Quero deixar claro que o artigo foi escrito com o intuito de um melhor entendimento sobre ocorrências policiais que utilizam o uso da força e dispositivos legais. Minhas considerações aqui confessadas são imparciais e de cunho criterioso e analítico. O artigo não arroja-se à prejudicar os PMs e nem os envolvidos nas ocorrência(s) mencionada(s). Repito, o artigo é focado num estudo de casos de crises em ocorrências.
Felipe Rodrigues
Introdução
O poder de polícia é a autorização ou restrição legal de direitos imposta ao cidadão em benefício da coletividade. Existe o poder de polícia administrativa e judiciária. Esta, segundo Alvaro Lazzarini, é repressiva, porque atua após a eclosão do ilícito penal, funcionando como auxiliar do Poder Judiciário.
Nesse artigo focaremos no poder administrativo, predominantemente preventivo, o qual estão inseridos os agentes de segurança pública civis ou militares. A polícia militar é uma polícia administrativa pois exerce atividades de caráter preventivo usando a ostensividade como meio de vigilância e ações de pronto emprego para restauração da ordem pública. Atuando nos crimes em flagrante, desordem, tumultos, abordagens policiais, etc.
Resumindo, o poder de polícia na atividade da administração pública é a limitação ou disciplina do direito das pessoas, a liberdade e seu interesse na regulação da prática de atos ou abstenção de fatos. É a atuação mais direta do Estado em relação ao interesse público.
Não vou me aprofundar muito sobre o poder de polícia mas acredito que seja o primeiro passo para dar início ao tema já supracitado.
A Ocorrência
No dia 3 de Dezembro de 2019, as 13h, a comerciante Beatriz de Moura Silva de Oliveira chegou com sua filha na padaria que administra em Itajaí, no interior de Santa Catarina. Encontrou um homem deitado no chão e algemado na porta da panificadora. Era Jadson José da Silva, preso em flagrante com cinco petecas de cocaína pelos policiais Adair de Oliveira e Khaique Ferreira da Silva.
Os policiais estavam em uma abordagem policial, o algemado era reincidente e existia ali um risco do criminoso fugir ou lutar contra os policiais para não ser preso. No vídeo que corre nas redes sociais, incompleto, filmada por uma câmera policial, os policiais comemoram a prisão, e nesse tempo estão finalizando a ocorrência no local na frente do comércio e com o criminoso deitado no chão.
Beatriz insatisfeita, não gostou de que os policiais estivessem realizando o serviço em frente à sua padaria e reclamou. O PM Adair verbalizou com Beatriz tentou explicar que era uma prisão em flagrante e a polícia pode e deve realizar os procedimentos necessários para efetuar a prisão. A prisão em flagrante possui natureza administrativa e é realizada no instante em que se desenvolve ou se encerra uma infração penal, a qual pode ser crime ou contravenção penal.
Entretanto, a comerciante não deixou o PM Adair terminar a frase, e seu marido, Cesar que estava no balcão bastante alterado, começa a gritar com os PMs e gesticular que eles não são a lei, e pede para a funcionária ligar para “Polícia e a Advogada”. Dessa maneira, o PM Khaique vai até o balcão e o chama. Primeiramente, Cesar se nega, Após isto houve um contato físico e o PM Khaique retira o Cesar do balcão para contê-lo e acaba imobilizando-o, levando-o para fora do estabelecimento.
Beatriz discorda da ação dos policiais corroborando com a ideia de que era ilegal eles terem entrado no seu estabelecimento. Os policiais anunciaram que a ocorrência estava sendo filmada e há uma concordância consciente da Beatriz sobre a filmagem. Afirma ainda que é trabalhadora e tenta impedir o andamento da ocorrência encostando no PM Adair de forma não violenta. O PM reage tirando a mão de Beatriz de forma rápida empurrando-a. Beatriz retruca a ação com outro gesto físico e o PM dá um tapa na cara da mesma, que reage e vai para cima dele. Nesse momento o PM tenta controlar as mãos de Beatriz que desfere golpes de mãos abertas nele, tentando agarrá-lo.
O PM só consegue imobilizar parcialmente a Beatriz quando ela cai sentada no chão, controlando a mesma segurando-a pelo cabelo. O policial pede várias vezes para ela colocar as mãos para trás, Beatriz ignora e tenta se desvencilhar da imobilização. O PM coloca Beatriz deitada de barriga para cima e começa a aplicar um estrangulamento com uma mão só, e alerta que se não parar de reagir vai apagá-la até desmaiar. Beatriz tenta chutar o PM, que começa a estrangular agora com as duas mãos com o objetivo de cessar a resistência.
Nesse momento a filha de Beatriz tenta acalmar a situação pedindo pra mãe cooperar e o PM soltar sua mãe. O PM retira então, de um dos seus bolsos, um spray de pimenta e joga na Beatriz e em sua filha que se afasta do local rapidamente. O PM Adair consegue então algemar a Beatriz. E o PM Khaique consegue algemar o marido também, dessa maneira todos foram levados para delegacia de polícia.
Análise
O uso da algema
O uso da algema no traficante está muito bem amparado, é a garantia da lei e da ordem, como também a segurança dos envolvidos. Inserir este acessório na atuação policial, sobretudo, requer cuidados frente aos direitos individuais e princípios que regem a dignidade do conduzido e também da legislação vigente. Entretanto, aderir o uso de algema trará mais segurança ao agente e ao escoltado.
“Não algemar o preso seria prendê-lo em cela de porta aberta, ou seja, seria colocar os policiais em risco desnecessário”.
Leandro Daiello Coimbra
O uso da algema em Beatriz e Cesar foi uma consequência clara de desobediência e resistência, que veio seguida de força física iniciada por Beatriz. Os agentes estão amparados para usar a força legal com os meios necessários para vencer a resistência ou para defesa do agente. Matéria essa que está devidamente clara na Súmula Vinculante nº11 editada pelo STF como no CPP em seus artigos 284 e 292.
Vale ressaltar que, mesmo detido, Jadson José da Silva poderia facilmente fugir do local ou ter mesmo confrontado os policiais. Em 18 de de outubro de 2013, em Valença, Pernambuco, um preso algemado conseguiu pegar a arma do policial e efetuar disparos contra o mesmo dentro da viatura. O policial infelizmente morreu no local e o preso conseguiu fugir depois da viatura ter capotado. Outro caso ocorreu em 10 de junho de 2020, um suspeito de roubos e furtos no Mato Grosso do Sul, algemado, mata dois policiais civis com tiros na cabeça. O suspeito estava sendo levado para a delegacia.
As ações irracionais de revolta da comerciante Beatriz foram o grande “estopim” para gerar uma crise desnecessária, fragilizando a segurança dos policiais e obstruindo o andamento da ocorrência de prisão em flagrante de Jadson. Ato esse que pode configurar crime, disposto no Art. 309 do CP:
Art. 329-A – Impedir, embaraçar, retardar ou de qualquer forma obstruir cumprimento de ordem judicial ou ação da autoridade policial em investigação criminal: Pena: Detenção de 1(um) ano a 3 (três) anos, e multa.
Código Penal
Uso da força física
O uso da força é toda a interversão compulsória sobre um individuo ou grupo de indivíduos, reduzindo ou eliminado sua capacidade de auto decisão.
A Secretaria Nacional de Segurança Pública entende que a força deve sempre ser aplicada com moderação.
“A força deve ser empregada de forma moderada, proporcional à gravidade da violação identificada e com intensidade estritamente necessária ao atendimento do objetivo que deve ser atingido. Qualquer desvio ou abuso, reprovados pelo consentimento público, e pela não observância dos limites legais será considerado uso excessivo da força, truculência e arbitrariedade, que levam à descrença e ao medo relacionado às instituições que deveriam respeitar estes limites e responsabilização pelo excesso.”
(SENASP, 2009, p. 54)
Lembrando que no Brasil não há uma lei definida que detalhe o uso da força pela polícia militar com regras a serem direcionadas na formação e treinamento do policial. Existem aspectos que legitimam a força policial, conforme previsão do art. 23 do Código Penal, que diz:
Não há crime quando o agente pratica o fato:
I- Em estado de necessidade;
II- Em legitima defesa;
III- Em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito
Na ocorrência supracitada, os PMs estão em estrito cumprimento do seu dever legal. Como houve interferência física de terceiros, utilizaram também a força física autorizada legalmente. O PM Adair, equipado com uma arma longa (CTT .40 da marca Taurus) desferiu um empurrão para afastar Beatriz, que resistiu e reagiu com tapas. O PM Adair além de estar com uma arma longa, estava equipado com seu material diário (colete, coldre, pistola, carregadores, rádio, etc), e isso causa uma certa limitação de sua mobilidade como também no uso de técnicas de imobilização e contenção.
A arma longa por si só traz diversos cuidados e procedimentos de segurança que o policial tem que ter durante um contato físico, em razão de que esse armamento fica mais exposto. Dessa forma, mesmo com a bandoleira, o acesso ao gatilho desse armamento é muito mais fácil que o acesso à uma arma curta, tendo em vista que numa luta física sua preocupação maior é defender seu rosto, e por vezes esquece de proteger o armamento.
Observando o vídeo é perceptível que a CTT .40 está entre o abdômen e o peito do PM, que tenta se defender de Beatriz usando suas mãos. O PM em nenhum momento reage com golpes de impacto ou contundentes, ele tenta controlar as mãos de Beatriz que desfere tapas. O mesmo quebra a ação de Beatriz colocando-a no chão, usando seu cabelo como ponto de controle. Com essa estratégia do PM remove o movimento dinâmico explosivo da Beatriz pelo simples fato de que uma pessoa em pé é muito mais forte, dinâmica e perigosa do que no chão, mesmo sendo uma mulher. Princípio usado muito no Jiu Jitsu.
Hoje em algumas instituições policiais militares não existe nenhuma técnica ou tática sobre imobilização ou contenção de suspeito e ameaça em que o policial esteja armado com uma arma longa. Como também não há nenhuma informação ou protocolo em manuais sobre. O que ocorre é a divergência de treinamento na formação do policial com a realidade que ele irá confrontar no seu dia-dia. E infelizmente o policial em frente à uma adversidade imensa, tem que improvisar, adaptar por falta de conhecimento técnico, tanto prático como teórico.
Essa improvisação é uma performance muito espontânea, sem preparação específica ou com roteiro e nem sempre sai do jeito bonito e maravilhoso. Quando a improvisação se destina a resolver um problema em uma base temporária num raciocínio rápido, pois a solução “adequada” não está disponível no momento, as coisas podem sair do controle e os resultados podem ser catastróficos.
Talvez se mudássemos o cenário, colocando uma PM feminina no lugar do PM Adair as críticas e os questionamentos continuariam os mesmos?
O que é pior? Um tapa, um soco ou um estrangulamento? Isso é indiferente quando se trata de resguardar a integridade física e a segurança do agente da lei e de terceiros. Não importando se a ameaça for mulher ou homem. A ameaça não tem gênero, não deixa de ser perigosa por seu sexo biológico. Claro que lembrando sempre do uso moderado da força dentro da proporcionalidade, necessidade, conveniência e legalidade.
Equipamentos não letais
Temos vários níveis de uso da força, tem instituições que acabam modificando seus níveis de acordo com sua realidade. A SENASP traz um modelo básico do uso gradual/moderado da força, que são eles:
1. Presença física: é a simples presença policial, diante de um comportamento de normalidade por parte de um agressor, onde não há necessidade da força policial.
Senasp,2006
2. Verbalização: é a comunicação, a mensagem transmitida pelo policial, utilizada diante de um comportamento cooperativo por parte do agressor, que não oferece resistência e obedece às determinações do policial.
3. Controle de contato: são as técnicas de conduções e imobilizações, inclusive por meios de algemas, utilizadas diante da resistência passiva do agressor, que age em um nível preliminar de desobediência (ele não acata as determinações, fica simplesmente parado).
4. Controle físico: é o emprego da força suficiente para superar a resistência ativa do indivíduo, o qual desafia fisicamente o policial, como num caso de fuga. Cães e agentes químicos podem ser utilizados.
5. Táticas defensivas não letais: é o uso de todos os métodos não letais, por meios de gases fortes, forçamento de articulações e uso de equipamentos de impactos, como os bastões retráteis, diante de uma agressão não letal pelo agressor, que oferece uma resistência hostil, física (contra o policial ou pessoas envolvidas na situação).
6. Força letal: é o mais extremo uso da força pela polícia e só deve ser usado em ultimo caso, quando todos os outros recursos já tiverem sidos experimentados. Nesse caso o suspeito ameaça a vida de terceiros.
O PM Adair usou um spray de pimenta contra a Beatriz e sua filha, seria nível 5 seguindo as orientações da SENASP. Sendo assim, realmente houve um excesso no uso desse equipamento não letal? O uso desse equipamento se enquadraria no nível 5?
E no vídeo narrado pelo jornal, dizia equivocadamente que o spray pode causar cegueira, conjuntivite e morte. O que não é verdade. O spray de pimenta, gás pimenta ou gás OC (de Oleorresina Capsicum) é um gás lacrimogêneo, composto químico que irrita os olhos e causa lacrimejo, dor e ao mesmo tempo cegueira temporária.
O gás de pimenta é um agente inflamatório. Causa de imediato o fechamento dos olhos. A extensão dos efeitos depende da quantidade disparada mas, em média, o efeito dura de cerca de 30 minutos, podendo permanecer, com menor intensidade, durante horas.
O Journal of Investigative and Visual Science publicou um estudo que conclui que a simples exposição do olho ao gás é inofensiva, mas a exposição repetida pode resultar em mudanças na sensibilidade da córnea, embora não exista perigo para a acuidade visual. Contudo, tem sido relatado que algumas pessoas estão de fato imunes aos seus efeitos. As razões são desconhecidas. Já houve casos de pessoas morrerem em ocorrências as quais foi usado o spray, mas não em razão do gás e sim de problemas respiratórios, cardíacos ou por estarem presas em lugares confinados com pouco oxigênio. Vale lembrar que esses fatos e dados de vítimas mortas pelo gás de pimenta ocorreram nos EUA na década de 90.
No Brasil existem poucos casos que comprovam realmente que o uso do spray foi o causador da morte, como por exemplo na cidade de Guariba, SP, onde um homem surtou e subiu em cima de um telhado, jogando telhas na rua. A polícia foi acionada e quando chegou no local para conter o homem ele deu um soco em um dos PMs, que revidou aplicando o gás de pimenta. O homem foi imobilizado e socorrido pelos bombeiros, levado ao hospital e morreu de infarto. Porém, não foi comprovado se a morte foi em razão do uso do equipamento.
Conclusão
Houve erros por parte dos policiais em alguns aspectos, e houve erros por parte de terceiros. É extremamente difícil narrar e analisar um vídeo de minutos de uma ocorrência de horas. Complicado julgar ações e decisões humanas em uma poltrona digitando em um teclado, em um ambiente controlado e confortável. Falo por experiência própria como policial.
Nosso modelo do uso da força impõe por si só uma escala bruta e rigorosa, empurrando o policial as vezes a usar técnicas e táticas não letais e letais, pois a sua presença não conta mais como nível de força quanto menos verbalização, creio que o grande motivo é a realidade cruel e violenta do país dentro de uma sociedade educada e borrifada com políticas antissociais mescladas com leis brandas e o alto índice de impunidade.
Sem falar, na falta de modernização e treinamento que colabora diretamente em dados negativos para a polícia brasileira. Segundo André Salineiro, algumas questões estão ligadas a esse modo de uso da força pela polícia.
A polícia brasileira é uma das que mais mata e mais morre no mundo, o que não é necessariamente uma consequência ligada tão apressadamente à ação repressiva, mas a questões de treinamentos de aparelhamento e de inteligência.
(Políticas públicas em segurança pública e defesa social. Salineiro, 2016, p. 70).
Para finalizar deixo aqui um pedaço de um texto do artigo de Dilton Pinheiro de Moraes Júnior que me ajudou muito a finalizar esse presente artigo:
Percebe-se que o policial deve se adequar quanto ao emprego da força e utilizar essa ferramenta conforme a necessidade da situação; contudo; avaliar qual tipo de força será necessária para conter ou neutralizar uma ação delituosa ou que colocaria a vida de pessoas em risco e ainda, se de acordo com o cenário apresentado valeria a pena usar de todas as possibilidades para alcançar o seu objetivo final.
Em muitas operações desenvolvidas pela polícia militar, não se leva em consideração o fato de dependendo do local, existir pessoas que não tem relação com o caso e infelizmente no decorrer da abordagem ou do cumprimento das determinações, o policial acaba utilizando da força excessiva, claro, em alguns momentos para responder a altura da recepção proporcionada pelo lado oposto, porém, por não avaliar o perigo acabam colocando em risco e até vitimando de forma letal pessoas inocentes.
O uso da força pela polícia militar e seus níveis de utilização da força, Dilton Pinheiro de Moraes Júnior
Segue em anexo o link do vídeo da ocorrência:
https://theintercept.com/2021/03/22/pm-estrangula-dona-de-padaria-sc/