É comum, após a repercussão de intervenções policiais resultantes em morte, que seja questionada a adequação do uso da arma de fogo pelos profissionais envolvidos. Neste contexto, imprensa e cidadãos não habituados com as dinâmicas do combate costumam indagar sobre a possibilidade do emprego de disparos não letais, mais especificamente, os “tiros nas pernas ou braços”, como forma de parar um agressor. Entretanto, tais cobranças não se sustentam sob nenhuma ótica, não passando, nas palavras do Dr. Bill Lewinski, diretor executivo do Force Science Institute [1], de concepções baseadas em um “’treinamento hollywodiano’” [2] a que estamos sujeitos ao assistirmos enredos fantasiosos de filmes e séries de TV.
De acordo com a legislação brasileira, o uso da arma de fogo por policiais somente é admitido contra pessoa que “represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros” [3]. A legislação não diferencia disparos letais de disparos em “áreas não letais” – se é que é possível falar nisso como resultado de ação consciente sob estresse -, deixando claro que a utilização do armamento serve para parar uma ameaça, neutralizar um agressor, cessar uma ação violenta e apenas isso. São as hipóteses de legítima defesa, em que o oponente se encontre em estado elevado de agressividade, demonstrando sua determinação para causar danos graves a pessoas que estejam em seus arredores.
A neutralização de ameaças
Existem diversas formas de se neutralizar uma ameaça em confronto, sendo algumas delas:
a) Trauma direto no sistema nervoso central, isto é, destruição total ou parcial do cérebro e/ou da medula;
b) Trauma indireto no sistema nervoso central, através de hemorragias que levem a choque hipovolêmico e comprometimento das funções cerebrais;
c) Trauma em outras partes do corpo, que impossibilitem o sujeito de dar continuidade a sua ação violenta, sem que represente risco imediato de morte (lesões nas mãos, por exemplo, impedindo o uso de armamentos);
d) Reação psicológica de fuga ou submissão de um dos envolvidos, face à ação ou reação de seu oponente ou terceiros.
Como se percebe, à exclusão da primeira, que redunda na neutralização instantânea do agressor, todas as hipóteses estão envolvidas por uma névoa de imprevisibilidade.
O corpo e a mente em combate
Essa imprevisibilidade também atua no corpo e mente dos envolvidos, que, em combate, reagem movidos por mecanismos primitivos de autopreservação. Assim, tão logo se inicia o confronto – ou mesmo em sua iminência -, o cérebro comanda uma descarga hormonal intensa e prioriza a captação de estímulos sensoriais que facilitem a luta pela sobrevivência (reações psicofisiológicas). Como conseqüência, pode ocorrer, por exemplo, decréscimo das habilidades motoras finas (de acionar, suave e progressivamente, o gatilho, por exemplo), perda da visão periférica, exclusão auditiva, dificuldade de perceber, corretamente, distâncias. Algumas pessoas chegam, inclusive, a tomarem como reais devaneios de suas mentes e, até mesmo, perderem totalmente o controle de suas bexigas e intestinos.
E nesse sopro violento, isto é, nesta tóxica e brutal forma de interação humana, a imagem fantasiosa do combatente perfeitamente sereno, preciso e auto controlado – que só existe no universo hollywoodiano – cai por terra. E as estatísticas nos mostram isso. O impacto dos fatores anunciados acima (imprevisibilidade da neutralização de um opoente, reações psicofisiológicas e distorções de percepção) na capacidade combativa de um policial é extremo. No seu Use of Force – Year End Review, o Departamento de Polícia de Los Angeles apontou que, em 2016, nos 40 confrontos envolvendo seus profissionais, estes efetuaram 145 disparos, dos quais apenas 69 (48%) atingiram qualquer parte do corpo dos agressores. Em análises similares, os departamentos de polícia de Nova Iorque e Dallas registraram, respectivamente, índices de 28,3% (2006) e 35% (2003 a 2017).
Imagine, portanto, se é possível e humanamente exigível que, em um incidente onde os participantes tentam, desesperadamente e em frações de segundos, anularem as ações uns dos outros, que se realizem disparos precisos e eficazes em pernas e braços, como forma de neutralização.
Voltemos aos braços e pernas
Braços e pernas são as partes do corpo capazes de realizarem os movimentos mais ágeis e com a maior variedade de angulações. Em uma situação dinâmica como um confronto violento, em que os envolvidos se encontram em movimento, atacando, defendendo ou tentando fugir, é razoável exigir de um policial que, consciente e precisamente, alveje qualquer dos dois? Não. Na verdade, exigir isso amplia a probabilidade de erros nos disparos, o que pode levar a conseqüências fatais.
E ainda que, por uma junção de perícia e sorte, este disparo seja realizado com sucesso, é fundamental considerar que braços e pernas constituem estruturas com menor densidade, se comparadas, por exemplo, ao tronco. Assim, tendo em vista as características das munições e calibres utilizados ordinariamente no serviço policial – com penetração variando de 12 a 18 polegadas em gelatina balística – é de se reconhecer a possibilidade maior de assumirem características transfixantes, aumentando, ainda mais, o risco de se atingirem inocentes.
E vamos além, ambas as estruturas possuem vasos calibrosos que, se atingidos diretamente ou por projéteis secundários (fragmentos de ossos, por exemplo) podem, rapidamente, resultar em choque hipovolêmico e morte. Desta forma, mais uma vez a névoa de imprevisibilidade se faz presente, já que não há garantia alguma da menor letalidade de um disparo nessas áreas.
A realidade, sem devaneios
O tronco, por outro lado, constitui parte do corpo com menor mobilidade, maior densidade e área. Essas características, somadas a tudo o que expomos, o tornam foco preferencial para disparos mais seguros de sobrevivência. E é por isso que instituições policiais e profissionais da área de segurança pública sempre treinaram com esse enfoque, não havendo, até o momento, qualquer justificativa científica apta a mudar protocolos vigentes.
Sendo assim, considerando que a arma de fogo é um instrumento letal, empregada para defesa em situações envolvendo risco de morte ou lesões graves, ainda vale a afirmativa de Jeff Cooper:
“Se você tem justificativa para atirar, tem justificativa para matar, em quase todas as circunstâncias. Não tente ser requintado. Atire no centro de massa.”
[1] Organização norte-americana dedicada, principalmente, ao estudo do emprego da força por instituições policiais
[2] Link 09 Baker
[3] Lei nº 13.060/2014, art. 2º, parágrafo único
[4] COOPER, Jeff. Principles of Personal Defense.