O dinamismo típico das ocorrências, das missões e das atividades policiais reais de campo e multidisciplinares nos fazem refletir sobre algumas questões. Lançando mão do discurso socrático passamos a nos questionar sobre determinadas diretrizes. Será que o que temos visto nas Academias, nas Escolas de Polícia e nos Centros de Ensino e Treinamento das Forças de Segurança ou até nas instruções da iniciativa privada, em termos de currículo disciplinar e conteúdo, condiz com as reais necessidades e aplicações práticas dos Operadores de Segurança Pública ou simplesmente daqueles que estejam portando arma fora de situação de serviço?
A Opinião Pública
Escritor e instrutor americano com experiência nas Forças Armadas e Policiais, Wes Doss, no seu livro “TRAIN TO WIN”, tratou também da influência, com viés negativo, que a opinião pública pode ocasionar nas decisões do corpo técnico responsável por treinar determinado pessoal profissional. Continuando ainda, ele disse que o ato de prevenção de processos judiciais, que passa então a ser um dos pontos focais de quem dirige esses corpos técnicos, é mais conduzido para a inação, ao invés de seguir buscando uma linha de treinamento apropriado em um tempo adequado(!). O preço será a vida de alguém, seguiu concluindo.
Ocorrência real
Não satisfeito ele passou a narrar uma ocorrência real, onde um policial estava perseguindo um suspeito de sequestro em uma cidade estadunidense. Foram realizados disparos pelo Operador enquanto os dois se deslocavam numa área residencial densamente ocupada, fato ocorrido durante o período noturno. Concomitantemente, um morador curioso com a comoção causada pela situação saiu de casa para melhor visualizar as coisas acontecendo. Ele foi atingido por um dos disparos e faleceu. Já em fase de julgamento, o Tribunal considerou alguns itens direcionando a culpa para a Administração Pública local, por conta de um programa de treinamento grosseiramente inadequado, a saber:
- O oficial envolvido teve seu treinamento inicial em instruções de armas de fogo 10 anos antes na Academia de Polícia.
- Os únicos treinamentos que deram sequência a esse inicialmente feito foram somente os de armamento e tiro, com intervalos de seis meses entre um e outro.
- A Academia não ministrou treinamentos de baixa luminosidade.
- A Academia não ministrou treinamentos de alvos em movimento.
- A Academia não ministrou treinamentos voltados para a realização de disparos de arma de fogo em áreas residenciais populosas.
- Problemas concernentes a considerações civis e regras de uso de armas de fogo.
- Problemas de adequação de supervisão disciplinar sobre o uso da força por policiais.
Traduções, destaques e interpretações nossas.
Um Magistrado muito à frente do nosso tempo
O juiz que prolatou essa sentença com certeza estava à frente do seu tempo e do nosso tempo por aqui. Ele julgou com noção de extrema contextualização, de visão global e social, tendo tratado o policial como deve ser, um braço do próprio Estado. A atuação deficiente foi levada a efeito pelo Estado e não adiantaria apenas perquirir culpa, há que se buscar solução para que o problema não volte a ocorrer por omissão ou por treinamento inadequado. Lembrando que o livro citado é do ano de 2003 e o precedente jurisprudencial é do final da década de 70.
Não temos conhecimento aprofundado do Direito Americano e esse não é o foco das nossas exposições, frisamos. A nós cabe avaliar os aspectos técnicos que nos sirvam de aprendizado e de mudança de paradigma, mudando e adaptando o que pudermos para a nossa realidade, dentro de uma atividade infralegal (subordinada a lei).
Esmiuçando as razões que levaram a decisão
Caminhando pelos itens que deram lastro a decisão, passaremos então por cada um, tentando esmiuçá-los um pouco mais, propondo paralelamente algo que sirva para o agora. No primeiro deles, visualizamos que os dez anos da formação indicaram uma desatualização do que se tinha por necessário para o exercício da atividade, na análise do julgador. Concordamos totalmente e acreditamos que o melhor caminho estaria nos chamados Programas de Treinamento Continuado, onde o aprendizado seria muito menos espaçado e dividido por níveis, com habilitações para uso de “ferramentas” e com vinculações delas ao desempenho de algumas especialidades.
Como exemplo ao acima exposto, o aluno policial só usaria determinada arma se tivesse passado pelo treinamento específico com ela. Esse mesmo aluno só poderia continuar usando essa mesma arma, se depois de algum período, fizesse um aprimoramento e tivesse um novo contato formal com a aula pertinente ou pelo menos, sendo aprovado numa prova concebida para esse fim. Nesse mesmo contexto, se houve a necessidade de submissão a um teste de aptidão física para ingresso em determinada Força, porque não haver a mesma cobrança periodicamente, ainda que em intervalos maiores (uma vez por ano), tanto na parte física quanto na técnica, com os devidos fornecimentos dos meios?
Os treinamentos que foram tidos em sequência, periodicamente, além de não abrangerem todo o arcabouço complexo das disciplinas policiais, só trabalharam uma das disciplinas base, sendo ela uma das poucas que isoladamente poderiam ser trabalhadas também, somente pelos Operadores.
Quanto aos treinamentos de baixa luminosidade, falamos com absoluta certeza de que no meio pátrio, vários de nós se aposentam sem passar por essa disciplina, que juntamente com armamento e tiro e outras matérias, constitui-se também em base bastante abrangente dentro do que deveria constar num currículo mínimo. Num parêntese que abrimos aqui, sempre quando iniciamos um novo ciclo de aulas de Cumprimento de Mandados Judiciais em Edificações nos cursos periódicos da Escola Superior de Polícia da Polícia Civil do Distrito Federal, ou quando fazíamos parte da Seção de Instruções da Divisão de Operações Especiais da P.C.D.F, ministrando cursos e treinamentos, perguntávamos para os alunos quando foi o último treino de armamento e tiro e de baixa luminosidade que participaram. As respostas sempre se mostraram motivo de preocupação por parte dos instrutores e pares policiais. Alguns alunos trouxeram ainda a informação que somente tiveram contato com isso fora das instruções da Força de Segurança Pública da qual fazem parte.

Continuando, quantos de nós tivemos treinamento institucional em alvos móveis? É o que ocorre no mundo real, os criminosos se locomovem, têm iniciativas agressivas e são extremante determinados para emboscar, além de terem sido criados em ambientes bem mais hostis do que os da maioria em que viveram os Agentes do Estado. Esses alvos móveis podem tanto ser materiais quanto pessoais. A evolução do treinamento estaria nisso, na implementação de contextos de ação e reação com uso de marcadores, preferencialmente nas mesmas plataformas das armas usadas pela instituição, com possibilidade de se aferir por cor ou de alguma outra forma, se tivemos disparos que atingiram partindo de armas das forças opositoras ou não. Paralelamente a isso, havendo pessoa atingida, cabe também trabalhar o Atendimento Pré-Hospitalar Policial. Haverá essa necessidade no mundo fora do estande. Seria muita inocência achar que quem trabalha usando armas por necessidade nunca seria ferido, não é mesmo?
Ainda na caminhada, percorrendo as razões do julgamento narrado no livro, pouquíssimas vezes tivemos notícias ou participamos, como alunos policiais generalistas, de treinamentos de armamento e tiro onde haja previsão de identificação positiva de alvos, de cenários montados com vistas em considerações civis, com dinâmicas que induzam a decisões sobre possibilidades de disparar em desalinhamento, com aplicação de técnicas de ação imediata e até com prestação de socorro em situação de combate, tanto entre os próprios policiais, quanto para vítimas civis. Os treinamentos que tivemos nesse sentido foram feitos no contexto de Operações Táticas, Aerotáticas e em ambientes de Operações Especiais e congêneres.
Por mais um ângulo, por mais que possamos e devamos investir parte dos nossos vencimentos no nosso próprio benefício e aprimoramento, como todos os profissionais bem sucedidos da iniciativa privada, pela facilitação em maximizar o aprendizado continuado e tendo em vista o avanço que alguns profissionais da iniciativa privada chegaram, fato é que os nossos treinamentos individuais esbarram em alguns limites, porque trabalhamos em grupos nas nossas atividades de rotina profissionais e pela necessidade de indução de previsibilidade de conduta entre pares.
É também pela logística que consideramos bem mais trabalhoso pararmos um estande e configurarmos esse mesmo local para simularmos condições que nos levem a prestarmos atenção nas chamadas considerações civis, atendendo também a questões mais realísticas.Com o mesmo pensamento, como treinar as disciplinas multidisciplinares que tem em seu bojo a necessidade de manutenção da segurança de informações somente com pessoas desconhecidas e que não irão trabalhar conosco? Qual a gerência legal e disciplinar que devemos seguir, enquanto Operadores subordinados a determinada Força de Segurança Pública, no sentido de desempenharmos atividades previstas, escritas e publicadas num contexto de previsibilidade de um P.O.P (Procedimento Operacional Padrão)? Como treinar procedimentos para afastar as tendências contra fratricídio (que pairam nas estatísticas veladas das Forças de Segurança Públicas) nas atividades dinâmicas de grupo/time?
Além disso, valeria ainda citarmos que a sedimentação vem com a repetição no tempo, intercalando atividade e descanso (em alguns casos também trabalhamos a influência da falta de sono no desempenho de algumas atividades), sendo necessárias, nos dizeres de outro escritor e doutrinador de destaque, o Sargento Reformado do Exército Americano (Força Delta), Paul Howe, para desenvolvimento da memória muscular, pelo menos de duas a três mil repetições para ajudar a dominar uma atividade/habilidade simples (tradução nossa – livro “LEADERSHIP AND TRAINING FOR THE FIGHT – Using Special Operation Principles to succeed in Law Enforcement, Business, and War”).
Conclusão
Em conclusão então podemos dizer que o treinamento deve sempre “ter olhos na realidade” da atividade em questão e que essa mesma realidade deve traçar seus contornos, não havendo relação de oposição de uma coisa com a outra, mas sim de adequação no tempo e em aspectos qualitativos. Há como objetivar o aprendizado, mas sem deixar de trabalhar a indução das memórias musculares corretas mínimas, trabalhando antes disso os aspectos psicológicos, fisiológicos, os de habilidades e os protocolares, teórica e praticamente falando.
Na medida que o tempo passa, as coisas perecem e necessitam de atualização, sendo que a técnica do agora, repetida em instrução daqui a vinte anos estará ultrapassada ou foi lançada muito a frente da sua época. Os instrumentos e as ferramentas se aperfeiçoam, então busque aquilo que seja bom e atualizado. Por fim, eleja a quem escutar e a quem empenhar a sua confiança para o conhecimento. Os bons instrutores além de serem experimentados, devem possuir a capacidade de demonstrar com naturalidade e na prática aquilo que propõem ensinar.
Em se tratando de iniciativa pública, acreditamos que o caminho esteja na edição de atos normativos que assegurem o mínimo em tempo e em conteúdo programático nas disciplinas práticas, para que não se induza a treinamentos negligentes, lançando mão da terminologia exposta na mesma sentença que tratou do caso retro citado, mas isso é assunto para uma próxima exposição. Enquanto isso treine!!!!
Referências:
DOSS, Wes. Train To Win. United States,2003.
Howe, Paul R. Leadership and Training for the Fight. New York: Skyhorse Publishing, 2011.