Parte 1
Introdução
“Ser ou não ser, eis a questão” uma das frases mais emblemáticas da peça “A tragédia de Hamlet” sobre o príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare. Esse fundo filosófico é usado como uma frase interrogativa na reflexão de diversas decisões em nossas vidas. E nesse artigo vamos refletir sobre uma escolha que atualmente causa alvoroço no mundo tático. O uso do Pronto alto e Pronto baixo em atividades operacionais, tiro esportivos, treinamentos de autodefesa civil… etc.
Por questões didáticas, vamos dividir esse artigo em duas partes. Falaremos especificamente do uso dessas técnicas em atividades operacionais policiais e o uso para autodefesa civil.
Verdade Absoluta
Como policial há mais ou menos 5 anos, já fiz diversos cursos e treinamentos em muitos lugares do Brasil, com vários instrutores, muitos desses referências em suas respectivas oficinas. Aliás, fui agente penitenciário por 4 anos e tive muitas experiências positivas lá também. Tive contato com integrantes de diversas unidades operacionais nacionais e internacionais, não só como aluno mas também ministrando meus cursos combativos ao redor do país.
“Daria tudo que sei pela metade do que ignoro.”
Renê Descartes
Com toda essa experiência e conhecimento, observo que a cada dia eu aprendo algo novo, que tudo que sei é pouco comparado ao que eu ignoro. Resumindo, o artigo presente é para ser um esclarecedor e orientar melhor aqueles que tem dúvidas sobre a técnica, mas não leve esse trabalho como uma verdade absoluta.
Existem várias formas de verdade, uma delas pode ser definida como a adequação entre aquilo que se dá na realidade e aquilo que se dá na mente.
Para a Igreja Católica a única verdade é aquela revelada por Deus. João, apóstolo de Jesus, disse: “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Nesse caso, a verdade absoluta é sempre uma questão de fé – e fé, diga-se, não se discute. Já para o existencialismo, a verdade é sempre uma escolha individual. Há ainda a questão da percepção da verdade. Por exemplo, o modo como sabemos que estamos com dor de dente é diferente do modo como sabemos que um livro está sobre a mesa. A dor de dente é subjetiva, já o fato de o livro estar sobre a mesa é objetivo.
Por quê eu estou falando isso?
Como indivíduo, o que eu observava como verdade foi alterando ao longo do tempo, fluindo conforme eu me posicionava diante do mundo, e conforme o mundo operava sobre mim. E esse entendimento só foi possível graças a minha humildade e fluidez na aceitação de outras verdades.
A verdade é algo fluido, que não é tão estabelecida de forma rígida. De acordo com o professor de filosofia, Ricardo Grokorriski, mesmo a ciência experimenta essa fluidez da verdade pois, enquanto uma teoria científica é válida num determinado modelo de explicação do real, ela assume que não é absoluta, que não dará conta de estabelecer a verdade definitiva.
Então antes de continuar a leitura seja fluido como a água!!
Origem
“Quando se trata de técnicas e métodos empregados no tiro tático, existem, em muitos casos, certas soluções desenvolvidas para problemas táticos muito específicos. Infelizmente, ao passar essas técnicas para outras pessoas, às vezes o “porquê” de algo ser feito de determinada maneira é mal explicado ou deixado de fora. Como resultado, muitas vezes, você vê as técnicas sendo ensinadas ou empregadas incorretamente ou sendo adotadas como um método de tiro geral, em vez de uma resposta a um problema específico.”
J. Gurwitch Special Forces, EUA
Historicamente a posição High Ready e Low Ready (tradução Pronto Alto e Pronto Baixo) começou a ser utilizada em competições desportivas de tiro e meados do século XX, o atirador ficava em Stand By (tradução aguardando ou esperando) na posição Pronto Alto ou Pronto Baixo, ao comando do juiz ou fiscal de tiro. Lembrando que a idéia na época era que o atirador estivesse em uma posição de expectativa, e não tinha nada ver com controle de cano.
Alguns veteranos do mundo do tiro dão credibilidade a essas posições no mundo civil a Mid-South Institute of Self-Defense e Shooting and the Direction Action Recourse Center (DARC). Este último fundado em 1996 pelo ex-Boina Verde R. Mason, é um dos principais centros de recursos de treinamento do setor. Manson é creditado por trazer a técnica HR no ano de 2000 para o tiro esportivo.
No mundo militar a técnica HR foi introduzida entre 2004 e 2006, quando surgiu a guerra do Iraque e do Afeganistão. Na época já estava sendo empregada em campo por operadores de Guerra Especial Naval (NSW), principalmente na unidade dos Navys Seals, embora o método principal de segurar o fuzil para CQB em Operações Especiais do Exército ainda fosse o Low Ready.
Como por exemplo os Green Beret (boinas verdes) não utilizava nenhum armamento em Pronto Alto no treinamento de CQB, em razão que na casamata (instalação fortificada fechada, independente ou integrada numa fortificação maior, à prova dos projéteis para treinamento de CQB) os instrutores ficavam numa passarela por cima da casamata, desta forma o controle de cano era fundamental, e o cano para cima seria muito perigoso no treino com munições reais. O instrutor Boina Verde, Mike Glover explica que:
“Realizamos muitas operações em plataformas marítimas e petrolíferas, aonde existiam estruturas, escadas, passarelas vazadas e você não gostaria de apontar o seu fuzil para o seu colega que está na escada sendo o segundo, terceiro homem…
…A guerra mudou muito o jeito de operar, e tivemos que nos adaptar.”
O instrutor Mike Green, Ex Boina Verde afirma as mesmas palavras de Mike Glover, falando que:
Quando estava treinando nas Forças Especiais vi muitos caras usando o LH e o HR. Dando continuidade ao treinamento antiterrorismo no CQB só se via caras usando o LH. E eu imaginei que existia uma razão para isso.
Perguntei a um dos instrutores e ele me disse que como tem o pessoal no catwalk (passarela) não usamos o cano pra cima mais.
Isso é interessante porque nossos treinos mudam nossas táticas e técnicas em razão de medidas de segurança. Com o tempo foi observado que o HR é uma excelente técnica.
Foi só por volta de 2006/07 depois de experiências de combate em Bagdá, que o HR realmente começou a ser usado e ensinado nas unidades do Exército de Forças Especial e o LR ficou menos utilizado.
High Ready no Brasil
No Brasil, o HR começou a ser difundido pelo COT (Comando de Operações Táticas) da Polícia Federal por meio de intercâmbio com os Navys Seals, juntamente com o Grumec (Grupamento de Mergulhadores de Combate) da Marinha. O Sgt Clauber, Mergulhador de Combate do Grumec explica que:
Na década de 70, 80 e 90 utilizávamos o pronto baixo com uma mini uzi (sub metralhadora israelense).
Houve um intercâmbio no ano de 2010 por aí, com o Seals Team 4. E acabamos adotando o pronto alto.
Uma das unidades precursoras dessa posição foi o TIGRE do estado do Paraná (Tático Integrado de Grupos de Repressão Especial) e o antigo COPE de SC (Coordenadoria de Operações Policiais Especiais). O operador do SAER/SC Marcelo Esperandio, ex integrante do COPE e cursado no COTE do TIGRE, fala que:
Quando eu fui no primeiro evento interagências em 2013 quase ninguém usava o PA. Somente o COT e o TIGRE já utilizavam e são precursores dessa técnica. Tinha muita restrição na época, o COPE já utilizava em 2012, mas acredito que o COT e o TIGRE já usavam antes, como o Grumec e o Grupo Anti Terror Comados também.
Fomos um dos precursores e influenciamos algumas unidades do Brasil como o CORE do RJ que conhecia a técnica mas não utilizava.
Somente em 2015 foi visto mais operadores utilizando.
O operador do TIGRE, Everton Princival, cursado no COTE, instrutor, com diversos intercâmbios com unidades internacionais como FBI, DEA, RAID da França, comenta que:
A unidade começou a utilizar a posição “pronto em cima” nos cenários de combate aproximado em edificações por volta do ano de 2011.
De lá pra cá identificamos inúmeras vantagens no emprego dessa posição, o que possibilitou a utilização em outros cenários que compõem o teatro de operações de trabalho da unidade.
Posteriormente, após alguns intercâmbios que o Grupo TIGRE realizou, passamos a adotar o “pronto em cima modificado”, no qual consiste manter a arma longa mais lateralizada, mantendo a coronha em contato com o antebraço, sustentando e estabilizando melhor o armamento.
O operador do GATE SP, Almeida, cursado no CATE, explica que:
Faz uns 2, 3 anos que o GATE está utilizando o Pronto Alto, isso aí surgiu no intercâmbio com o GPI da PF. Eles já utilizavam pois realizaram um intercâmbio com o RAID da França, e aí passaram pra gente. Logo o GATE fez um outro intercâmbio com o GEO (Grupo Especial de Operaciones) que também utilizava o PA.
Aí percebemos que era uma realidade na Europa e trouxemos para o GATE.
É perceptível que houve uma influência muito forte por unidades especiais americanas e européias em unidades brasileiras. É indiscutível ponderar ou duvidar dessas unidades que historicamente sempre estiveram em contato com a guerra e o terrorismo. O que se deve avaliar é se tais técnicas ou táticas são coerentes com nossa realidade para uma melhor contextualização.
Existem hoje várias versões e adaptações não só do LR como do HR, a princípio iremos apenas falar do LR clássico e do HR Crossbody. Vamos alternar as citações em Pronto Alto, Pronto Baixo ou HR e LR. Outras versões deixaremos para outros artigos.
Low Ready Clássico
Como fazer
Para assumir a posição de Pronto Baixo, o atirador segurará o fuzil na posição de tiro, porém vai abaixar o cano ligeiramente para permitir uma observação clara por cima do rifle. O cano deve ser baixo o suficiente para permitir que o atirador veja claramente as mãos dos alvos em potencial, permitindo uma discriminação eficaz do alvo sem prejudicar sua consciência situacional. Se necessário, para evitar apontar a arma para outros membros da equipe, o atirador pode deixar cair momentaneamente o cano mais baixo ou cruzar o cano para a lateral.
O que não fazer
Quando confrontados com uma situação estressante, como um tiroteio, os atiradores têm uma tendência natural de se fixar na mira. Para combater isso, muitos instrutores de tiro tático enfatizam a busca ou varredura após você enfrentar uma ameaça, famoso Follow-Through. Além de procurar por mais ameaças , o objetivo é quebrar a visão de túnel que às vezes acontece com os atiradores. Esse mesmo foco se manifesta com o LH, pois sob estresse, os atiradores podem querer manter a cabeça voltada para baixo, em direção ao cano do fuzil.
O problema com isso é que você está olhando para baixo e não para frente procurando por ameaças. M. Esperandio nos esclarece sobre essa tendência inconsciente:
Seus olhos seguem a sua arma como um cachorro segue um Frisbee, então manter a arma apontada para baixo te coloca num processo inconsciente de manter seus olhos direcionados para arma. Isto acontece por que a arma garante a sua sobrevivência e a coloca no topo da lista de prioridades do seu cérebro, então é justo que ele fique atento a ela.
Outro pronto importante é que no LR clássico o cano fica mais voltado pro chão e consequentemente passa por pernas, quadril, pés… O atirador deve se atentar ao controle de cano principalmente em ambientes confinados, onde ocorre muitas varreduras e manipulação de armas. Imagina você com sua pistola no LH defendendo uma invasão residêncial, e seus filhos de 8 e 12 anos estão com você, qual é a altura média dessas crianças, 1,40m, 1,50m… O cano de sua arma provavelmente nessa posição irá varrer as crianças!
High Ready Crossbody
Como fazer
Para assumir a posição de Pronto Alto “modificado”, o atirador levantará o cano da arma a aproximadamente 45 graus com o cano na altura do seus olhos e colocará a coronha da arma sob o braço e axila. A arma longa cruza o corpo do atirador e fica lateralizada.
Esse HR ele é diferente do tradicional muito utilizado em competições desportivas de tiro, sendo que no tradicional o atirador coloca o fuzil na frente do seu corpo mais centralizado e a coronha fica debaixo da axila. No HR Crossbody o protetor da janela de injeção na arma longa fica virado para seu rosto e a arma mais lateralizada.
O que não fazer
O cano da arma não pode sair da visão do seus olhos, porque o cano muito alto pode bater em batentes de porta, enroscar em algo como um lustre, canos, pode bater em tetos baixos e etc. O cano na visão do seus olhos também irá lhe fornecer um ponto de referência entre o cano e a ameaça, desta maneira aumenta a velocidade de condução do cano para o alvo. Sem contar que haverá um tendência natural de sua cabeça se manter levantada ao contrário do LH.
Não é aconselhável realizar qualquer Pronto Alto na pegada Magwell Grip, empunhadura essa em que a mão de suporte é colocada no carregador do fuzil ou próximo a ele. Para mim, uma das piores empunhaduras para o HR, e é incrível como tem muitos atiradores que utilizam essa técnica. Realizar HR no Magwell causa desestabilidade na hora dos disparos, o peso do armamento fica mais concentrado à frente, retarda a velocidade de engajamento e é péssimo em situações de retenção.
Rodrigo Aranha, Agepen de SC, pós graduado em APH de Combate e Instrutor de APH, grande estudioso em técnicas táticas, explica o seguinte:
Na empunhadura Magwell temos uma característica maior de alavanca Interpotente, o que – provavelmente – dificultará a aquisição de múltiplos alvos!
Empunhaduras como Rodesiana ou C Clamp são as mais favoráveis para o emprego do HR.
Empurre e Puxe
A posição Pronto Alto exige um pouco de técnica e marcialidade do atirador para colocar o cano de sua arma apontada para seu alvo de forma rápida e eficiente. Como a coronha não está apoiada na soleira do ombro, é preciso tirar ela de baixo da axila para poder trazer a coronha para a posição de tiro.
Para isso usaremos a técnica que eu chamo de “Empurre e Puxe”. Você irá empurrar o fuzil para frente, espetando o cano, fazendo com que a coronha esteja desobstruída, depois irá trazer de volta o fuzil em direção ao ombro na posição de tiro. A sua mão de suporte realiza um movimento biomecânico de um Jab, como se fosse desferir um soco e voltasse para sua guarda. Esse movimento com explosão acelera o punho e consequentemente faz com que você esteja em pronto emprego mais rápido.
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Os críticos de plantão irão argumentar, por que eu usaria uma técnica que exige dois movimentos para engajar um alvo, sendo que o LH parece ser muito mais rápido?
Inúmeros instrutores já colocaram à prova qual dessas posições é mais rápida, e sem dúvida o LR ganha por milésimos de segundos, e no combate pode fazer a diferença. Entretanto o LR em certas ocasiões não é mais rápido e nem mais apropriado. Não é sobre qual é a melhor e sim quando o método é o melhor a ser usado.
Como por exemplo, o atirador subindo uma escada o HR seria o mais ideal, o atirador passando por um riacho ou um matagal alto, num combate físico em uma tentativa de retenção da ameaça é muito mais fácil você defender sua arma com o cano para cima do que para baixo, além do mais sua coronha de baixo da axila dificulta a retenção e te fornece uma excelente isometria.
Se tratando em trabalho numa equipe tática, o HR torna menos provável que um operador atire acidentalmente em outro companheiro. Não só em coluna tática mas o operador nessa posição pode tranquilamente escanear o ambiente em 360° sem varrer o cano em quem estiver ao seu redor.
Em deslocamento rápido, principalmente correndo, canos para cima são mais seguros. Se você cair ou tropeçar e houver um disparo acidental é bem provável que o tiro vá para o céu e não no corpo de alguém. No Pronto Baixo caso você caia é possível que você enterre seu cano no chão e a coronha bata na sua cara.
Ainda sobre deslocamento, efetuar tiros dinâmicos, como correr/estabilizar/atirar, o Pronto Alto é mais rápido do que o Pronto Baixo. Foram realizados testes no estande de tiro, o qual o ponto de partida (A estava a 5m no ponto final B), o atirador corre do A ao B o mais rápido que conseguir, e ao chegar no B efetua um disparo no alvo que está a 3m de distância.
Foram realizadas 4 corridas no HR e no LR, sendo que o resultado final de tempo médio ficou:
- High Ready 2.20
- Low Ready 2.80
Transposição de obstáculos como muretas pequenas, por exemplo, o cano para cima evita que sua arma bata na superfície ou até mesmo em você.
No final das contas, pronto é pronto independente se for baixo ou alto, tudo irá depender das circunstâncias e o ambiente.
Resumo
Nessa parte falamos sobre a história, de onde surgiu, sua concepção no Brasil dentro das unidades operacionais, como realizar a técnica HR e LR, o que não fazer.
É um assunto bastante abrangente com muitos detalhes, quase que inesgotável apontar casos, situações e cenários no uso de cada técnica. O foco é tentar repassar o máximo possível de conhecimento básico sobre o tema sem suspense, no esclarecimento de tópicos pertinentes.
Quando tratamos do nível básico em uma técnica, envolve descrições gerais de onde ir e o que fazer. No entanto, mesmo as ações mais simples, como passar por uma porta, podem ser divididas em detalhes minuciosos muitas vezes despercebidos por leigos. Refinar fundamentos como footwork, biomecânica, posicionamento corporal, manipulação de armas, visão e consciência situacional, certamente podem aumentar suas chances de sucesso e sobrevivência ao passar por uma porta. No entanto, uma razão crítica pela qual entrar nesse nível de detalhe deve ser considerado um treinamento “avançado” é porque se um praticante novato tentar se concentrar nesses detalhes, ele provavelmente ficará sobrecarregado, focado internamente e não conseguirá manter a consciência da ameaça. Somente quando você tiver realmente dominado os componentes maiores de um movimento e os relegado à segunda natureza, poderá refinar os detalhes menores desse movimento sem sobrecarregar o cérebro.
Até a próxima!