empresa, é a fórmula da decadência, isso é uma realidade.
A velocidade das informações é um caminho sem volta e vai afetar a todos, cada vez mais rápido e de forma mais intensa. É interessante observar que quando uma revolução está em andamento, existe pouca percepção pela maioria das pessoas ou empresas, pois os efeitos ainda são pequenos, mas quando o novo modelo se estabelece a mudança é rápida e atinge a todos. Nesse momento que alguns tentam pegar atalhos e é aí que o desastre acontece.
Ante o exposto, existem apenas duas opções, por parte da empresa/instrutor:
(1) não buscar a evolução dos métodos e sair criticando tudo e todos, defendendo somente o seu método em crenças retroalimentadas e assim se tornar um professor/empresa “Kodak”; ou
(2) pesquisar, estudar e buscar opções de conhecimento compatíveis com a realidade atual, saindo do mundo ficto e focando no autoconhecimento e evolução das técnicas.
Por fim, caro gestor de empresa/instrutor, se quer ter sucesso comece algo e ainda:
- Escolha um projeto amável
- Foque sua energia uma habilidade por vez
- Defina seu objetivo e nível de performance
- Desconstrua as habilidades em sub habilidades
- Obtenha ferramentas críticas
- Elimine as barreiras para a prática
- Crie tempo dedicado para praticar
- Crie loops de feedback
- Crie cheklists
Se você é aluno, instrutor, gestor de treinamento etc, e chegou até aqui, provavelmente está querendo abrir mão da sua velha “Kodak” e já está buscando a sua “máquina digital” de alta performance. Então você está no lugar certo, pois no Informas você irá encontrar as ferramentas inicias para quebrar o efeito “Kodak”.
No portal, grandes colunistas oferecem conteúdo de muita qualidade sobre o temas correlatos a este aqui elencado, entre os especialistas podemos citar o Capitão Calaça < https://infoarmas.com.br/colunista/capitaocalaca/ > o professor Humberto Wendling <https://infoarmas.com.br/colunista/humbertowendling/> e o instrutor Marcelo Esperandio <https://infoarmas.com.br/colunista/marcelo-esperandio/>
A vida é feita de escolhas, podemos permanecer no mesmo lugar ou chegar em um outro nível e isso tudo não depende de ninguém, apenas de você. Te espero na próxima foto digital.
Não se conforme com o mínimo, O CÉU É O LIMITE.
REFERÊNCIAS:
https://joshkaufman.net/books/
FERRISS, Timothy. The 4-Hour Chef: The Simple Path to Cooking Like a Pro, Learning Anything, and Living the Good Life. New Harvest; 1st edition (November 20, 2012).
https://aprendizadoacelerado.com/
https://www.jreng.net