A eleição presidencial intensificou um debate que sempre existiu no Brasil, a respeito da restrição, ou não, de calibres de armas de fogo. Essa discussão, que deveria ser travada no campo técnico, é essencialmente travada no campo ideológico, muitas vezes por pessoas que não tem absolutamente NENHUM conhecimento sobre o assunto e destilam toda a sorte de asneiras, mitos, devaneios e suposições que podem imaginar, irresponsavelmente formando opinião entre um público que muitas vezes se preocupa mais com a manchete do jornal do que com a verdade.
A bola da vez é o “famigerado calibre 9 mm”, tratado por parte da mídia e “especialistas em segurança” como “calibre de guerra” e que deve ser banido do universo, como se o emprego desse calibre pudesse matar “mais” a vítima do que os outros, sendo o “mais” aqui usado como adverbio de intensidade, como se uma pessoa pudesse estar mais morta ou menos morta…
Tenho 18 anos de experiência como Perito Criminal em locais de morte violenta, já tendo atendido a mais de 2 mil casos, grande parte deles de homicídios por armas de fogo e posso dizer que já examinei cadáveres alvejados pelos mais diversos calibres, desde o minúsculo .22 Short até o gigante .45 ACP. Acho que tenho alguma propriedade para falar sobre o assunto.
Visando trazer essa discussão para o campo correto, qual seja, o campo técnico, tentarei esclarecer neste artigo algumas diferenças e semelhanças entre o “temível calibre 9 mm” e o “doce e meigo” calibre .380 Auto, chamado por vários de “melissinha”. Acompanhe até o final e forme a SUA opinião sobre o tema.
Afinal, qual é o tal “calibre 9mm”?
Se você me acompanha há algum tempo, certamente estranhou a grafia que empreguei: “calibre 9mm”. O emprego foi proposital, para demonstrar toda a falta de conhecimento técnico da mídia brasileira e seus “especialistas em segurança”.
Na verdade, quando falamos de “calibre 9mm” não estamos nos referindo a um calibre especificamente e sim a uma família de calibres, tema muito bem explorado pelo sempre impecável autor deste portal, o Delegado João da Cunha Neto, em seu livro “Balística para os profissionais do direito”.
Aliás, a nomenclatura de calibres é um tema que também me é caro, tanto é que dediquei um capítulo inteiro ao assunto no meu livro “Balística aplicada aos locais de crime”, no qual também comento bastante sobre essa questão dos erros técnicos normalmente cometidos em relação aos calibres de arma de fogo.
Vale, ainda, lembrar que o calibre .380 Auto TAMBÉM faz parte da família 9 mm, só que os jornalistas e “especialistas” de plantão não sabem disso… Você pode ler um pouco mais sobre o calibre neste outro artigo que escrevi, disponível neste link.
Um pouco da história dos calibres “primos”
Como os calibres 9 mm Luger e .380 Auto fazem parte da mesma família, podemos chamá-los de primos, certo? Isso significa que tiveram uma origem comum? Não! São primos apenas pela semelhança de diâmetro do projétil. Já a história é completamente diferente…
Começamos pelo calibre 9 mm Luger, desenvolvido em 1902 por George Luger para ser usado na pistola de mesmo nome e de produzido pela DWM (Deutsche Waffen und Munitionsfabriken) (fábrica alemã de armas e munições). Foi desenvolvido a partir do calibre 7.65x21mm Parabellum desenvolvido para a pistola Luger P08, que por sua vez foi derivado do calibre 7,65x25mm Browning, usado na pistola Borchardt C-93, uma vez que os alemães queriam um projétil mais pesado.
O sucesso do calibre nas pistolas Luger logo se difundiu, já dando origem a várias lendas acerca do seu desempenho balístico. Ele se apresentou tão eficaz que passou a ser adotado pela OTAN em 1982 como calibre padrão das armas curtas (STANAG 4090). Foi também o calibre de dotação de várias forças de segurança, inclusive pelo FBI, até ser substituído temporariamente pelo calibre .40 S&W, que acabou perdendo o posto na década passada pelo seu antecessor, por motivos que merecem um artigo específico.
Já o calibre .380 Auto foi desenvolvido em 1908 por ninguém menos que John Moses Browning. Apesar da fama de bonzinho e dócil, já começou causando treta, pois foi o calibre usado no atentado do arquiduque Francisco Fernando, da Áustria, com dois tiros. Este fato histórico foi um dos fatores que levou à deflagração da primeira guerra mundial. É importante também lembrar que o calibre .380 Auto era de uso restrito até 1.987, sendo liberado para o uso permitido pela portaria ministerial 1.237/87.
Então o .380 Auto é um 9 mm?
Sim! Como vimos anteriormente, o calibre .380 Auto faz parte da família 9 mm, que é composta por vários calibres. Se você pesquisar na base de dados antiga do excelente site municion.org, verá que dentre as nomenclaturas adotadas para o calibre .380 Auto estão também as nomenclaturas 9 mm Brc (Browning curto), 9x 17 mm, 9mmK (o K vem da palavra Kurtz, que significa curto, em alemão), dentre outras.
Características
Veja um comparativo entre as medidas dos calibres .380 Auto e 9 mm Luger, extraídas da Norma SAAMI:
Veja nas medidas que o diâmetro do projétil de calibre .380 Auto é ligeiramente SUPERIOR ao diâmetro do projétil de calibre 9 mm Luger. Veja também que ambos apresentam estojos com formato cônico, mais acentuado no calibre 9 mm Luger, que apresenta diâmetro do culote ligeiramente maior. Um ponto digno de nota é a diferença nos comprimentos dos estojos. O calibre 9 mm Luger apresenta comprimento de 19,15 mm, o que justifica a nomenclatura 9 x 19 mm, uma vez que a segunda medida se refere exatamente ao comprimento do estojo. Já o calibre .380 Auto apresenta estojo com comprimento de 17,27 mm, motivo pelo qual tal calibre recebe a nomenclatura 9 x 17 mm.
Os calibres também apresentam diferenças entre as massas dos projéteis, velocidade na boca do cano e pressão de câmara. Vejamos:
Essas variações mostradas na tabela anterior são o principal fator que diferencia os dois calibres. O calibre .380 Auto admite projéteis relativamente leves, com no máximo 100 grains de massa. Já o calibre 9 mm Luger apresenta maior tolerância, admitindo projéteis de 88 a 147 grains. Outra diferença crucial é a velocidade na boca do cano, que são sensivelmente maiores para o calibre 9 mm Luger, mesmo se considerarmos projéteis de mesma massa. Isso se deve principalmente às maiores pressões desenvolvidas pelo calibre, que são quase o dobro das pressões admitidas pelo calibre .380 Auto.
Essas diferenças entre os calibres .380 Auto e 9 mm Luger significam que ele é mais letal?
Essa questão da letalidade de um calibre é sempre usada quando se quer traçar uma narrativa antiarmas. A questão é: o que define um calibre como “mais letal”? Matar “mais” uma pessoa?! Definitivamente não. A morte vai depender principalmente de outros fatores que ultrapassam a simples designação do calibre. Já mostrei aqui no InfoArmas e em diversas palestras que a incapacitação balística depende de três fatores: localização, penetração e diâmetro da lesão.
Armas de fogo não incapacitam pelo impacto e sim pela lesão. No caso das armas curtas, a lesão produzida será essencialmente aquela causada pela ação direta do projétil e estará diretamente relacionada com o tamanho desse projétil. Como a diferença de diâmetro dos vários calibres comumente usados para defesa, a saber, calibres .380 Auto, .38 SPL, 9 mm Luger, .40 S&W ou até mesmo o .45 ACP, é muito pequena, a diferença no tamanho da lesão também será muito pequena. Veja na figura seguinte um experimento controlado mostrando as diferenças no aspecto externo das lesões produzidas por vários calibres diferentes em um pedaço de pele de porco:
O principal fator que irá interferir, no caso dos calibres para defesa com armas curtas, é a PENETRAÇÃO do projétil. Aí reside a grande deficiência do calibre .380 Auto. A penetração depende principalmente de dois fatores: forma e massa. Projéteis não expansivos penetram mais que projéteis expansivos. Projéteis mais pesados penetram mais que projéteis mais leves, desde que tenham o mesmo formato.
Por apresentar projéteis extremamente leves, o calibre .380 Auto perde bastante no quesito penetração, em relação aos calibres com projéteis mais pesados, principalmente no caso de impactos em anteparos intermediários. Daí o motivo de ser preterido em favor do calibre 9 mm Luger, já que ambos apresentam vantagens como maior capacidade das armas e menor recuo.
Concluindo… Qual é a vantagem do 9 mm Luger que o torna tão desejado?
O calibre 9 mm Luger se mostra hoje como a opção mais adequada para a DEFESA, pois possui bom desempenho balístico, ou seja, boa penetração, mesmo com impactos em anteparos intermediários, desde que utilizando uma boa configuração de munição, que apresente boa penetração; possui diversas opções de modelos de armas e munições; apresenta baixo recuo, proporcionando melhores agrupamentos.
Suas vantagens não estão relacionadas à sua “potência” ou “letalidade”, fatores que não podem ser associados diretamente a um calibre e sim a uma conjugação de elementos para cada caso específico, não dependendo, portanto, do calibre. Conforme foi demonstrado, os motivos que levam tantas pessoas a restringir o calibre são muito mais ideológicas do que técnicas.
Ao contrário do que propalam os leigos, o calibre não tem nada de “superior” ou “especial” que o torna “mais letal” do que outros. Não há nada que justifique um uso “restrito” ou “especial” do calibre, senão simplesmente o fato de ser a opção mais equilibrada entre penetração, recuo e disponibilidade. Não provoca lesões mais sérias, não “mata mais”, não é “mais poderoso”, muito menos é um “grosso calibre”.
Ao invés de demonizar o calibre em si, os defensores das “restrições” ao calibre deveriam se preocupar, na verdade, no desenvolvimento de políticas de segurança pública que retirem de circulação as armas que verdadeiramente são a grande ameaça à nossa sociedade: as armas ILEGAIS.