1. Considerações Inicias
Durante alguns meses abordamos a temática “A LEGÍTIMA DEFESA E À LUZ DAS REAÇÕES NATURAIS DOS SERES HUMANOS”. No entanto para que o leitor melhor se ambiente com este artigo atual que tratará de uma das classificações do excesso de legítima defesa, Excesso Exculpante, será relevante que leia os nossos artigos anteriores para uma melhor compreensão sobre o tema.
https://infoarmas.com.br/parte-3-o-excesso-de-legitima-defesa/
Pois bem, aqui está uma classificação que é merecedora de uma atenção especial, uma vez que o objetivo deste excesso é exculpar, eliminar a culpabilidade, ou seja, não merece reprovação quem atuar nesse tipo de excesso, pois não poderia ser exigida outra conduta do agente senão aquela realizada, sendo, portanto, o fato típico e ilícito, no entanto não culpável.
Nesse caso o agente está agindo baseado na inexigibilidade de conduta diversa , que caracteriza-se quando o autor age de maneira típica e ilícita, mas não merece ser punido, pois naquelas circunstâncias fáticas, dentro do que revela a experiência dos homens, não lhe era exigível um comportamento conforme nosso ordenamento jurídico.
Segundo Diego Bayer[1] no excesso exculpante, o estado psíquico do agente, elemento de caráter subjetivo, faz com que este ultrapasse a fronteira do que lhe é permitido fazer, onde essa violação ocorre além do devido, em virtude da não consciência e não previsão, não se dando conta o agente que está se excedendo, ao contrário, este acredita ainda que a agressão persiste ou que ainda irá ocorrer. Age este com medo, pavor, surpresa.
É o chamado estado de confusão mental. Neste caso entende-se que estamos diante de causa de exclusão de culpabilidade, pois nas circunstâncias em que o agente encontrava-se, não seria possível exigir um comportamento diferente, sendo, portanto, uma situação de inexigibilidade de conduta diversa.
2. As características exculpantes
Rogério Greco, ao escrever sobre o tema, emite a seguinte e relevante análise:
(…) o pavor da situação em que se encontra envolvido o agente é tão grande que não lhe permite avaliá-la com perfeição, fazendo com que atue além do necessário para fazer cessar a agressão. Essa sua perturbação mental o leva, em alguns casos, a afastar a culpabilidade. Dissemos em alguns casos porque, como regra, uma situação de agressão que justifique a defesa nos traz uma perturbação de espírito, natural para aquela situação. O homem, como criatura de Deus, tem sentimentos. Se esses sentimentos, avaliados no caso concreto, forem exacerbados a ponto de não permitirem um raciocínio sobre a situação em que estava envolvido o agente, podem conduzir à exclusão da culpabilidade, sob a alegação do excesso exculpante.[2].
Essa forma de excesso é decorrente de certos estados emocionais e segundo Pinto “muito frequentes nas situações de legítima defesa e estado de necessidade, quase sempre ligados, numa indissolúvel relação de causalidade, ao resultado desproporcionado entre a agressão, ou a situação de perigo, e a reação”[3].
Pinto esclarece, aprofundando o conteúdo:
A perturbação não deve ser confundida com o medo, pois enquanto este é uma emoção, aquela é a resultante de uma emoção. A agressão provoca o medo que pode produzir a perturbação e, por isso, a emoção é desculpável. Daí não serem só as condutas praticadas sob o medo que permitem a causa exculpante, mas também as que resultam de perturbação fruto de outros sentimentos, como a indignação e a ira. A jurisprudência brasileira vem aceitando a não-responsabilização penal quando o excesso deriva de perturbação de ânimo pelo ataque sofrido[4]
O excesso exculpante seria o decorrente de medo, surpresa ou perturbação de ânimo, fundamentadas na inexigibilidade de conduta diversa. O agente, ao se defender de um ataque inesperado e violento, apavora-se e dispara seu revólver mais vezes do que seria necessário para repelir o ataque, matando o agressor. Pode constituir-se uma hipótese de flagrante imprudência, embora justificada pela situação especial por que passava[5].
Por fim fica bastante claro o excesso exculpante decorre do estado emocional do agente, qual é comumente abalado nos casos de legítima defesa, sendo o resultado desproporcional entre a agressão e a reação. Nessas situações não é possível ao indivíduo estabelecer o exato momento que a agressão cessou para com ele, devido ao estado de abalo emocional em que o mesmo se encontra.
Importante salientar que a jurisprudência brasileira vem se direcionando a aceitar a não-responsabilização penal quando este excesso deriva da perturbação do ânimo após a agressão sofrida.
Ao analisarmos sobre o excesso exculpante e após elencar vários conceitos importantes para o esclarecimento do que seja e como deriva o instituto da legítima defesa e hipótese de seu excesso, voltemos ao caso da apresentadora de TV. Naquela caso, o Ministério Público mineiro entendeu que houve excesso de legítima defesa, pois o indivíduo morto recebeu três disparos na nuca desferidos pelo cunhado da apresentadora que, de acordo à denúncia, continuou na ação após ter cessado a suposta agressão injusta por parte do meliante. Sendo assim indiciou o rapaz por homicídio doloso.
Em entrevista ao Jornal o Globo, de Minas Gerais, o promotor do caso relatou que iria pedir 20 anos de prisão ao acusado, proferindo ainda as seguintes frases:
“Onde é que foram dados os tiros? Na nuca de alguém. Como eu posso entender legítima defesa com quem dá três tiros na nuca de alguém? (…) A legitima defesa exige que você tenha moderação na sua ação. A lei não diz que você pode matar. A lei diz que você pode se defender, mesmo que tenha que matar. A vítima estava dominada.”[6]
Ocorre que nesses casos é muito difícil identificação do excesso ou não, pois o ser humano a se ver agredido é impossível se exigir dele uma reação especificamente e milimetricamente proporcional. Pelo contrário, nessa situação o instinto de sobrevivência passará a ditar as atitudes do agente, restando pouca ou quase nenhum reflexo agir. Esta talvez seja uma grande falha da legislação brasileira, permitindo por isso entendimentos desconexos com a realidade, como o do caso em questão.
3. Análise do Caso Ana Hickmann
A justiça do estado de Minas Gerais, por meio da Juíza Titular do tribunal do Juri, exercendo o juízo sumariante do tribunal do Juri – uma das fases preliminares de julgamento nos crimes doloso contra a vida – absorveu sumariamente o acusado e defendeu que não se poderia exigir do agente uma conduta diferente daquela que ele teve. Justamente o que analisamos sobre a excludente de culpabilidade e inexibilidade de conduta diversa, nos casos de excesso de legítima defesa.
Analisemos alguns trechos sentença da juíza Âmalin Aziz Sant’Ana, no âmbito do Processo nº 0024.16.091.114-5, do 2º Tribunal do Júri do Estado de Minas Gerais [7]:
- Entendo que está afastada a questão do excesso do uso dos meios, pois, na situação fática, descrita e comprovada nesses autos, não era exigível comportamento diferente do acusado GUSTAVO, isto é, o réu utilizou do meio que dispunha para se defender (a arma trazida pela própria vítima).
- Nenhum de nós, em momento de contenda física incessante, como comprovado, consegue ter discernimento se se está efetuando os disparos estritamente necessários para resguardar sua vida, ou não. Portanto, o número de disparos efetuados (três), não serve, nesse caso, para sustentar o alegado excesso na legítima defesa.
- Portanto, diante do conjunto probatório, entendo que a ação do acusado gravita na órbita da legitima defesa, uma vez que, diante da situação supramencionada, o réu se deparou com uma situação que colocava em risco a sua própria vida e a vida de terceiros que estavam presentes no local.
- Além disso, há que se concluir que não foi comprovada a existência de excesso culpável na legítima defesa, posto que a legítima defesa não pode ser medida de forma milimétrica e nem tampouco, em casos como o dos autos, há que se mensurar quantos disparos bastariam para o acusado se sentir seguro, dada a emoção do momento e seu instinto de preservação da vida.
A magistrada, com fundamento no art. 23, inciso II, do Código Penal, c/c o art. 415, inciso IV do Código de Processo Penal, absolveu sumariamente o denunciado da imputação contra ele dirigida, por ter agido em legítima defesa.
Mesmo assim, logo após o parecer do Judiciário o Ministério Público, bastante inconformado, manifestou-se que iria recorrer entrar com recurso. Mas baseado em quais análises, o nobre leitor deve estar se perguntando, o promotor do caso teve esse entendimento?
O argumento da promotoria apresenta contornos inconsistentes e vai de forma irresponsável de encontro a um aspecto bastante relevante de quem age baseado nessa excludente de ilicitude, pois normalmente se encontra em uma situação tão crítica que não lhe pode exigir que atue com reflexão e calma, calculando milimetricamente o que se precisa fazer.
Rohden [8]faz um relevante abordagem sobre o entendimento do excesso durante a ação de legítima defesa:
Dessas ponderações pode-se tirar a seguinte conclusão: a partir do momento que uma pessoa entra na casa de alguém armado, este alguém está autorizado, por lei, a praticar todos os atos necessários a proteger sua vida e de seus familiares. Ora, como vou saber o que a pessoa pretende? Quer ela roubar? Estuprar? Agredir? Tão somente assustar? Ninguém poderá dizê-lo. Daí que o Código Penal diz que a legítima defesa existe não só quando a agressão contra a pessoa é atual, mas também iminente. Esta expressão não foi colocada ali por acidente. Tem um propósito específico, a saber: proteger os inocentes naquelas situações em que algo de maléfico se lhes pode acometer, embora não se possa saber com certeza. E nem se poderia, pois “Perante o livre-arbítrio alheio, nada é previsível.
Pode, ainda, o erro derivar-se de um caso fortuito, tratando de um erro pelo qual se permanece nos limites do exercício do direito e por isso o agente não pode ser punido a título de excesso.
Se o excesso não resultou da intenção específica, e o resultado é antes o objetivo da defesa, não haverá responsabilidade e a ação excessiva se fundirá com a ação necessária, até o ponto de ajustar-se a uma intenção lícita e natural.
O excesso pode originar-se de uma falta não grosseira, isto é, resultar de uma crença razoável e escusável, de se estar atuando dentro dos limites previstos pela lei; nesse caso, não se poderá falar nem mesmo na existência da culpa. A legítima defesa é reação humana. Há situações de fato que forçam o agredido a se defender, resvalando, mesmo, por compreensível excesso.[9]
Enfim, no excesso exculpante busca-se eliminar a culpabilidade do agente, ou seja, o fato é típico e antijurídico, deixando contudo, de ser culpável, em virtude de no caso concreto, não poder ser exigida do agente outra conduta que não aquela por ele adotada.
3. Conclusão
Pelos estudos elencados nos 04(quatro) artigos desse compêndio e análise doutrinária, observa-se que a legítima defesa está pautada em alguns requisitos que precisam existir na ação para assim ser consubstanciado o instituto.
Existe, portanto, duas situações que a ação de legítima defesa pode ser considerada excessiva: a utilização de meios inadequados para repelir a injusta agressão e a continuidade da ação defensiva, que nesse caso passa a ser tornar também uma agressão – pois já havia cessado a agressão inicial realizada pelo oponente.
Como o excesso na legítima defesa está intrinsecamente relacionado ao rompimento da relação de proporcionalidade das ações, requisito importantíssimo e também pela moderação dos meios, nem sempre os Tribunais têm o mesmo entendimento, tendo sido necessária essa investigação por parte desses artigos.
No entanto, no desenvolver dos artigos foi elucidado que não tem como se obter um padrão de procedimento e comportamento humano em caso de legítima defesa com armas de fogo, até porque o confronto armado tem suas peculiaridades e o homem sob o efeito do estresse e na tentativa de sobreviver agirá de maneira distinta.
O problema é que o tema vem sendo tratado equivocadamente por anos, onde se busca correlacionar a capacidade de um agente deter um oponente que lhe impele uma injusta agressão com apenas um disparo de arma de fogo. Para isso o agente teria que usar uma munição efetiva que melhor transferisse um poder de parada eficaz, porém essa garantia de incapacitação não existe, sendo, portanto o “poder de parada” um mito. Mas essa fantasia ilude e fascina por vezes a mente de juízes e promotores que normalmente não conhecem as agruras do confronto.
Fica esclarecido que o excesso não pode, em hipótese alguma, ser analisado apenas à luz do número de disparos. Essa nuance deverá ser apenas uma das peças para se chegar a análises e decisões jurídicas adequadas, pois dentre os fatores um dos mais determinantes, ainda mais do que a quantidade de tiros, é o aspecto temporal. Esse limite, entre quando cessa a injusta agressão e quando o agente parou de disparar, é um desafio a ser vencido, e, aí sim, fortalecida ou enfraquecida a tese da correlação com o excesso.
Desta forma, conclui-se que a quantidade de disparos durante o processo de repelir uma injusta agressão não configura o excesso na legítima defesa, enquanto a ameaça continuar sendo atual ou iminente. Pois o excesso ocorre quando após cessada a injusta agressão o defensor continua, por espontânea vontade, disparando no oponente.
Porém não é incomum, já observado em diversos julgados, a indicação da quantidade elevada de disparos para fundamentar o excesso na legítima defesa sem um contexto aos fatos ocorridos durante o confronto. Ou seja, juristas desconsideram o entendimento legal do excesso exculpante que isenta de pena o agente que se excede por erro justificado, conforme previsto nos termos do artigo 20, § 1º do Código Penal.
No Direito Penal, postula-se que não pode haver delito se não há culpabilidade do agente, sendo este um elemento essencial. A culpabilidade está associada ao fato de ser possível, naquele caso concreto, exigir que o agente se comporte de acordo com o Direito. Se não é possível fazer esta exigência, ele não é culpável.
Portanto há situações singulares em que o sujeito comete fato típico e antijurídico, todavia, dadas as circunstâncias, inexige-se conduta diversa. Ou seja, há uma norma que fora violada por dado fato delitivo, entretanto, o valor atribuído pela sociedade descriminaliza a conduta do agente, haja vista não se esperar dele outra ação senão aquela. Ou seja, no excesso exculpante, o estado psíquico do agente, elemento de caráter subjetivo, faz com que este ultrapasse a fronteira do que lhe é permitido fazer, onde essa violação ocorre além do devido, em virtude da não consciência e não previsão.
Infelizmente, isso tudo reforça a tese que julgadores, o público em geral, profissionais da segurança pública e diversos outros profissionais relacionados ao ramo da segurança, desconhecem os assuntos a respeito de temas como: aspectos fisiológicos e emocionais correlacionados ao enfrentamento armado, incapacitação por disparos de armas de fogo e a dinâmica dos tiroteios. E esse desconhecimento é muito perigoso.
Outrossim, não se pode avaliar os atos daquele que age em legítima defesa como se estes fossem passíveis de serem empregados de forma prévia e serenamente calculada. Ao contrário, em casos afins, é o instinto de sobrevivência que passa a ditar a conduta do homem, restando pouca ou quase nenhuma reflexão no seu agir. Donde a figura do excesso na legítima defesa pode facilmente conduzir a injustiças, pois negligencia esses aspectos fundamentais que circundam a ação da pessoa que age em legítima defesa.
Por fim, a conclusão que podemos abstrair desse estudo, até então, é que não se pode analisar a legítima defesa como um todo e por ventura o seu excesso apenas de forma objetiva, pois trata-se de um instituto que possuem alguns pressupostos objetivos para sua caracterização, no entanto a análise dos mesmos se caracterizam de um perfil estritamente subjetivo. E como todo análise subjetiva será preciso um estudo pormenorizado, observando em detalhes, sem exceção, todos os requisitos e aspectos que envolvem as ações realizadas no desenvolvimento dos fatos.
REFERÊNCIAS
[1] BAYER, Diego Augusto. Legítima defesa: a linha tênue entre o excesso doloso e o excesso exculpante. jusbrasil. Disponível em:<https://diegobayer.jusbrasil.com.br/artigos/121943186/legitima-defesa-a-linha-tenue-entre-o-excesso-doloso-e-o-excesso-exculpante>. Acesso em: 15 abr. 2019.
[2]GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, v. 1, 2004, p. 401.
[3] [4] [9]PINTO, Carlos Alberto Ferreira. O Excesso Exculpante na Legítima Defesa. Recanto das Letras. São Paulo, 2009. Disponível em:<https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/1381904>. Acesso em: 8 abr. 2019.
[5]NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
[6]https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/promotor-diz-que-vai-pedir-pena-de-6-a-20-anos-para-cunhado-de-ana-hickmann-por-morte-de-fa-em-bh.ghtml (acesso em 05 de abril de 2019)
[7]https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_peca_movimentacao.jsp?id=27456534&hash=5948aaccfe39281bc637ad52f06a7094 ( acesso em 05 de abril de 2019).
[8]ROHDEN, Humberto. Sabedoria das Parábolas. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.45