Introdução
Há muito se discute qual o calibre ideal para autodefesa. Não há – e talvez nunca venha a haver – consenso. Porém, alguns pontos parecem de certa forma pacificados, e é deles que vamos partir. Ao fim, vamos analisar alguns números por detrás dos conceitos e – quem sabe – trazer alguma luz para a discussão.
Primeiro, uma característica da autodefesa é que ela não tem por objetivo matar, mas inutilizar o adversário para o combate. Apresenta-se assim o famoso – e hoje bastante em desuso – conceito de Stopping Power, ou Poder de Parada. O Poder de Parada seria a capacidade de um calibre pôr, com um único disparo, o oponente fora de combate.
A princípio, parece razoável supor que, quanto maior a energia do calibre, maior seu poder de incapacitação, certo? Não é bem assim. Há muitas variáveis envolvidas, desde características do projétil, pólvora, aspectos balísticos, até a evidente constatação de que o adversário é um ser vivo, cujas anatomia, características do corpo e fatores psicológicos, podem ser fundamentais.
Entramos então no segundo ponto: a Balística Terminal. É fundamental compreender como o projétil se comportará em contato com os diferentes tecidos do corpo humano, e suas proteções e abrigos. E mais, como anatomicamente estas interações vão implicar em inutilizar o oponente – ou não. Este é um campo de estudo vasto e amplamente controverso.
Historicamente, porém, há contribuições importantes. A talvez mais conhecida – e certamente a mais controversa – é a de Marshall e Sanow. A partir de 15 anos de estudos, concluíram, entre outras coisas, que a penetração é um fator importante. As conclusões sobre os percentuais de Poder de Parada dos calibres são extremamente controversas e, hoje, muitos se referem ao Poder de Parada como um mito – no sentido de mentira, engodo.
Mas, será que de fato não há características nas munições e armamentos que permitam supor, com alguma precisão, que alguns são melhores que outros para autodefesa?
Esta pergunta é fundamental e necessita de uma resposta metodológica ao menos para os órgãos de segurança pública. Estes precisam estabelecer diretrizes e assumir decisões para escolha dos seus calibres. Pois que foi a fim de dirimir – ou mitigar – este problema que o FBI desenvolveu uma metodologia própria: o FBI Ammunition Protocol.
O Protocolo do FBI
O FBI, como qualquer órgão de segurança pública, sempre precisou decidir qual o calibre utilizar. Esta decisão ganhou novos contornos e urgência após o famoso tiroteio ocorrido em Miami, em 1986 – onde dois agentes foram mortos e outros 5 ficaram feridos por dois suspeitos de assalto a banco (que também morreram). Para auxiliar nesta tomada de decisão, estabeleceram um método objetivo para classificação de munições, conhecido por FBI Ammunition Protocol.
Trata-se de um protocolo objetivo e minucioso, com aferições bem discriminadas e precisas. Ao fim, os resultados devem ser mensurados e, após conferências em algumas tabelas, postos em uma fórmula matemática. O resultado é um número.
Em resumo, devem ser efetuados 5 disparos em blocos de geleia balística – com consistência, medidas e temperatura determinados (para detalhes, ver referências em anexo) -, nas seguintes distâncias e condições:
- Diretamente no bloco de gelatina, a 10 pés de distância;
- Envolto com roupa pesada (com 4 camadas especificadas), a 10 pés de distância;
- Com uma barreira de aço (especificada, aproximando-se da lataria de um veículo), a 10 pés de distância;
- Com parede de gesso (simulando paredes de casas comuns nos EUA), a 10 pés de distância;
- Com compensado (simulando paredes também comuns em casas nos EUA), a 10 pés de distância;
- Com vidro automotivo, a 10 pés de distância;
- Novamente envolto em roupa pesada, a 20 pés de distância;
- Novamente com vidro automotivo, a 20 pés de distância;
Feito tudo isso, deve-se medir a penetração do projétil na gelatina balística, o diâmetro final do projétil e a massa perdida. Estas são então as três variáveis relevantes para o protocolo: penetração, diâmetro e massa. Feitas as leituras, calcula-se média, desvio padrão, se compara com algumas tabelas e, por fim, aplicam-se as fórmulas abaixo:
- Pontos de Penetração: (((Score de Penetração * Score do Desvio Padrão de Penetração) * 0.5) + (Score dos tiros abaixo de 12″ * 0.2))*50
- Pontos de Diâmetro: (Score da Tabela de Diâmetro * 0.2) * 50
- Pontos de Retenção de Peso: (Score da Tabela de Retenção * 0.1) * 50
- Pontuação Final = Pontos de Penetração + Pontos de Expansão + Pontos de Retenção de Peso
Pronto. Se chegou até aqui, já superou as fórmulas matemáticas. Não aparecerão mais, prometo. O mais importante aqui é perceber que, assumindo os valores máximos para estes Scores, as pontuações máximas são respectivamente 350, 100 e 50 (totalizando 500). Ou seja, para este protocolo, a penetração é o fator principal, respondendo por 70% do total.
Analisando o Fator Penetração
Ficando claro que a penetração é, para o protocolo que escolhemos como parâmetro de análise, fator preponderante, vamos nos aprofundar um pouco mais neste critério do protocolo.
Ao valor médio das penetrações é atribuída uma pontuação, com o seguinte critério: 1, se estiver abaixo das 12 polegadas; 7, se entre 12 e 14 polegadas; 10, se entre 14 e 16; 8, para valores entre 16 e 18 polegadas; e, finalmente, 5, para valores acima de 18 polegadas. Ainda, valores muito dispersos são penalizados através do desvio padrão e, enfim, cada disparo abaixo das 12 polegadas também são menos pontuados.
Ou seja, pode-se estabelecer uma zona bastante privilegiada entre 12 e 18 polegadas de penetração. E, mais ainda, que uma Penetração Média maior que 18 polegadas é melhor pontuada que uma menor que 12 polegadas (5 vezes mais).
O que se fez, então, foi, de forma assemelhada ao protocolo do FBI, analisar o fator penetração de diversas munições. Foram utilizados os diversos dados dos testes realizados com geleia balística no Lucky Gunner <www.luckygunner.com/labs/>.
Cabe aqui uma consideração. Os testes realizados não seguem exatamente o protocolo do FBI. Mas, ainda assim, podem ser úteis à análise, e explico o porquê. As diversas etapas do protocolo oficial servem, em sua maioria, para simular situação de tiros atravessando lataria e para-brisas de veículos, paredes, e situações que, no uso civil e de autodefesa no geral, não parecem tão significativos.
Note que os critérios aqui adotados são meramente assemelhados ao do Protocolo do FBI. Pretendem tão somente trazer alguma luz através dos dados e suas possíveis interpretações.
Análise dos Dados
Então vamos aos dados.
O gráfico abaixo ilustra a penetração média do teste balístico para cada munição. Estão agrupados por calibre. Cada ponto indica a média de determinada munição. As faixas verticais azuis indicam as zonas de maior pontuação para o critério penetração. Por fim, os pontos vermelhos indicam munições +P ou +P+, ou seja, com carga de pólvora diferenciada.
O resultado indica que uma quantidade razoável de cada calibre ficou na zona azul, com notas entre 8 e 10. De forma mais precisa, em percentual na zona azul:
- Calibre .380 Auto, 30,0%;
- Calibre 9mm Luger, 44,2%;
- Calibre .45 ACP, 48,6%;
- Calibre .40 S&W, 52,5%.
Isto parece indicar que, para todos os calibres analisados, é sempre possível obter bons resultados de penetração, pois outras características, que não o calibre, podem favorecer o desempenho da munição neste quesito. Isto, claro, considerando como referência aproximada o Protocolo do FBI, com as ressalvas anteriormente feitas.
Caberia uma ressalva para o calibre .380 Auto. Seu desempenho aqui, em geral, foi um pouco pior que o dos demais, que se aproximam bastante entre eles.
Tentando ser um pouco mais rigoroso ainda, vamos incluir, também de forma aproximada, o critério Diâmetro Médio, que responde por 20% da pontuação final no Protocolo do FBI.
O gráfico que segue é semelhante. Porém, cada cor indica um calibre. Quanto mais à direita, maior a penetração. Quanto mais acima, maior o diâmetro médio final no teste. Diâmetros acima de 0.565 polegadas recebem, neste critério, notas 8, 9 ou 10, e estão sobre a larga faixa horizontal. As linhas horizontais tracejadas representam os diâmetros iniciais dos calibres analisados, e servem como referência apenas.
Ou seja, pontos sobre as faixas azuis verticais e sobre a faixa cinza horizontal tendem a ter pontuação melhor nestes critérios.
Agora, com exceção do calibre .380 Auto, temos que os demais ainda conseguem um desempenho razoável nestes critérios somados. Algumas munições no calibre 9mm Luger analisadas ainda conseguem atender os critérios somados, porém os calibres .40 S&W e .45 ACP destacam-se, de forma bastante aproximada.
Novamente, de forma um pouco mais precisa, o percentual de munições analisadas, por calibre, que tiveram Penetração Média entre 12 e 18 polegadas e Diâmetro Médio acima de 0.565 polegadas, estão representados abaixo:
- Calibre .380 Auto, 00,0%;
- Calibre 9mm Luger, 15,4%;
- Calibre .45 ACP, 45,7%;
- Calibre .40 S&W, 47,5%.
Conclusão
Embora a resposta à pergunta “qual o melhor calibre para autodefesa?” pareça ser sempre um “depende”, creio que a análise dos dados acima pode trazer algumas considerações úteis ao tema.
Primeiro, sugere que alguns calibres tendem a ser melhores que outros. Mas isto, claro, deve considerar a complexa equação em que a munição está envolvida quando se trata do problema do Poder de Incapacitação e da Balística Terminal.
Todavia, mais importante parece ser a inferência de que outras características associadas às munições (tais como tipo de ponta, material, peso do projétil, quantidade de pólvora, etc.) podem ser mais relevantes que o calibre em si.
Isso implica dizer que a maior parte dos calibres analisados são potencialmente capazes de atender aos requisitos pretendidos. Em outras palavras, o calibre, em si, não parece ser fator decisivo, sequer para atender à requisitos objetivos e intrínsecos da munição. Há fatores além do calibre que podem torná-lo potencialmente adequado para a finalidade da autodefesa. Isto, evidentemente, considerando a metodologia proposta.
Espero ter contribuído minimamente no entendimento da questão. Claro que, considerando a enormidade de fatores associados, limitei-me ao que me foi possível.
Para maior entendimento do tema, sugiro fortemente a leitura dos materiais em anexo.
Abraços!
Fontes e sugestões de leitura:
- Uma Visão Contemporânea Sobre o Poder de Parada, Paulo Bedran <https://infoarmas.com.br/uma-visao-contemporanea-sobre-poder-de-parada/>
- Resultados dos testes balísticos (fonte dos dados analisados) <https://www.luckygunner.com/labs/self-defense-ammo-ballistic-tests/#results>
- Explicação sobre o Protocolo do FBI (Brass Fetcher Ballistic Testing – FBI Ammunition Protocol) <http://www.brassfetcher.com/FBI%20Ammunition%20Protocol/FBI%20Ammunition%20Protocol.html>
- Explicação sobre o Protocolo do FBI <http://www.dtbtest.com/eLibrary/ballistics-FBI-protocol.pdf>