A menos que você seja um criminoso, a única possibilidade de se atirar contra alguém é para defesa. Isso inclui os policiais e pessoas que portam armas para cumprimento do dever legal. Não há outra hipótese. A próxima afirmação, contudo, talvez lhe pareça mais pretensiosa e menos óbvia. Qualquer um que dispare para se defender não pretende matar seu alvo. E, novamente, incluindo os policiais.
Quer dizer que todos os policiais que atiraram contra as 5.660 pessoas mortas pela polícia brasileira no ano passado não tiveram intenção de matar? Sim, é isso. A menos que se demonstre que o policial agiu de forma excessiva ou ilegal, sim.
Matar ou incapacitar?
Imagine-se sob fogo. Neste momento, uma arma está apontada em sua direção. Seu corpo e mente estão completamente tomados pelos efeitos da adrenalina e do estresse, em um estado que costumam chamar de “luta ou fuga” (ou paralisia, mas isso é assunto para outro momento). Razoável supor que poucas coisas passariam em sua cabeça neste momento, e o estado de saúde do agressor não seria uma delas. Sua maior urgência é sobreviver. Para tanto, sabe que precisa se livrar daquela ameaça. Se o agressor irá morrer ou sobreviver com isso parece indiferente neste momento. Não é que você não queira – ou queira – a morte do agressor. É tão somente que, neste exato momento, sob ameaça real de vida, isso não é relevante. Você apenas quer se livrar da agressão. E rápido!
Impedir que o agressor continue a ser uma ameaça não é o mesmo que matá-lo. São coisas distintas. Podem ocorrer juntamente, mas raramente simultaneamente. Sim. Quase sempre a ameaça é neutralizada antes de vir a morrer. Por vezes, muito antes. Doutrinariamente, usam-se termos como anular, cessar, neutralizar ou – melhor – incapacitar a ameaça. Assim, incapacitar uma ameaça é atingi-la de forma que ela não seja mais perigosa e não possa ferir alguém mortalmente.
Estando claro que incapacitar e matar são coisas distintas, e que sob uma ameaça grave de morte queremos tão somente nos livrar do infortúnio mortal, precisamos entender então de que forma disparar contra alguém pode incapacitá-lo. Sendo mais específico, precisamos saber o que ocorre com o projétil quando, saído da arma, encontra o corpo do agressor.
É aqui que precisaremos afastar o que ocorre na realidade do que é encenado nos estúdios cinematográficos. Ao contrário do que é amplamente difundido, alguém atingido por um projétil de arma de fogo não será jogado violentamente para trás. Regras simples de física básica explicam isso. Ação e reação, certo? Por vezes a pessoa sequer perceberá que foi atingida. Quem atirou, tampouco. Assim, certamente não é o impacto do projétil o responsável por incapacitar o agressor. Mas o que é então?
Temos que distinguir quatro formas distintas capazes de incapacitar uma ameaça utilizando disparos de arma de fogo.
Sem vontade
Rory Miller conta que, até meados dos anos de 1800, um rifle de antecarga disparava cerca de três vezes a cada minuto. Em contrapartida, um bom arqueiro tinha facilmente uma cadência de doze flechas por minuto. Os arcos eram mais rápidos, e também mais precisos e tinham maior alcance. Tinham, porém, um problema: não faziam fogo ou barulho! E isso importava. Há relatos de que soldados nos dias de hoje preferem utilizar espingardas calibre 12 em detrimento dos eficientes e poderosos fuzis modernos. Diz-se que eles alegam um superior impacto psicológico das espingardas. E podem ter razão.
Incapacitar alguém psicologicamente é demovê-lo da vontade, da intenção de continuar agredindo. Um agressor pode desistir por medo, pânico, dor, decisão sensata, ou qualquer outra razão. Mas precisa, neste caso, desistir. Não são raros os casos em que uma pessoa atingida de forma superficial abandona o combate e se entrega. Isso pode ocorrer inclusive com disparos que sequer acertam o alvo. Disparos ao alto têm essa intenção, por exemplo. Assim, quer-se retirar o potencial lesivo da ameaça atuando no seu psicológico. E só.
A incapacitação psicológica tende a ser imediata. Ocorre, porém, que o atirador não tem quase nenhuma influência neste processo. E aqui há algo que distingue o disparo de defesa policial do efetuado por uma pessoa comum. Um cidadão defendendo-se de um roubo está enfrentando uma ameaça que, normalmente, não está disposta a lutar. Em regra, ele quer somente os bens. Já quem enfrenta equipes policiais sabe que tem grandes chances de ser alvejado – e talvez morto. São percentualmente relevantes os casos em que criminosos enfrentam policiais desejando a própria morte, fenômeno conhecido por Suicide by Cop. Estima-se que algo entre 11 e 36% das pessoas mortas pela polícia podem ter desejado se suicidar desta maneira.
Os mecanismos de ação da incapacitação psicológica são em grande medida meramente psicológicos. Há, contudo, outras formas de incapacitação tratadas por fisiológicas.
Desligando o disjuntor
Conta-se anedoticamente que, durante a guerra da independência de Moçambique, Mike Rousseau, um mercenário rodesiano, envolveu-se em um confronto mortal. Deparou-se, em certo momento, com um inimigo armado com um AK-47 a menos de 8 metros de distância. Imediatamente sacou sua pistola Browning HP-35 e efetuou dois disparos no peito. Não tendo parado o inimigo, efetuou um terceiro disparo na cabeça. Neste momento, a ameaça cessou, ficando incapacitada.
Essa história teria sido relatada para o lendário Jeff Cooper, que, inspirado, criou o famoso exercício chamado Mozambique Drill. A incapacitação buscada – e alcançada – por Mike é a que vamos chamar de incapacitação por lesão no Sistema Nervoso Central, ou SNC. O disparo de comprometimento deve atingir região específica do cérebro ou da medula espinhal. Uma lesão nesta pequena região compromete o SNC, que comanda nosso corpo. Atingida pelo disparo, levará imediatamente a vítima à incapacitação. Em termos vulgares, desliga o disjuntor.
É exatamente este o disparo pretendido pelo atirador de precisão, conforme ficou imortalizado nas cenas dos cinemas e mostrado nos telejornais menos acanhados. Um sujeito (ameaça) aponta uma arma para a cabeça da vítima em um local aberto. O negociador, sempre amistoso e compreensivo, tenta solucionar o impasse de forma acordada. Evoluída de forma irresoluta a crise e decorridas horas de tratativas, teme-se acertadamente pela vida da vítima. De repente…bang! Um disparo certeiro, vindo de um telhado distante, atinge a cabeça da ameaça, que desfalece imediatamente. Não consegue sequer apertar o gatilho. E todos vão para casa com a certeza de dever cumprido.
Este disparo certeiro e incapacitante é uma das melhores hipóteses do tiro defensivo. Ocorre, porém, que ele é dificílimo em um contexto de defesa em circunstâncias habituais. Estima-se que policiais preparados e treinados erram a maior parte dos disparos em confrontos reais. É completamente inexigível que se queira acertar, sob risco de vida, a cabeça ou região específica reduzida da ameaça. É uma região pequena demais para disparos sob adrenalina, em movimento e, comumente, em condições adversas de visibilidade.
Mas não é só um disparo na cabeça que pode impedir, fisiologicamente, um agressor. Por vezes, um tiro certeiro pode ter o mesmo efeito, por mecanismo distinto.
Saco vazio não pára em pé
Suponha que, de forma fortuita, um disparo defensivo atinja a arma do agressor, inutilizando-a completamente. Neste caso, a ameaça está, de imediato, cessada. Óbvio. Da mesma forma, uma lesão na estrutura músculo-esquelética pode reduzir, mecanicamente, a capacidade de agressão letal do sujeito, levando à incapacitação.
Esta é ainda uma forma de incapacitar por danos às estruturas mecânicas que possibilitariam a ação do agressor. Pode ser um dano ao instrumento ou ao agressor. Não importa. O que ocorre, neste caso, é que a lesão impossibilita, de forma mecânica e mesmo contra a vontade do agressor, seu mecanismo de ação. Simples. Pode ser a arma de fogo, lâmina, mão ou cotovelo de disparo, ou qualquer coisa que, por danificada, cesse a agressão.
Embora o resultado da incapacitação mecânica seja positivo e quase sempre imediato, incapacitar alguém desta forma é extremamente difícil e incerto. Primeiro que essas regiões são alvos pequenos e em constante movimento. Segundo que o resultado não é previsível. Nem sempre uma arma de fogo atingida por um disparo será inutilizada, e nem sempre uma lesão na mão impedirá seu movimento.
Resta, assim, uma outra forma de incapacitação fisiológica, certamente a mais comum e corriqueira.
Até a última gota
Em 1986, Miami, agentes do FBI enfrentaram os criminosos William Russell Matix e Michael Lee Platt no episódio que ficou conhecido como Tiroteio de Miami. Os criminosos, mesmo atingidos mortalmente, continuaram a combater e atingir policiais por muitos minutos. O tiroteio durou cerca de quatro minutos, quando foram efetuados cerca de 140 disparos. Este é certamente um dos episódios mais famosos e estudados na literatura policial, tendo inclusive sido responsável pela criação de novos calibres. Não vou, portanto, me alongar aqui sobre ele. Mas o que importa é que pessoas atingidas, mas determinadas, podem continuar a combater.
O famoso médico legista Vincent Di Maio relata que, certa vez, em um tribunal, afirmou que “mesmo que eu me atirasse sobre o senhor neste instante, enfiasse minha mão dentro de seu peito, agarrasse seu coração e o arrancasse do corpo, o senhor poderia continuar parado onde está por dez ou quinze segundos ou inclusive caminhar na minha direção”. E continuou, “porque o que controla seus movimentos e sua capacidade de falar é o cérebro, cujo suprimento de reserva de oxigênio dura dez ou quinze segundos”.
Esse fenômeno de resiliência no combate, mesmo atingido, pode durar tempo suficiente para que o agressor concretize seus propósitos. Durante a Guerra Civil americana e a Guerra das Índias houve relatos com a expressão “os dez segundos do homem morto”. Combatentes experientes percebem que, mesmo atingidos mortalmente e com certeza da morte iminente, há pessoas que podem continuar a combater por dez segundos ou mais! E não precisa ser um atirador habilidoso para descarregar – e, com sorte, recarregar – a arma por completo neste tempo.
Uma pessoa atingida por um projétil irá sangrar. A velocidade desta perda de sangue, sua vazão, depende, claro, do local, profundidade e diâmetro da lesão. Essas são variáveis relevantes e que compõem um triângulo de incapacitação. São estes também os parâmetros de maior peso para a escolha das munições para defesa no protocolo utilizado pela famosa agência americana FBI. Os locais das lesões importam bastante. Estudos sugerem que cerca de duas em cada três pessoas atingidas no peito ou abdômen podem sobreviver por mais de cinco minutos, podendo algumas inclusive continuar a combater. Quando atingidas na cabeça ou pescoço, os números reduzem para apenas uma em cada três, aproximadamente.
O mecanismo de incapacitação depende, neste caso, das feridas provocadas pelos disparos certeiros. Depende, claro, do volume de sangue perdido. Ferido, perde-se sangue até que ocorra a perda de consciência e, com ela, a incapacitação. Sabe-se que se atinge a inconsciência após uma perda sanguínea de aproximadamente 40% do volume total. Em uma pessoa saudável de 70kg, algo em torno de 2 litros de sangue. Quanto mais disparos, mais feridas, mais sangramento e, consequentemente, mais rápida a perda de consciência. Em outras palavras, a incapacitação.
Conclusão
Embora não haja dados sobre isso, é bastante provável que a incapacitação por choque hipovolêmico, juntamente com a incapacitação psicológica, sejam responsáveis pela quase totalidade dos casos de sucesso no uso de armas de fogo para defesa. Os demais, exigem precisão e providências que, em um ambiente de combate defensivo, costumam superar em muito as capacidades do atirador.
Parece claro também que, das duas, a incapacitação psicológica é a que menos depende das ações defensivas. É fortemente dependente das circunstâncias e, principalmente, da vontade e disposição do agressor. Resta, portanto, a incapacitação por choque hipovolêmico como a alternativa a ser considerada no tiro defensivo. E, compreendendo como ocorre a incapacitação por perda sanguínea, devemos adequar então a dinâmica do combate à ela.
Algumas coisas precisam ser consideradas:
- Uma ameaça pode continuar sendo uma ameaça por tempo suficiente para uma agressão letal mesmo após ter sido atingida. Esteja preparado!
- Não será o impacto do calibre que fará cessar a agressão e sim, provavelmente, as lesões decorrentes do disparo. Assim, considere importantes o local de acerto, profundidade e diâmetro da lesão.
- A quantidade de acertos pode reduzir o tempo de incapacitação. Quanto mais feridas, mais sangramento e mais rápida a inconsciência. Portanto, mantenha-se pronto para atirar enquanto não cessar a ameaça letal. Sua vida e a de outros inocentes pode depender disso!
- Tomar uma decisão diante de uma ameaça letal é complexo e extremamente difícil. Tenha suas dúvidas, questões emocionais, religiosas, legais e morais resolvidas antes do confronto. Ou deixe sua arma em casa.
- Por fim, treine! Suas ações em combate refletem o que você treina. Acertar ou errar um disparo pode ser a diferença entre a vida e a morte.