Autor: Suprecílio Barros
O Homem sempre teve a propensão divina em dar nomes a tudo que sente, pensa e vê ao seu redor[1]. Em decorrência dessa atividade natural e indispensável ao ser humano, surgiu-lhe a necessidade de classificar os seres, fatos e fenômenos, isto é, de organizá-los em padrões que lhe fossem familiares, como forma de compreender cada vez mais o mundo e de repelir, pouco a pouco, a insegurança e o desconforto que lhe provoca(va) o desconhecido.[2]
Com o passar do tempo, foram surgindo diferentes tipos de classificação, com destaque para a que emprega a relação dicotômica de gênero[3] e espécie. Com base nessa categorização, a expressão “homicida ativo”[4] representa o gênero, do qual são espécies, entre outros, o vocábulo “atirador ativo” (active shooter), conforme se demonstrará em seguida.
Tomando como referência a definição do Federal Bureau of Investigation (FBI), pode-se conceituar um incidente de atirador ativo como uma ação criminosa praticada por um (ou mais) indivíduo(s) engajado(s) ativamente em matar ou tentar matar, aleatoriamente, pessoas em uma área povoada, com o emprego de uma (ou mais) arma(s) de fogo, que pode(m) estar ou não associada(s) ao uso de outros tipos de armamento. [5]
Independentemente do número de vítimas, o FBI não inclui, nessa categoria, os homicídios ocorridos em contexto de legítima defesa ou classificados como subprodutos[6] de outros delitos, já que possuem intenções criminosa diferentes. [7] Além desses, por uma questão lógica, também não podem ser ali enquadrados, os homicídios realizados por indivíduo(s) engajado(s) ativamente em matar pessoas sem arma de fogo, isto é, os assassinatos praticados exclusivamente com arma branca[8], fogo[9], automóvel[10], arco e flecha[11] ou qualquer outro meio eficaz de consumar uma ação violenta dessa natureza.
Todas essas espécies de violência predatória[12] possuem uma particularidade em comum: a intenção meticulosa em matar ou tentar matar pessoas, em uma área povoada, de forma ativa e engajada e sem nenhum padrão ou método de seleção das vítimas. Ou seja, a intentio mali em todos esses casos é a mesma: muda-se tão- somente o instrumento usado na conduta delitiva.
Em vista disso, depreende-se que o vocábulo “homicida ativo” é perfeitamente adequado para desempenhar o papel de gênero, pois o seu significado tem a propriedade de referir-se, genericamente, a todas essas modalidades de assassinatos. Logo, para melhor delimitar seu campo de incidência, definimo-lo como: uma ação criminosa praticada por um (ou mais) indivíduo(s) ativamente engajado(s) em matar ou tentar matar, aleatoriamente, pessoas em uma área povoada, com o emprego de qualquer meio eficaz.
Algumas instituições policiais brasileiras adotam a expressão Causador de Evento Crítico Ativo – C.E.C Ativo, em referência aos eventos do gênero que não sejam enquadrados como uma situação de atirador ativo. No contexto norte americano, é possível encontrar – em sites, publicações e relatórios governamentais – as expressões active killer (assassino ativo), active attacker (agressor ativo) e active threat (ameaça ativa) referindo-se, de forma genérica, aos diversos tipos de violência predatória.
O adjetivo “ativo”, presente em todos os termos deste artigo, refere-se ao
fato de que o assassino não irá parar a matança enquanto não for neutralizado ou alcançar o seu propósito maligno: matar o máximo de pessoas possível no local do incidente, quase sempre em um curto intervalo de tempo.
Segundo Blair e Schweit, o aspecto “ativo” infere que tanto os integrantes das forças policiais como os cidadãos têm o potencial de afetar o resultado do evento crítico com base nas respectivas respostas.[13] Para isso, a polícia deverá estar preparada para responder a essas modalidades de crise de forma rápida, coordenada e eficiente[14], com o fim de neutralizar rapidamente o agressor;[15] a população, por sua vez, deverá agir de maneira defensiva, com base em protocolos de emergência[16], que a ajudarão a salvar vidas.
No Brasil, esse cenário é extremamente drástico. A esmagadora maioria dos policiais não possui treinamento específico para intervir diretamente nesse tipo de evento crítico, tampouco a comunidade sabe como proceder numa situação dessa, já que não há sequer procedimentos oficiais de emergência para orientar como as pessoas devem proceder neste tipo de incidente.
O Centro de Análise Comportamental do FBI chama a atenção de todos para outro problema: o da “glorificação” dos ataques em massa, que tem sido bastante aguçado pela ampla divulgação que lhes dão os meios de comunicação, bem como pelo emprego de termos como “atirador ativo” e “lobo solitário” (lone wolf), os quais acabam criando, em indivíduos mental ou psicologicamente problemáticos, uma espécie de áurea mística em torno desses atos de violência planejada.[17] Como se sabe, o sensacionalismo midiático de fatos criminosos possui o potencial de estimular, nesses indivíduos, uma espécie de modelagem criminosa, que faz com que imitem tais comportamentos delitivos, fenômeno esse que ficou conhecido como efeito copycat. Além disso, a cultura do anti- herói[18] (v.g. Coringa, Arlequina, O Justiceiro), tão explorada atualmente pela indústria cinematográfica, poderia, subliminarmente, influenciar – em pessoas com dificuldades em lidar com frustações, rejeições ou provocações –, padrões de comportamento antissociais simpáticos a esse tipo de violência.
Em incidentes violentos dessa gravidade, a mídia não deveria citar os nomes dos perpetradores, nem muito menos divulgar suas fotos, vídeos, cartas, manifestos ou qualquer tipo de mensagem. Seguindo essa linha de pensamento, o FBI e o Centro ALERRT da Universidade Estatual do Texas aderiram à campanha “Don ́t Name Them”[19] (Não os Nomeie!), que tem como fim conscientizar os meios de comunicação e as forças policiais de que o foco de qualquer cobertura jornalística deve ser as vítimas, os sobreviventes e os heróis que enfrentarem os assassinos. [20]
Com relação a esse ponto, entendemos que a expressão “homicida ativo” seja menos propicia à criação, em indivíduos socialmente desajustados, de uma áurea de poder e fascínio a esse tipo de violência. A palavra “homicida” possui uma semântica hedionda, repugnante e antissocial que está presente (em maior ou menor grau) no inconsciente coletivo dos indivíduos de qualquer sociedade. Com isso, os aspectos “de novidade” e “místico” ficam bastante mitigados.
No Brasil, felizmente, o problema do homicida ativo não se manifesta com a mesma frequência que ocorre nos EUA e em países europeus. No entanto, é importante que o Estado, a sociedade civil e a comunidade compreendam, o quanto antes, a gravidade dele, para que, dentro de uma cultura de responsabilidade compartilhada, possam enfrentá-lo da melhor forma possível: com ações preventivas.
É imprescindível, para tanto, que no âmbito da União, dos Estados e do
Distrito Federal sejam criadas, urgentemente, unidades de análise comportamental com o objetivo de implementar políticas, programas e protocolos de avaliação e gestão de ameaças de violência predatória,[21] a fim de que a comunidade envolvida e devidamente orientada saiba como identificar prematuramente os fatores de risco e sinais de alertas apresentados por uma pessoa com potencial de cometer um incidente de homicida ativo[22], bem como levar um fato desse ao conhecimento dos especialistas em gerenciamento de ameaças.
Tanto o processo de mudança de comportamento de um potencial perpetrador quanto o planejamento inerente a essa modalidade de violência requerem um certo tempo para ocorrerem, possibilitando que o plano diabólico possa ser descoberto ainda na fase de preparação, caso haja um sistema de análise comportamental bem estruturado e com uma boa capilaridade na sociedade – os indivíduos devem deixar de ser meros espectadores (bystanders) para serem observadores (upstanders). Eles se tornarão os olhos e ouvidos que alimentarão o sistema com informações.
Muito embora essa não seja uma tarefa fácil de ser implementada, é a melhor alternativa para se impedir a eclosão de uma crise de homicida ativo. Isso, todavia, não será um problema, se as dificuldades forem encaradas como estímulos para a realização de grandes feitos.
Suprecílio Barros é Policial Legislativo Federal. Atualmente desempenha as funções de Diretor Substituto e Chefe do Serviço de Apoio Técnico do Departamento de Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados. Atua, também, como como Instrutor de Armamento e Tiro e Uso Diferenciado da Força. Possui treinamento avançado contra atirador ativo com base no programa ALERRT – Advanced Law Enforcement Rapid Response Training. É formado em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e no Curso Superior de Tecnologia de Segurança Pública pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER).
Notas explicativas e Referências:
[1] Gênesis 2, 19 e 20.
[2] SHERA, H. Jesse. Padrão, estrutura e conceituação na classificação. Tradução de Hagar Espanha Gomes. 1957.
[3] Pode-se dizer que gênero é a categoria que abriga um conjunto de entes, objetos ou fenômenos que se encontram ligados pela similitude de uma ou mais particularidades.
[4] O termo “homicida ativo” surgiu no âmbito do Departamento de Polícia Legislativa Federal da Câmara dos Deputados no ano de 2019, quando os policiais legislativos Caroline Nunes, Guilherme Sousa, Isaque Dourado e Suprecílio Barros trabalhavam na elaboração de um normativo interno sobre gerenciamento de crise policial. Na ocasião, eles observaram que havia outras crises dinâmicas similares à crise de atirador ativo, as quais não poderiam ser enquadradas naquela categoria por não serem concretizadas com o emprego ou auxílio de arma de fogo.
[5] Active Shooter Incidents in the United States in 2020, Federal Bureau of Investigation, U.S. Department of Justice, Washington, D.C., and the Advanced Law Enforcement Rapid Response Training (ALERRT) Center at Texas State University, published 2021. Disponível em: <Downloads/active-shooter-incidents-in-the-us-2020-070121%20(1).pdf > .
[6] Por exemplo, os homicídios vinculados ao tráfico de drogas ou à rixa entre gangues são taxados como subprodutos de tais crimes.
[7] Active Shooter Incidents in the United States in 2020, op. cit.
[8] Nos últimos anos, os incidentes de esfaqueador ativo têm sido cada vez mais frequentes. Veja alguns exemplo: ataque em shopping center em Minnesota, EUA (2016); ataque da ponte de Londres (2019); ataque de Streatham, Londres (2020); ataque da Basílica de Notre-Dame, em Nice (2020); ataque em trem na Baviera (2021); ataque em creche da cidade de Saudades-SC (2021); ataques na estação de Fukushima e em trem de Tóquio (2021); e, recentemente, ataque na Universidade de Tóquio (2022).
[9] São exemplos de eventos de incendiário ativo: os incidentes do Gran Circus Norte-Americano – ocorrido em Niterói-RJ (1961), no qual morreram mais de 500 pessoas – e o da creche Gente Inocente, em Janaúba-MG, em que oito crianças e uma professoras foram mortas.
[10] Nos anos de 2016 e 2017, ocorreram vários incidentes provocados por condutor ativo, com destaque para: atentado na cidade francesa de Nice (2016), atentado de Berlim (2016), atentado da Ponte de Londres (2017), atentado de Barcelona (2017) e atentado de Nova York (2017).
[11] Em 2021, na cidade norueguesa de Kongsberg, um arqueiro ativo matou cinco pessoas.
[12] De acordo com o Centro de Análise Comportamental do FBI, violência predatória – também chamada de violência planejada – é aquela realizada premeditadamente para servir como um propósito ao(s) seu(s) autor(es), que a concretiza(m) por meio de ataque em massa direcionado (targeted mass attacker). É um conceito amplo que abrange outros atos de violência além dos derivados do fenômeno homicida ativo. A violência planejada contrapõe-se à violência reativa ou impulsiva, isto é, aquela derivada de raiva, medo, instinto de sobrevivência etc. O FBI, referindo-se aos perpetradores de violência planejada, afirma: “don’t ‘snap’ — they decide”, ou seja, eles não “explodem” – eles decidem.
[13] Blair, J. Pete, and Schweit, Katherine W. (2014). A study of Active Sniper Incidents, 2000 – 2013. Texas State University and Federal Bureau of Investigation, Department of Justice, Washington DC 2014. Disponível em: <https://www.fbi.gov/about/partnerships/office-of- partner-engagement/active-shooter-resources> .
[14] O tempo médio de resposta das forças policiais norte-americanas são de três minutos. Barros, Suprecílio. Atirador Ativo: a nova face do mal. Disponível em: <https://sindilegis.org.br/filiado-ao-sindilegis-publica-artigo-sobre-os-perigos-dos-chamados- atiradores-ativos/ >.
[15] Em geral, os policiais brasileiros recebem apenas treinamentos em primeiras intervenções em crise, nos quais são abordadas algumas noções de como proceder em um ataque de homicida
ativo. Isso, todavia, é insuficiente, pois, nesse tipo de evento crítico, o primeiro interventor não poderá esperar a chegada da unidade de operações especiais para resolver a crise. Aqui, essa árdua, difícil e complexa missão caberá a ele. Por isso, é de suma importância que todos os policiais recebam treinamento específico contra crises de homicida ativo, especialmente contra as de atirador ativo.
[16] Nos EUA, existem dois protocolos de emergência destinados à comunidade: (a) “Run, Hide e Figth”, disponível em: <https://www.fbi.gov/about/partnerships/office-of-partner- engagement/active-shooter-resources>; (b) “Avoid, Deny e Defend”, disponível em: <https://www.avoiddenydefend.org/ >.
[17] Making Prevention a Reality: Identifying, Assessing and Managing the Threat of Targeted Attacks. Disponível em: <https://www.fbi.gov/file-repository/making-prevention-a- reality.pdf/view > .
[18] O anti-herói é idealizado de maneira que “o espectador identifica-se com ele, no entanto as caraterísticas negativas são salientadas, criando fascínio e admiração para o observador, independentemente da sua conduta imoral”. BARANTA, Pedro Alexandre de Almeida Lima Fernandes. Anti-heróis no cinema: cinema audiovisual – 2014/2015. Dissertação (mestrado em Som e Imagem), Escola das Artes – Universidade Católica Portuguesa. 2015, p. 8.
[19] Essa campanha foi idealizada pela I Love U Guys Foundation. Para mais informações, acesse: <https://www.dontnamethem.org/>. Outra campanha, também nos EUA, que ostenta a mesma bandeira contra o sensacionalismo desses ataques é a do “No Notoriety” (Sem Notoriedade). Para mais informações, acesse: <https://nonotoriety.com/home/ >.
[20] Active Shooter Incidents in the United States in 2020, Federal Bureau of Investigation, U.S. Department of Justice, Washington, D.C., and the Advanced Law Enforcement Rapid Response Training (ALERRT) Center at Texas State University, published 2021. Disponível em: <https://www.fbi.gov/about/partnerships/office-of-partner-engagement/active-shooter- resources> .
[21] Making Prevention a Reality, op. cit.
[22] Conforme o Centro de Análise Comportamental do FBI, não há um perfil determinado que sirva como molde para enquadrar um homicida ativo, pois não há que se falar em suspeitos habituais (usual suspects). Qualquer pessoa, independentemente, do sexo, etnia, religião, escolaridade, faixa etária ou nível de renda possui potencial para se envolver nesse tipo de violência. Somente com base em uma análise minuciosa dos fatores e circunstâncias de cada caso concreto será possível fazer um diagnóstico mais preciso. A avaliação deve ser feita com base em uma análise global do comportamento exibido pelo individuo suspeito, posto que nenhum comportamento isolado é capaz de indicar uma predisposição criminosa dessa gravidade. Op. cit.