Introdução
Há uma evidente carência de estatísticas e estudos sobre segurança pública no Brasil, em especial, sobre temas relacionados ao uso da força, confrontos armados e vitimização policial. Ao contrário de países com uma cultura de segurança estabelecida, como os Estados Unidos, as métricas nacionais sobre o tema são, como regra, superficiais, restringindo-se a resultados de apreensões de armas e drogas. Neste contexto, pouco sabemos sobre a realidade enfrentada e os padrões de combate experimentados por policiais país afora.
Assim, tomando por base o projeto conduzido pelo Federal Bureau of Investigation (“FBI”), intitulado Law Enforcement Officers Killed or Assaulted (“LEOKA”), buscou-se realizar um amplo levantamento dos confrontos armados letais – ou com potencial letal – envolvendo policiais militares do Distrito Federal. O estudo contemplou dois cenários. O primeiro cobrindo situações em que, durante o serviço, o profissional:
- foi morto ou ferido por disparo de arma de fogo realizado durante interação violenta; ou
- causou ferimento ou morte de antagonista, após efetuar disparos com sua arma.
O segundo, casos em que, fora de serviço, em um contexto de violência urbana praticado contra si ou terceiros, o policial:
- foi ferido por disparos de arma de fogo, morto por causas violentas intencionais; ou
- causou ferimentos ou morte ao reagir/intervir em situação de violência, de forma aparentemente legítima e legal.
O propósito fundamental desta pesquisa foi averiguar as dinâmicas do combate protagonizado pelos policiais militares do Distrito Federal, indicando suas características fundamentais, de forma a possibilitar uma ampla conscientização a respeito dos riscos enfrentados, bem como a adequação de treinamentos e capacitações envolvendo estes profissionais.
Para tanto, dada a escassez de dados oficiais, foram realizadas buscas genéricas no portal de pesquisas Google, com a delimitação temporal de 01/01/2015 a 31/12/2020, através dos termos: (a) policial ferido DF; (b) policial assassinado DF; (c) policial baleado DF; (d) policial executado DF; (e) policial ferido DF; (f) policial morre DF; (g) policial morto DF; (h) policial reage DF; (i) policial alveja DF; (j) policial atira DF; (k) policial fere DF; e (l) policial mata DF.
Em seguida, com o mesmo parâmetro temporal e termos – retirada apenas a sigla DF -, foi feita uma nova pesquisa no Google, com comando específico para que os resultados fossem apenas os constantes no portal da própria Polícia Militar do Distrito Federal e em sites de notícias locais, quais sejam Correio Braziliense, Metrópoles, Jornal de Brasília e G1 Distrito Federal.
Como retorno, foram obtidas 431 reportagens, das quais foram extraídos 147 casos. Estes foram divididos em 3 situações, quais sejam:
- o combate propriamente dito, foco do estudo e que abarca os cenários indicados acima;
- conflitos banais, em que o policial militar, em razão do uso de álcool, da falta de autocontrole ou de escolhas absolutamente equivocadas de locais para frequentar e companhias, gerou ou potencializou a crise com resultado danoso; e
- crises passionais ou familiares, nas quais o policial militar, em razão do descontrole próprio, de familiar ou de pessoa com quem manteve relação afetiva, vitimou ou restou vitimado.
As situações de combate, foco do presente trabalho, totalizaram 119 casos, dos quais foi possível extrair informações como: (a) saldo de mortos e feridos; (b) situação funcional no momento das ações; (c) incidência por dias da semana e período do dia; (d) regiões administrativas e cidades das ocorrências; (e) instrumentos e calibres utilizados pelos antagonistas; (f) quantidade de antagonistas; (g) localização dos disparos efetuados pelos envolvidos; (h) unidades policiais, tipo de serviço realizado, ocorrência, ou não, de disparos por parte dos antagonistas e episódios de acompanhamentos veiculares, quando os fatos se deram durante o serviço; e (i) postura do policial, taxa de sucesso, situação funcional, bem como a presença de amigos e/ou familiares no local dos fatos, quando ocorridos fora de serviço.
Como não poderia deixar de ser, este trabalho se deparou com a dificuldade – presente em obras de diversos pesquisadores nacionais da área de segurança pública – de identificação de fontes confiáveis e capazes de apresentarem os detalhes necessários para a elaboração de análise cientificamente inequívoca. Sendo assim, é fundamental destacar, uma vez mais, que o presente artigo se baseia em coberturas jornalísticas e do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar do Distrito Federal, havendo, obviamente, a possibilidade de imprecisões quanto à profundidade e à riqueza de detalhes relacionados às situações catalogadas. Também é importante destacar a existência de uma cifra negra, isto é, casos não relatados à imprensa e que, por tal razão, não puderam ser contabilizados.
Apesar destes aspectos, considerando as vicissitudes da segurança pública do Distrito Federal, melhor controlada do que em diversos Estados conflagrados que possuem estrutura e meios mais escassos, é possível sustentar um nível adequado de segurança dos dados coletados como base para o delineamento da realidade local.
As dinâmicas de combate
LEOKA: A realidade norte-americana
Em 1930, o FBI assumiu a frente de um programa de âmbito nacional intitulado Uniform Crime Reports (“UCR”), ou Relatório Uniforme de Crimes, em tradução livre. O UCR tem por objetivo a coleta de informações sobre a natureza e tipos de crimes cometidos nos Estados Unidos, de forma a garantir a produção de informações sólidas capazes de subsidiarem ações das instituições de segurança pública e de outros órgãos de Estado. Para tanto, conta com a participação ativa e voluntária de, aproximadamente, 18.000 agências com atribuições policiais, no fornecimento rotineiro de estatísticas.
A partir de 1937, o UCR passou a publicar informações sobre policiais mortos em serviço, subdivisão que evoluiu em 1960, passando a englobar dados de quaisquer tipos de ataques contra estes profissionais.
Em 1972, dois relatórios anuais distintos passaram a ser publicados, quais sejam, o Law Enforcement Officers Killed Summary e o Analysis of Assaults on Federal Officers, ou Sumário de Policiais Mortos e Análise de Ataques contra Policiais Federais, em tradução livre. A partir de 1982, ambos foram reunidos, dando origem ao LEOKA ou Policiais Mortos e Agredidos, em tradução livre[2].
O LEOKA tem por objetivo “[…] fornecer informações relevantes, de alta qualidade e com potencial de salvar vidas, para as instituições policiais, […] na esperança de prevenir incidentes futuros”. Além disso, o programa também se propõe a oferecer soluções baseadas nos achados, na medida em que “os dados coletados são analisados pela equipe LEOKA e os resultados são incorporados ao treinamento de conscientização sobre segurança policial que o FBI oferece às instituições parceiras“.
Para tanto, o programa faz um levantamento minucioso de todos os dados envolvendo ocorrências em que policiais foram agredidos ou que resultaram em morte do profissional. Trata-se de um trabalho realmente muito amplo e detalhista, apresentando as mais diversas informações sobre o policial envolvido, as circunstâncias, o cenário e os antagonistas, o que permite a visualização perfeita da dinâmica de combate envolvendo policiais daquela nação.
Para que se tenha uma clara ideia do altíssimo nível do trabalho, é fundamental indicar alguns dos números levantados. No que diz respeito a policiais agredidos, de 2010 a 2019, foram registrados 549.892 casos, sendo que 22.088 foram atacados através de armas de fogo, 10.008 por instrumentos perfurocortantes, 81.166 por instrumentos diversos e 436.630 golpeados pelos próprios corpos de seus antagonistas.
Quanto aos policiais mortos, no mesmo período, foram registrados 511 casos, dos quais apenas 44, isto é, 8,6%, se deram fora de serviço. Do total, 471 foram assassinados por disparos de arma de fogo, sendo que 67,6% enfrentaram seus antagonistas a distância de até 3 metros, 14%, entre 3 e 6 metros, e 18,4%, acima de 6 metros. Em 343 circunstâncias, os oponentes enfrentaram os policiais vitimados com armas de porte, enquanto em 100 casos foram utilizados fuzis, em 22, espingardas, e, em 46, instrumentos diversos, não reportados ou desconhecidos.
Os combates se deram de madrugada em 110 situações, de manhã, em 105, à tarde, em 134, e, à noite, em 157. Detalhes sobre luminosidade e características do local dos fatos também são indicados de maneira pormenorizada.
Em relação ao padrão de ação/reação dos profissionais vitimados, observou-se que 107 conseguiram efetuar disparos com suas armas de fogo, 70 tentaram fazer seu uso, sem sucesso, e 301 não tiveram nem a oportunidade de tentar usá-las. Os poucos que conseguiram, efetivamente, responder aos ataques efetuaram uma média de 7,3 disparos, com um percentual de acerto de 18,3%.
Fica claro, portanto, que, no cenário norte-americano, o combate envolvendo agentes de segurança pública se desenvolve, majoritariamente, em serviço, a curtíssimas distâncias, sendo sustentado por curta duração, além de ser marcado pela imprecisão e uma relativa paridade de armas entre os envolvidos.
A realidade brasileira
As dinâmicas de combate experimentadas pelo policial brasileiro são, do ponto de vista científico, quase absolutamente desconhecidas. Obviamente, cada policial com experiência operacional tem uma ideia minimamente estruturada de como confrontos armados se desenrolam nas localidades de sua atuação. No entanto, verifica-se uma escassez quase absoluta de dados oficiais.
Por outro lado, algumas abordagens de instituições com foco em estudos sobre segurança pública vêm ganhando evidência. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, apresenta, em seus relatórios anuais, dados sobre vitimização policial. Entretanto, as informações produzidas, como regra, não permitem um detalhamento das circunstâncias em que as mortes ocorreram, mantendo-se na superficialidade.
Adicionalmente, há que se reconhecer a existência de algumas raras iniciativas individuais ou de pequenos grupos de policiais e pesquisadores, focadas em realidades locais e baseadas em escassos dados oficiais, como o artigo “Vitimização Policial: Analise das Mortes Violentas Sofridas por Integrantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo (2013-2014)”, de Alan Fernandes, que traça um perfil do policial vitimado e de variados aspectos do cenário da ocorrência. Ainda nesta seara, é fundamental citar o livro “É um Assalto: E se eu Reagir? Um Guia de Sobrevivência”, dos policiais militares do Estado da Paraíba, Onivan Oliveira, Álvaro Filho e Valdomiro Bandeira, um marco da literatura nacional sobre a realidade policial, cuja metodologia muito se assemelha à adotada no presente artigo.
Apesar destes esforços, é fundamental afirmar que desconhecemos iniciativas institucionais estruturadas, aprofundadas, perenes e amplamente publicizadas, sobre o tema da vitimização, muito menos sobre as vicissitudes do combate ao qual se submete o policial brasileiro.
As dinâmicas de combate no Distrito Federal
No Distrito Federal, a situação não difere muito em relação ao cenário mais amplo, nacional. Os dados produzidos são limitados e restritos, reflexo de uma cultura de segurança ainda incipiente e de uma junção ainda não consolidada entre segurança pública e ciência. Ressalte-se que estas são marcas de um perfil nacionalmente estabelecido, mas com tendências de mudança. Neste sentido, o presente artigo busca traçar as dinâmicas locais, o que faz a seguir.
Características gerais
Dos 119 casos catalogados como situação de combate, 54,6% ocorreram fora de serviço, isto é, quando o policial militar se encontrava de folga ou em situação de reserva remunerada, ou reformado. Os restantes 45,4%, obviamente, se deram em serviço, o que demonstra uma divisão equilibrada.
Em relação aos resultados, foram contabilizados 61 antagonistas feridos e 42 mortos, contra 20 policiais militares feridos e 13 mortos.
No que diz respeito especificamente à vitimização letal do policial militar em combate, a tendência local apresenta relevante diferença estatística em comparação com a dinâmica nacional, tendo em vista que, das 13 vítimas fatais, 92,3% foram mortas na folga ou em situação de reserva remunerada e reforma, enquanto apenas 1 profissional foi assassinado durante o serviço. Se forem incluídos os 6 policiais militares que sucumbiram diante de conflitos banais e situações familiares e passionais – que não são objeto do presente estudo –, 94,73% dessas mortes estarão vinculadas a ocorrências fora de serviço. Esses dados se chocam com as porcentagens apresentadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre a vitimização de policiais civis e militares no Brasil. Conforme os relatórios emitidos pela instituição, apesar da preponderância de casos ocorridos fora de serviço, há uma menor disparidade entre os cenários no âmbito nacional.

Em relação aos dias da semana em que tais confrontos ocorreram, houve um ligeiro destaque para as quartas-feiras, concentrando 21 situações. Entretanto, os dados não apresentaram nenhuma variação significativa, apta a apontar alguma tendência relevante.

Quanto às regiões administrativas, os dados reproduziram parcialmente a densidade populacional do Distrito Federal, com maior concentração de casos em Ceilândia, Samambaia, Gama, Taguatinga e Plano Piloto. De acordo com o relatório de Densidades Urbanas nas Regiões Administrativas do Distrito Federal, da Companhia de Planejamento do Distrito Federal, em 2015, Ceilândia liderava o ranking neste quesito, com 451.872 habitantes, seguida de Samambaia, com 228.356, Taguatinga, com 212.863 e Plano Piloto, com 216.489.
Destoante desta lógica está o Gama, que na mesma época, possuía 134.958 habitantes, encontrando-se em sétimo lugar da listagem. A este respeito, é possível que o resultado decorra do impacto, no Distrito Federal, da criminalidade das cidades do Entorno, como Novo Gama/GO, em que as relações entre polícia e criminosos se desenvolvem de forma mais violenta e conflagrada. No entanto, uma conclusão assim demandaria estudos específicos e aprofundados.

Fora do Distrito Federal, o policial militar também se deparou com os efeitos da insegurança. Foram verificadas 13 situações de combate, a maioria delas em cidades do estado de Goiás, para onde o fluxo de residentes locais é constante. Destes, apenas 2 casos ocorreram em serviço, sendo um deles experimentado pelos profissionais designados para a segurança do Governador do Distrito Federal, na Bahia, e outro por policiais militares do Batalhão de ROTAM, após acompanhamento veicular que rompeu divisas e se encerrou em Águas Lindas/GO.

Achados muito relevantes dizem respeito aos instrumentos apreendidos e calibres das armas de fogo utilizadas pelos antagonistas envolvidos em combate. Destacou-se, com grande vantagem, o revólver como ferramenta de confrontação ao policial militar, seguido das pistolas. Ressalte-se que, na categoria outros, foram incluídos instrumentos sem relevância estatística, pela raridade em que se apresentaram, como armas caseiras/artesanais, pedaços de vidro, etc.

Aspecto interessante e importante de ser citado é o fato de serem raras as apreensões de fuzis com criminosos no Distrito Federal, do que decorre a ausência de combates, com as características enfocadas por este estudo, em que os antagonistas deles se serviram.
No entanto, ocorrência de 22/10/2018, quando criminosos explodiram caixas eletrônicos no shopping Píer 21 e dispararam em direção a equipes da unidade de área, bem como apreensões mais frequentes deste tipo de armamento, indicam uma possibilidade de mudança de cenário. Assim, impõe-se reflexão acerca da estruturação de estratégias e fornecimento de meios e treinamentos especiais aos profissionais de segurança pública, caso essa mudança se concretize.
Simulacros e facas se fizeram bastante presentes nos dados coletados, cumprindo destacar a complexidade das situações envolvendo-os. Quanto ao primeiro, compete ressaltar que, durante uma situação de risco percebido, o policial militar, já imerso em uma série de reações psicofisiológicas ao estresse, dispõe de um lapso temporal mínimo para realizar seu processo decisório de atirar, ou não, contra uma ameaça. Obviamente, este universo caótico torna praticamente inviável a segura diferenciação entre uma arma de fogo real e um simulacro. Indicamos este aspecto pois é fundamental que haja uma apreciação equilibrada, por órgãos de controle interno e externo, pelo Poder Judiciário e pela própria sociedade, ao avaliarem ocorrências em que policiais se serviram da força letal para administrarem problemas desta natureza.
A oposição à ação policial mediante o uso de facas, igualmente, representa um cenário sensível. Apesar disso, medidas como “tiro na perna” e imobilizações impecáveis são enxergadas como opções válidas e exigíveis do policial, uma vez que o imaginário popular tende a ser povoado por convicções formadas a partir de irrealidades propagadas por filmes, séries e opiniões midiáticas emitidas por pessoas sem conhecimento técnico.
Entretanto, vem sendo consolidado, no meio policial, o entendimento de que estes instrumentos possuem grande potencialidade letal para o policial e terceiros, do que decorre, a necessária consideração da opção letal como resposta primária em casos de antagonistas em postura instável e violenta. Isto resulta da disseminação de um estudo realizado pelo policial Dennis Tueller, do Departamento de Polícia de Salt Lake City, Utah, Estados Unidos. Segundo ele, se um agressor decidir atacar o policial, munido de uma faca, a uma distância de, aproximadamente, 6,5 metros, conseguirá percorrer esta distância, em média, em 1,5 segundo. Este seria o tempo necessário para que um policial bem treinado realizasse o saque de seu armamento e efetuasse dois disparos no centro de um alvo padrão humanóide.
Ocorre que a medicina – e inúmeras ocorrências filmadas e amplamente divulgadas – provam que a única forma segura de neutralizar a ação de um agressor de pronto é através de uma lesão direta ao seu sistema nervoso central. Um disparo desta natureza, sob intenso estresse e com um alvo em movimentação rápida e violenta se torna um desafio potencialmente fatal mesmo para policiais excepcionalmente capacitados. Portanto, mais uma vez, é fundamental que haja equilíbrio na apreciação de ocorrências com o nível de tensão citado.
Outro ponto a destacar é que, quando o instrumento escolhido pelo antagonista foi a arma de fogo, verificou-se uma preponderância do calibre .38, seguido dos calibres .40, .32 e .380, indicador que pode auxiliar as políticas de aquisição de equipamentos de proteção balística para os policiais locais.

A realidade referente aos calibres utilizados pelos antagonistas no Distrito Federal reflete, parcialmente, a tendência de outras regiões do país, como indicam pesquisas que avaliaram as armas apreendidas na Região Sudeste e, mais especificamente, no estado de São Paulo.


A respeito dos disparos efetuados pelos policiais e seus antagonistas durante o confronto, apesar de não ter sido possível determinar o índice de acertos, tal qual os relatórios LEOKA, foram observados padrões relevantes. O principal deles diz respeito ao fato de que 49% dos disparos efetuados por policiais – quando seus pontos de impacto foram identificados – concentraram-se nas pernas e pés dos oponentes. Esta elevada quantidade de disparos para baixo não apenas aponta para a forte influência de efeitos psicofisiológicos do combate sobre o policial, como, também, pode ser indicativa de déficits nas habilidades de tiro aptos a gerarem antecipação do recuo ou a tão falada “gatilhada”.

Ainda sobre este ponto, é possível que a qualidade dos disparos tenha sido influenciada por receio de sanções judiciais, fator evidenciado pela “Pesquisa de Vitimização e Percepção de Risco entre Profissionais do Sistema de Segurança Pública”, ou de desmoralização perante a sociedade, especialmente por meio de críticas veiculadas na mídia. Como se sabe, há um abismo entre a realidade policial, os riscos percebidos e as possibilidades concretas de ação/reação, de um lado, e a avaliação jurídica de tais ocorrências, a percepção social e as expectativas envolvidas, de outro.
Esta discrepância, demonstrada pela massificação das críticas – muitas das quais atécnicas – a instituições e condutas policiais, pode representar uma pressão para que esses profissionais hesitem em utilizar a força letal, mesmo quando a situação o exigir, colocando-os, bem como a inocentes, em perigo.

Por fim, do ponto de vista psicológico e levando-se em consideração os mecanismos de defesa intraespecíficos característicos da espécie humana, ainda há de se considerar a possibilidade de que os disparos nas pernas e pés sejam resultado de uma intensa resistência em matar, fenômeno delineado por Dave Grossman em seu clássico livro “Matar – Um Estudo sobre o Ato de Matar”.
Quanto aos disparos realizados pelos antagonistas contra policiais, há uma expressiva diferença nos pontos em que estes últimos foram alvejados. Além da maior porcentagem de situações em que se registraram múltiplos ferimentos, indicativo de que os antagonistas tendem a ações mais impetuosas, há uma concentração destacada de acertos em áreas que se encontrem acima da linha de cintura. Isto pode refletir o fato de que, para o cometimento de delitos, especialmente patrimoniais, criminosos necessitam agir de forma aproximada e baseados na surpresa, do que decorre que, como regra, iniciam suas ações com arma em punho e com alvos já engajados. Outra possível razão reside na grande quantidade de policiais surpreendidos em seus veículos, o que garante uma angulação adequada para disparos concentrados na região citada.

O combate em serviço
As situações de combate em serviço totalizaram 54 casos, dos quais 94,4% resultaram em sucesso da ação/intervenção policial, isto é, sem a ocorrência de ferimentos nos profissionais. Em 3 casos apenas, o resultado foi negativo, havendo 1 policial alvejado na perna, 1 ferido por arma branca e, fato trágico e marcante para a Polícia Militar do Distrito Federal, 1 morto no atendimento de uma ocorrência de violência doméstica em 2015.
Nestas interações, houve uma concentração maior de embates contra apenas 1 antagonista, o que, aparentemente, esbarra na tendência de criminosos de agirem em grupo. No entanto, esta divergência pode decorrer de padrões jornalísticos de narração, que, em situações com registro de mortos ou feridos, tendem a concentrar atenção apenas nestes, deixando, eventualmente, de citar outros envolvidos.

No que tange ao período do dia, verifica-se uma maior incidência de casos de noite e de madrugada, o que pode se justificar pela atuação de unidades com perfil tático mais proativo durante o patrulhamento neste período. Disto decorreria uma atuação mais contundente e incisiva na repressão imediata de delitos, algo tendente a resultar em maior quantidade de confrontos. Este aspecto impõe uma avaliação das capacitações institucionais de tiro, que devem considerar um reforço de treinamentos sob baixa luminosidade.

A respeito das regiões administrativas com maior concentração de casos, destacam-se, Gama, Plano Piloto e Ceilândia cumprindo mencionar 2 casos em que tais confrontos se deram fora do Distrito Federal, um em Salvador/BA e outro em Águas Lindas de Goiás/GO. Dados como estes podem sugerir a existência de áreas nas quais a criminalidade atuante demonstre maior hostilidade à atuação policial, fator apto a nortear estratégias de policiamento mais contundentes. No entanto, é importante que sejam realizados estudos mais aprofundados sobre esta afirmação, que serve, fundamentalmente, como uma reflexão.

Quanto ao local de ocorrência, há um destaque quase absoluto para confrontos em via pública. Isto, possivelmente, resulta da própria dinâmica de atuação do serviço policial ostensivo, em que, geralmente, após ciência do fato criminoso e início de diligências, há uma forte probabilidade de os criminosos já terem iniciado sua fuga.

A ROTAM, por sua tradição e perfil dos policiais que a integram, apresentou-se na liderança da quantidade de casos em que foi possível extrair dados sobre unidades envolvidas.

Isto confere a ela uma expertise no enfrentamento à criminalidade violenta local, gerando uma responsabilidade pela disseminação de conhecimentos e preparação mais ativa dos demais integrantes da Polícia Militar do Distrito Federal.

Confirmando esta tendência de confrontos armados envolverem, com maior frequência, policiais com ímpeto mais proativo, grupos de patrulhamento tático, de unidades de área ou especializadas, concentraram 54,5% dos casos em que este dado pôde ser extraído.

Sobre as ações geradoras das interações violentas, os roubos de veículos despontaram como ignição. Este índice reproduz o alarmante indicador de 34 roubos/furtos veiculares diários no Distrito Federal, em 2019. Sobre este aspecto, evidencia-se uma necessidade de intensiva capacitação do profissional operacional em diversas habilidades, como pilotagem policial, tiro de combate, estratégias para cerco e contenção de veículos em fuga, comunicação sob estresse, etc. Os 26 casos de acompanhamento veicular anteriores a confrontos, que foram indicados nas reportagens, confirmam essa necessidade.
Outro indicador relevante diz respeito aos 9 casos em que o combate decorreu de abordagens a indivíduos em atitude suspeita, que ressaltam a imprevisibilidade do serviço policial militar e o caráter fundamental de uma mentalidade combativa e sempre atenta. Neste mesmo sentido, destaquem-se as 2 situações em que policiais designados para o serviço de inteligência envolveram-se em situações de combate, quando criminosos tentaram roubar as viaturas descaracterizadas em que se encontravam.

Por fim, foram registradas 29 circunstâncias em que os antagonistas efetuaram disparos em direção aos policiais de serviço, totalizando 53,7% dos casos. Este indicador demonstra a imprescindibilidade do uso de coletes balísticos por todos os profissionais destacados para o serviço operacional, bem como reforça a necessária avaliação da conveniência de aquisição de viaturas com proteção balística .
O combate fora de serviço
Fora de serviço, isto é, quando o policial se encontra na folga ou sua situação funcional é de reserva ou reforma, houve 65 casos de combate. Em 33,8% deles, o policial, presenciando uma situação de violência praticada contra terceiros, de maneira legal e legítima, realizou intervenção, da qual decorreu o confronto. Os restantes 66,2% representam casos em que tais profissionais foram alvos diretos de ações violentas as mais diversas, como latrocínios e homicídios, consumados ou não.
Importante o destaque para o fato de que em, aproximadamente, 95,5% dos casos em que se registrou uma postura intervencionista, houve sucesso na ação, isto é, o policial saiu ileso, ao contrário de seus antagonistas. Já quando seu papel foi de alvo, a taxa de sucesso reduziu-se para 32,5%, o que indica o relevante peso que a iniciativa e a surpresa representam no desenlace de um confronto armado.
No que diz respeito à situação funcional, nos casos em que foi possível extrair este dado, identificou-se que, em 25,8% deles, os policiais já se encontravam fora do serviço ativo. Dos que se encontravam em serviço ativo, porém na folga, cabe destacar o caso de 1 policial que foi morto fardado no interior de um ônibus interestadual, em deslocamento para serviço.
Quanto ao gênero, as ocorrências envolveram 62 policiais do sexo masculino e 3 do feminino, sendo que estas profissionais tiveram êxito em todas as suas ações.
Sobre o período, registrou-se uma maior incidência de casos durante o dia, ao contrário do que se verificou em combates ocorridos no serviço. Em se tratando de policiais que se encontram fora de serviço, é natural que sua circulação nas ruas ocorra durante horário comercial, momento em que resolvem seus problemas e administram suas vidas.

O local dos combates se concentrou, mais uma vez, na via pública, em frente a estabelecimentos comerciais e residências, por exemplo. Sobre este aspecto, cumpre ressaltar uma considerável incidência de casos em que o policial se encontrava embarcado em veículos, o que atrai a atenção não apenas para a premente necessidade de domínio de técnicas de combate veicular, como também para uma constante atenção durante deslocamentos e disciplina para que não haja uma autoexposição a riscos desnecessários.

O número de antagonistas enfrentados, assim como o período do dia, citado mais acima, destoou das ocorrências registradas em serviço, havendo um substancial destaque para ações envolvendo 2 criminosos.

Os casos de derrota absoluta do profissional, isto é, aqueles em que ele foi ferido ou morto e seus antagonistas saíram ilesos, totalizaram 23 ocorrências. Nelas, no que tange a postura, o policial foi alvo direto em 22 circunstâncias, sendo que, em 8 delas, foi constatada a presença de amigos e/ou familiares no local dos fatos. Este ponto é importante, pois evidencia o caráter fundamental de discussões sobre protocolos de segurança com entes queridos, para que eles saibam lidar com situações de violência e, inclusive, acionar o devido apoio e prestar socorro a feridos em uma eventualidade.
Considerações Finais
“Um guerreiro deve dominar o reino do combate e, para tanto, precisa compreender sua realidade”
Dave Grossman
O propósito deste artigo foi trazer luz às dinâmicas do combate vivenciado por policiais militares do Distrito Federal, de forma a possibilitar a adoção de medidas de preparo individual e institucional para o enfrentamento destas situações. Nas palavras de Dave Grosmann, “um guerreiro deve dominar o reino do combate e, para tanto, precisa compreender sua realidade”. Os dados apresentados indicam um panorama bastante robusto da realidade local. Espero que ajudem o policial a alcançar sempre a vitória em combate!