Beabadotiro por Luciano Lara
E a confusão não acaba.
Depois de ter discutido a falsa propaganda sobre o porte de trânsito do CAC, mostrando o gargalo dos pedidos do porte de arma para defesa pessoal Sinarm, vamos avançar em um terreno ainda mais perigoso: o tal “sacou tem que atirar” (sic).
Impressionante como especialistas das mais variadas espécies aparecem sempre que o assunto arma de fogo surge, e isso muito se dá por conta do imaginário popular altamente contaminado por verdades de filmes e seriados.
Soma-se a isso a propaganda desarmamentista que tanto afeta a imprensa e os meios de comunicação, chegando à conclusão quase inexorável de que normalmente quem fala dessas pérolas nunca portou uma arma de fogo na vida. Nem um dia sequer andou armado, mas já tem a fórmula pronta de ação, reação e conclusão de uma situação de emprego da arma de fogo – “sacou tem que atirar”.
A desinformação continua e afeta negativamente a tomada de decisão em preconceito injustificado e perigoso – tal máxima pode afetar sua análise e te colocar em situações desagradáveis e desnecessárias de exposição e risco.
E antes que os incautos já corram a tirar conclusões sem ler o texto, ou pior, lendo e não entendendo (desses é que tenho medo!) já adianto que aqui não estou tratando das situações claras e evidentes de necessidade de emprego efetivo e completo da arma de fogo com a moderação e necessidade que a legítima defesa demanda para afastar agressão atual como descrito na legislação (art. 25 do Código Penal).
Se o seu agressor está armado agindo contra você, bem na sua frente, você precisou sacar sua arma, o fez rapidamente, enquadrou, disparou múltiplas vezes até fazer cessar a agressão, o agressor cai largando a arma e não mais representa ameaça ao que se defende – pronto, está configurada a Legítima Defesa (LD).
Também não está esse artigo se referindo àquelas situações em que nenhum dos 7 (sete) requisitos legais da legítima defesa estejam presentes.
Exemplo dessa vedação é o caso de briga de trânsito, após uma fechada recebida por um motorista o outro condutor acelera emparelha o veículo e começa a buzinar e gesticular de dentro do seu carro nervoso com a atitude do outro que, armado, com porte de arma para efetivação de sua defesa pessoal, vale-se de sua arma para efetuar disparos no condutor nervosinho, crivando-o de tiro para nunca mais buzinar ou ofender trabalhador que por um descuido mudou de pista sem sinalizar cortando a sua frente – óbvio que não estará esse cidadão em Legítima Defesa (LD).
Assim, exemplificadas as situações de evidente legítima defesa e de absoluta impossibilidade de sua invocação, nos resta analisar todas as demais situações em que você, armado, poderá enfrentar e estará sujeito a ser questionado pelo emprego da sua arma de fogo.
E, acreditem, há milhões de situações em que você estará nessa zona cinzenta, nem de legítima defesa, nem mesmo de proibição a invocação desta, mas que portando uma arma de fogo deverá decidir o que fazer e arcar com as consequências dessa sua atitude.
É sobre todas essas situações do dia-a-dia que deve se preocupar quem se dispõe a portar uma arma de fogo: quando não usar é claro e cristalino, quando se defender sob pena de morrer parece óbvio (e nem sempre é) mas para garantir isso deve-se estar preparado, treinado, capacitado, com equipamento compatível com a sua necessidade e com a situação e ainda contar com a sorte, a álea nunca dispensada numa situação dessas – como lembra o Mestre Marcelo Esperandio “quanto mais eu treino mais sorte eu tenho”, aplicando às suas turmas a máxima atribuída ao grande golfista Arnold Palmer.
Ele, inclusive, quem me instigou a falar sobre esse tema ao me enviar um artigo “Must-shoot vs. May-shoot – The Controversy”[1] do Thomas J. Aveni, estudioso policial referência do Conselho de Estudos de Políticas de Polícia (Police Policy Studies Council), publicado na revista Law and Order em que ao tratar das ações policiais em situações em que o policial deve atirar (must-shoot), critica aquelas em que o policial pode atirar (may-shoot), questionando se tais situações não deveriam e poderiam ser evitadas bem como se mudança no procedimento não permitiria minimizar as complicações de ações policiais envolvendo disparo de arma de fogo pelo agente da lei.
Exatamente por tratar dessa questão da zona cinzenta entre a legítima defesa e a não autorização do uso de força letal, aproveito para ampliar o assunto para aqueles que estão portando a arma de fogo para a defesa pessoal/defesa do acervo, já trazendo um primeiro dado: a grande maioria das intervenções policiais é controlada com emprego da arma de fogo sem ser efetuado qualquer disparo, quer seja pela verbalização, seja pela criação de estímulo dissuasório no envolvido que percebendo que perdeu se entrega ou desiste.
Vejam que na escala de uso diferenciado de força (UDF[2]), assim definido por Eduardo M. Betini e Cláudia T. S. Duarte como o ferramental ou o conjunto de ferramentas e técnicas utilizados para determinar as técnicas e os níveis de força a serem empregados para solucionar um conflito, já no nível II de ação normalmente se controla a situação numa escala de força que vai do nível I presença policial ao nível V força letal.
Mas o que isso tem a ver com o cidadão comum que emprega a arma de fogo para a defesa pessoal? Tudo, já que os casos de escalonamento do conflito antecedentes à agressão no mais das vezes dará inúmeras possibilidades de ação que não necessariamente o efetivo disparo da arma, lembrando que estamos tratando das situações intermediárias entre a LD clara e a LD vedada.
Valendo-nos do conhecimento atual de balística, em especial balística terminal, há duas formas de incapacitação de um agressor que são a incapacitação física obtida através de lesão ao sistema nervoso central (disparo na área entre olhos e nariz, também conhecido como triângulo da morte ou na coluna vertebral) ou lesões bastantes em grandes vasos e órgãos importantes que levem a um choque hipovolêmico (perda massiva de sangue) e a incapacitação psicológica que pode se dar por uma série de fatores (medo, dor, desistência do combate, pressão etc.).
Só não esqueçam que, independente da condição que a gerou, se física ou psicológica, incapacitado agressor cessa autorização de defesa: isso quer dizer que a autorização legal e o direito natural de defesa encerram no momento em que a agressão não se faz mais presente, agressor cai e larga a arma, agressor se rende, agressor desiste da agressão e foge, por exemplo.
Comprovação fácil? Claro que não, esse momento de cessação da agressão não se verifica matematicamente, com aqueles também lendários “só posso dar um disparo ou dois no máximo”, nem se constata com o tal “disparo de advertência” que nada mais é do que outra invencionice, mas sim se comprova e depende da constatação efetiva da cessação da agressão.
Mas logo vão dizer: olha que perigo, um texto afirmando que eu devo deixar vivo um agressor após ter justificada uma quase legítima defesa, só porque identificada a cessação da agressão e verificado não existir mais risco a integridade física pessoal ou de terceiro – absurdo – o agressor vai preso, sai no dia seguinte e vai passar a me perseguir e ameaçar!
Pois é: e o fato de matar esse agressor também não impede que um familiar, um amigo, um co-quadrilheiro ou um outro membro da organização dele também o faça. Certeza de que isso não vai acontecer ninguém nunca terá.
O que não se pode é mentalizar a máxima absolutamente descabida de que todo saque enseja obrigação de disparo.
Essas situações de pode atirar (may-shoot) diferente daquelas de deve atirar (must-shoot) demandam preparo até mesmo porque nada impede que um cidadão de bem, treinado, capacitado, bem equipado e que esteja com seu ciclo OODA (Observar, Orientar, Decidir e Agir) afiado, antecipando a ação do meliante/agressor que se preparava para atacá-lo (agressão iminente), saque de sua arma e consiga fazer desistir o agressor que se coloca a correr e sequer anuncia o ataque/agressão, tornando desnecessário, por óbvio, o disparo, ainda que o saque da arma tenha sido realizado.
Da mesma forma numa aproximação de agressores armados de faca ou de simulacros, que acompanhados pelo cidadão de bem que saca sua arma e, antecipando-se à agressão, garante vantagem, inibe os agressores que param e largam suas armas, por temor ou covardia. Desnecessária a realização de disparos.
Voltando ao tema já que exemplificamos algumas das muitas situações intermediárias, retomo a lenda: sacou tem que atirar?
Tão essenciais quanto o treino de tiro, são o conhecimento pessoal de sua capacidade de ação/reação, o treinamento e condicionamento da leitura situacional para garantir elementos suficientes para a tomada de decisão, em especial a de saber agir e ter velocidade para sacar e disparar nos casos de necessidade ante a clara, atual e iminente agressão, bem como ter parcimônia e calma quando não se tratar de caso em que seja essencial o emprego da arma de fogo para defesa, e clareza de entendimento para identificar as hipóteses em que o simples sacar e se preparar para o combate já sejam suficientes.
Recomenda-se a quem pretenda portar uma arma de fogo que realize cursos de treinamento específico para o saque velado, para o disparo de combate, para além de treinar os fundamentos do tiro (essenciais) tenha sua mentalidade de combate treinada.
E pra finalizar, em nenhum momento se sugeriu usar a arma de fogo para ameaçar ou intimidar quem quer que seja, não se está estimulando o sacar a arma para prática de crimes de ameaça ou coação, por óbvio.
Só não dá para conviver com as conversas de quem sequer entende a responsabilidade de um cidadão de bem que na intenção de obter meios de defesa porta uma arma de fogo para sua segurança e de seus entes queridos. Treinem, sempre e muito, e estudem bastante, se conheçam e se preparem para ter condições de agir. Fique vivo, não seja preso por conversa furada, dispara o like e até a próxima.
[1] Aveni, Thomas J., Must-shoot vs. May-shoot – The Controversy, artigo em anexo.
[2] Betini, Eduardo Maia e Claudia Tereza Sales Duarte, Curso de Uso Diferenciado de Força (UDF), São Paulo, 2013, Icone Editora.