Desde 1987, o FBI, a polícia federal americana, conduz investigações anuais sobre policiais agredidos e mortos nos Estados Unidos. Se você não sabe disso ainda, é hora de se atualizar. E se você se preocupa com a sobrevivência nas ruas, precisa ter uma impressão dos dados mais recentes para aproveitar toda informação capaz de ajudá-lo a continuar a salvo.
Num desses relatórios, 40 confrontos entre 43 criminosos e 50 policiais foram selecionados. Nele, alguns delinquentes admitiram que portavam armas de fogo desde os nove anos de idade. Eles também disseram que andavam armados a maior parte do tempo. Para a maioria dos policiais brasileiros isso não é surpresa, já que muitos criminosos violentos possuem menos de 18 anos de idade.
Mas pense nessa informação em comparação com os novos alunos que chegam às academias de polícia. Quantos já manusearam uma arma? Quantos já dispararam uma arma de fogo antes? Provavelmente uma minoria. Basta observar que até policiais da ativa encontram dificuldades para comprar armas, munição e equipamentos de qualidade.
A realidade
Quando um policial se destaca, logo é alvo de perseguição por parte de alguns “colegas”. Atiradores profissionais não conseguem viver do esporte e destinam parte do salário dos empregos que possuem para bancar as necessidades do treinamento. Existem poucos estandes de tiro de excelência, sendo comum policiais e militares “treinarem” em alvos improvisados contra barrancos ou pedreiras. Se quem gosta do esporte ou trabalha com armas de fogo encontra tamanha dificuldade, o que dizer do jovem que pisa numa academia de polícia pela primeira vez.
Mas algumas pessoas ainda vão dizer que os novos alunos não precisam estar familiarizados com armas de fogo, pois eles aprenderão o que é preciso durante o treinamento na academia. Até aqui tudo bem, se o treinamento for adequado, com recursos materiais e financeiros suficientes, carga horária farta e, sobretudo, corpo docente qualificado. A vida do policial é muito importante para ser submetida a treinamentos rudimentares por falta de dinheiro, tempo e equipamentos.
Bem, e o que ocorre quando os policiais recém-formados deixam as academias de polícia? Quanto treinamento eles recebem depois que tomam posse? Com as dificuldades já mencionadas, provavelmente a maioria dos policiais jamais receberá outro treinamento. Aqueles que tiverem alguma sorte talvez recebam um ou outro treinamento de tiro antes de se aposentarem. Alguns pagarão por cursos em escolas particulares, e pouquíssimos participarão de um programa de treinamento contínuo.
Contudo de acordo com o estudo do FBI, os criminosos treinam com suas armas de modo regular. Por incrível que pareça 80% dos criminosos entrevistados alegaram participar de aproximadamente 25 sessões de treinamento por ano. Então, analisando apenas a frequência de treino, quem está mais preparado para um confronto armado: o policial ou o criminoso? E o policial à paisana, sozinho, cuidando da própria vida, sem os equipamentos de proteção?
Não se pode esquecer o insubstituível treinamento das ruas, uma realidade no cotidiano criminal, mas uma eventualidade na carreira de poucos policiais.
Outros aspectos dos treinamentos
Analisando outros aspectos dos treinamentos, quantos deles envolvem apenas dispor os policiais numa linha de tiro estática e ordenar que disparem contra um alvo de papel ao invés de atirar enquanto se movem e buscam proteção? Se o policial está barricado, ele pode ficar no mesmo lugar enquanto for seguro. Mas se ele não está protegido, então é preciso ensiná-lo a se mover em busca de uma barricada. Quantos agregam posições de tiro incomuns e distâncias variadas? Você precisa experimentar posições diferentes, pois nem sempre vai estar em pé e totalmente de frente para o agressor. É preciso entender que a distância do alvo é que determina a cadência do tiro. O dinamismo num treinamento é fundamental, pois é a regra num tiroteio!
O problema com a proteção é que a maioria não pensa sobre isso até que seja tarde ou não exista mais uma barricada disponível. Mais uma vez, as estatísticas do FBI informam que a distância entre os policiais e seus assassinos, em 50% dos casos, ficou entre zero e 1,5 metros. O intervalo entre 1,8 e 3 metros representou 19% das ocorrências. Assim, quanta proteção pode existir quando o confronto ocorre a curta distância?
Infelizmente é da natureza da atividade policial estar próximo e lidar com pessoas indesejadas todo o tempo. Você não consegue algemar um criminoso a dez metros de distância. Você não pode realizar uma busca pessoal a cinco metros. Para fazer isso, é preciso estar perto do suspeito; e não existem muitas proteções disponíveis em situações assim. Portanto o policial precisa aprender a se mover para criar alguma dinâmica que force o criminoso a se adaptar à mudança e perder tempo precioso. E quem perde tempo, tem mais chance de perder o confronto.
Então é necessário algum treinamento de tiro em movimento. Além disso, você precisa realizar exercícios de tiro a curta distância. O argumento de que um policial que atira bem a 15 metros distância, também consegue acertar o alvo a três metros está em desacordo com as dinâmicas e com as pesquisas sobre o estresse físico e emocional dos confrontos armados. Quantos policiais já não erraram tiros a poucos metros (ou centímetros) do alvo em ocorrências reais?
E quantas vezes você já ouviu isso: “Pressione o gatilho lentamente até que o disparo ocorra de surpresa!” Isso se aplica, e muito, ao aprimoramento dos fundamentos do tiro preciso. Você tem que saber distinguir as coisas. Mas faz sentido num conflito repentino e a curta distância? Claro que não! Primeiro você está mandando projéteis letais, logo, os disparos não podem pegá-lo de surpresa. Segundo, você realmente acha que vai pressionar o gatilho lentamente enquanto alguém que “treina” 25 vezes por ano está tentando matar você a um metro e meio de distância? Entenda que você pode pressionar o gatilho o mais rápido que puder. O que você não pode fazer é empunhar mal, sacar mal, apresentar mal, apertar o gatilho sem controle como se estivesse com medo da arma, fechar os olhos e abaixar a cabeça.
Portanto os policiais precisam treinar do mesmo jeito que lutam. É por isso também que técnicas mirabolantes de imobilização não funcionam numa briga real, já que o oponente não vai esticar o braço e esperar que você aplique a imobilização perfeita. Então aquilo que no estande de tiro ou no tatame algumas vezes parece divertido, não tem a menor graça nas ruas.
Faça as 3 perguntas
Assim, ao considerar qualquer treinamento, você deve se perguntar: “É simples? Faz sentido no mundo real? Oferece um plano B, caso a primeira alternativa não seja viável?”
Por exemplo, algumas dinâmicas não ensinam a atirar recuando, pois a teoria diz que se o policial se move lateralmente, ele consegue sair mais rápido da linha de tiro do criminoso. Agora, faça as três perguntas. O treino é simples? Sim! Faz sentido no mundo real? Depende! Oferece opções? Não!
Suponha que você está progredindo por uma viela. De repente, o suspeito aparece e dispara contra você. Avançar na direção do atirador é uma opção (kadima, como dizem os israelenses), mas não a melhor para esse momento. Você não pode se mover lateralmente porque a viela é estreita. Então recuar enquanto você atira é a melhor opção. Mas isso ninguém ensinou. Limitar o policial a aprender apenas uma forma de fazer as coisas não faz sentido porque no mundo real é importante ter opções.
Entretanto você não pode colocar toda a culpa no instrutor. Quantas vezes os colegas aparecem para os treinos? Quantos policiais vão ao estande de tiro com comportamentos ruins? Quantos enxergam uma arma de fogo como uma ferramenta qualquer, semelhante a um computador ou uma caneta? Quantos dizem que já sabem atirar porque não querem aprender algo novo? E quantos dizem que já aprenderam tudo?
Você não precisa passar dias estudando os dados do FBI. Basta assistir os vídeos que circulam nos grupos policiais do Whatsapp. Se a realidade não o convencer de levar o treinamento mais a sério; se não fizer as organizações policiais melhorarem o treinamento, então, nada vai fazer! Nem o assassinato de cerca de 380 policiais brasileiros todos os anos!
No livro Sobrevivência Policial – morrer não faz parte do plano (Clube de Autores, 2019, 540 páginas), eu compilo dos dados do FBI de 1993 até 2012, bem como dados de outras polícias.