Um búfalo, um elefante ou um leão ferido dentro do mato fechado é uma das situações de caça mais perigosas que pode existir. E nenhuma outra arma de fogo é mais adequada para essa situação do que um rifle Express de canos paralelos em um poderoso “calibre africano”. São armas extremamente equilibradas, tem canos curtos, miras de enquadramento rápido e dois gatilhos com mecanismos completamente independentes, além disso ela tem potência para resolver a situação com um só tiro. São armas místicas e carregam com elas a nostalgia da época de ouro dos safáris de caça em uma África ainda completamente selvagem. Mas quando foram inventadas, quem as fabricava como evoluíram?
Enquanto aguardo impacientemente o início da temporada do veado ibérico em Portugal e tendo em Lisboa, a minha disposição, uma enorme biblioteca cinegética particular, resolvi fazer uma pesquisa profunda sobre o tema e escrevi nesse artigo sobre a história e a evolução dos rifles Express.
Na colonização do interior da África no final do ano de 1.700, os Europeus (principalmente os holandeses na África do sul) logo viram que os seus arcaicos mosquetes de pólvora negra eram totalmente ineficientes contra os grandes animais africanos que encontraram. A única opção para melhorar o desempenho dessas armas contra animais de pele grossa foi aumentar o calibre, a carga de pólvora e o peso do projétil esféricos. Os colonizadores Boers também desenvolver técnicas de caça montando cavalos. Na caça aos elefantes em busca do preciso marfim, eles disparavam montados e fugiam. A uma distância segura ficava uma equipe de recarga com vários outros mosquetes já prontos. O atirador trocava o mosquete vazio por outro carregado e fazia nova investida. Repetindo a operação até cinquenta vezes e dependendo do terreno demorando até um dia para abater um único elefante.
À medida que os anos foram passando surgiram temperas mais reforçadas de aço, os alemães diminuíram o tamanho dos mosquetes e colocaram neles múltiplos bagos de chumbo endurecido, e os ingleses baseado nas técnicas dos Boers sul Africanos que caçavam a cavalo trocando de armas, tiveram a ideia de aumentar o calibre das espingardas. Na Europa elas eram mais leves e mais finas, eram de ante carga e tinham cães externos. Eram armas bem construídas usadas pela realeza para o tiro ao voo e para os tiros de arremate em veados na corrida. A inovação chegou rapidamente à colônia inglesa do Quênia na África oriental Britânica. Porem em calibres bem maiores e armas reforçadas e bem pesadas.
Essas armas de dois canos de excelente construção rapidamente tornaram-se populares entre os caçadores brancos, pois a vantagem de ter um segundo disparo prontamente disponível quando se enfrentavam as feras do continente africano era de muita valia. As primeiras armas que chegaram à África vindas da Inglaterra vieram com canos lisos (sem raias) cão externo, e culatras extremamente robustas. Disparavam os calibres 10, 8 e 4. O calibre 10 e 8 eram mais usados para a caça grande em geral e o calibre 4 era usado quase que exclusivamente para os elefantes.
As robustas “espingardas” pesavam em média 11,5 KG E disparava uma bala de chumbo endurecido de 1.882 grains (!!!) impulsionado por 460 grains de pólvora preta a uma velocidade inicial de 1.150 pés por segundo. O recuo era brutal. Nos tiros laterais a curtas distancias na cabeça ou no coração dos elefantes eram relativamente eficazes, mas os tiros frontais contra aqueles paquidermes em geral derrubava, mas o elefante se levantava em seguida, as vezes nem derrubava, mas desviava a carga (ataque do animal) ou fazia o animal retroceder sem mata-lo instantaneamente. Por isso a caçada a cavalo continuava sendo comum. Atiravam, corriam trocavam de arma e voltavam repetindo a operação quantas vezes fosse necessária. Dentre muitos famosos caçadores e exploradores que utilizaram essas armas posso citar Frederick Selous que no fim da vida tinha sérios problemas de espasmos nervosos involuntários devido ao castigo sofrido com o recuo dessas armas. Sir Samuel Baker que em março de 1861 partiu em sua grande expedição à procura das nascentes do Nilo em uma África completamente selvagem.
A primeira grande inovação que tiveram essas espingardas de ante carga em cano duplo veio em 1833, (apesar de ter sido notada mundialmente apenas em 1851). A invenção viria indiretamente a ajudar a resolver um problema grave na África. Muitos caçadores famosos haviam morrido caçando elefantes nas densas florestas do Congo belga e na África equatorial Francesa. Devido ao clima da floresta tropical as espoletas que ficavam expostas absorviam umidade e falhavam na hora “H” deixando o caçador de mão limpas a frente das feras com cinco toneladas de Fúria. A caça ao elefante em áreas de floresta é perigosíssima, os tiros são curtos e os ataques dos elefantes também.
Dois armeiros franceses residentes em paris (Lafaucheux e Houllier) haviam criado uma espingarda basculante, o cano abria dobrando para baixo expondo o interior dos mesmos, o sistema se chamava “drop down”. Eles criaram também um sistema de ignição, inventaram um cartucho de base metálica e corpo em papel enrolado. Na base havia um pequeno pino metálico que saia em cima do cano. O cão golpeava (martelando) aquele pino que estava encostado a uma espoleta no interior da carga e ao ser atingida queimava a pólvora. A ideia era boa, mas o sistema era frágil e sujeito a falhas. Por isso não chamou (de imediato) a atenção dos famosos armeiros ingleses que estava na vanguarda da fabricação artesanal de armas nobres para a caça pesada africana.
A invenção foi exposta 21 anos depois na grande Exposição de armas em Londres em 1851 e chamou a atenção de um desconhecido armeiro britânico que iniciava sua carreira. O seu nome era Jhoseph Lang eele em 1851 aperfeiçoou o sistema tornando a trava que trancava a arma depois de fechada mais segura, as dimensões da arma como um todo também foram refinadas tornado o desenho mais “inglês”. A arma agora era segura para se atirar e isso desencadeou uma grande corrida tecnológica entre os melhores armeiros ingleses.
O problema de segurança no trancamento havia sido resolvido, mas a munição e o sistema de ignição Lafaucheux ainda eram pontos frágeis o que limitava o uso da nova tecnologia nas pesadas espingardas de caça africana, pois as mesmas não podiam falhar! E por mais alguns anos elas continuaram sendo de ante carga. Isso perdurou até 1861 quando um certo Monsieur Clement Pottet de Paris desenvolveu uma pequena cápsula metálica contendo papel e fulminato de mercúrio (espoleta) fixada no centro de uma cápsula de latão desenvolvendo assim o cartucho de fogo central, revolucionando completamente o mundo das armas militares e de caça. O cartucho centerfire foi introduzido na Inglaterra em 1861 pelo Sr. George H. Daw, que era dono de uma empresa de fabricação de rifles e comprou os direitos da patente francesa de Monsieur Schneider e por causa disso até hoje leva injustamente o crédito pela invenção. O sistema de fogo central era robusto, confiável e muito seguro, tanto que com pequenas mudanças no formato interno e na formulação da mistura iniciadora perdura até os dias hoje. Essa invenção marcou o fim das armas de carregamento pela boca.
Paralelo a evolução da arma basculante, em 1856 um então desconhecido armeiro inglês chamado James Purdey construiu um cano que tinha duas profundas estrias (two grover Purdey rifle) e como a patente coincidiu com o lançamento das primeiras locomotivas Express com sistema de vapor otimizado, e por isso muito mais rápidas e poderosas do que as então existentes, Purdey, para diferenciar a sua arma das de outros armeiros a chamou de “Express train rifle” e com a popularização do nome ficou apenas Express. Era o início do raiamento e melhoria da precisão e alcance das armas longas de caça.
No entanto nos sertões africanos e longe das grandes metrópoles europeias os caçadores e exploradores europeus continuaram usando as enormes armas de ante carga até 1868, quando chegaram as colônias Africanas as primeiras armas basculantes e os primeiros cartuchos de latão em calibre 4, 8 e 10. As munições vinhas da Inglaterra carregadas pela companhia Eley Brothers, Com a vantagem de terem três cargas diferentes, assim era melhor possuir uma calibre 10 com três opções de carga: Leves com: 21 as 24 gramas de pólvora, Médias com: 24 a 28 gramas e pesada com: 28 a 32 gramas do que três armas muito caras em três calibres diferentes.
Com o passar dos anos foram surgindo várias inovações tecnológicas que eram primeiramente incorporadas nas espingardas de caça europeias e só depois eram repassadas para as Express destinadas a África e índia. Entre as inovações mais importantes temos a passagem do feixe de abertura de baixo para cima (Purday) 1870 e o de chaves ocultas em 1871 (Murcott) depois o sistema de travas e cães internos em 1875 (Westley Richards) e em seguida o melhoramento desse sistema de percussão interna guardado por platinas e patenteado pela firma Holland & Holland em seu revolucionário modelo “best quality” de 1879. As inovações seguintes foram as travas automáticas em 1882, extratores automáticos em 1884 e a grande evolução no mundo dos rifles express com o início da utilização da pólvora sem fumaça em 1889. Completando o amadurecimento das armas paralelas em 1910 com a invenção do monogatilho seletivo.
Ainda sobre munições e calibres, em 1880 começam a aparecer os primeiros grandes cartuchos metálicos com projéteis de diâmetro mais reduzidos do que os calibres 4, 8 e 10 das grandes espingardas basculantes como a famosa Paradox da H&H que tinha o final do cano raiado para estabilizar melhor balotes pesados. A ideia era fazer algo que ajudasse a diminuir o castigo de recuo e peso das enormes espingardas. Assim em 1890 foi criado o cartucho 577 NE que era carregado com pólvora negra e disparava um projétil de 610 grains a 1.650 FPS. Em seu ótimo livro Rifles e cartuchos africanos John “Pondoro” Taylor diz que o .577 Nitro Express é “um assassino magnífico” ele literalmente destrói um elefante. James H. Sutherland , que ao longo de sua vida matou mais de 1.500 elefantes, declarou em seu livro As Aventuras de um Caçador de Elefantes, “depois de experimentar e usar todos os tipos de rifles, acho que o mais eficaz é o duplo. 577
Tão importante quanto à modernização das espingardas e rifles Express foi a introdução da pólvora nitroceluloica, ou pólvora sem fumaça. A pólvora negra tinha dois problemas, ela tinha pouca energia e produzia muita fumaça depois do disparo. Os caçadores que atuavam nas florestas equatoriais do centro da África, eram os que mais sofriam com esse efeito, pois o ar da região tropical é denso e úmido e ao disparar suas armas com grandes cargas de pólvora formava-se a frente do cano uma nuvem de fumaça tão grande que encobria todo o alvo por quase um minuto. Demorar a ver o resultado do seu tiro naquelas matas fechadas muitas vezes podia lhe custar a vida.
Os militares (principalmente os franceses) também reclamavam dos dois problemas, pouca energia e muita fumaça. Assim em 1.866 começaram a procurar uma nova opção de pólvora. A procura esbarrou em uma descoberta que havia sido feita em 1.845 por um químico alemão chamado Christian Friedrich. Descoberta essa que havia passado despercebida por anos. A pólvora chamava-se “cordite” e era composta de 37% de algodão, 58% de nitroglicerina, e 5% de vaselina.
Ela produzia muito menos fumaça e muito mais energia do que a pólvora negra. O primeiro pais a adota-la militarmente foi a França em seu cartucho 8X50R Lebel. Foi um salto gigantesco no potencial das armas de guerra. E John Rigby foi o primeiro armeiro inglês que percebeu a importância e o potencial da nova pólvora. Sem perder tempo ele pegou a cápsula do antigo calibre 450 Nitro de pólvora negra que era muito popular na época para caça média e carregou com 70 grains de cordite, usou um projétil calibre 458 de 480 grais e conseguiu uma velocidade inicial de 2.150 pés por segundo! Era um conceito novo, calibres menores armas mais leves e velocidade superior ao calibre mais potente então existente que era disparado pelo pesadíssimo rifle calibre 577 NE de 3, 1/8 polegadas. Além de ser uma arma leve e disparar uma ponta de peso considerável (com um poder de penetração frontal em elefantes nunca antes visto) o rifle de Rigby era bem mais barato do que os caros rifles para elefante.
Lançado em julho de 1.898 o novo Rigby era um rifle elegante, leve, moderno e funcional. Rapidamente ganhou popularidade e se tornou a arma e o cartucho mais usado para a caça perigosa na África e na índia. Com o aumento do seu uso e popularidade logo apareceram os primeiros problemas. As novas munições calibre 450 NE com cordite eram produzidas na Inglaterra pela Kynoch, que usava cápsulas originais feitas para pólvora negra. O problema é que a carga de pólvora negra desenvolvia pressões na ordem de 22.000 PSI e o cordite com carga de fábrica 34.000 PSI. Ou seja, o cartucho trabalhava no limite. Quando foram feitos os testes no clima frio da Europa a munição não apresentou qualquer tipo de problema. Mas quando elas foram levadas para o calor escaldante da África e da índia o nível de pressão subiu tanto que os cartuchos dilatavam provocando perigosas falhas de extração.
Rapidamente a Holland & Holland se aproveitou dos boatos negativos e lançou o calibre 500/450 NE com uma taxa de pressão menor (devido ao maior espaço interno do estojo) e também cartuchos com paredes mais grossas e bases mais reforçadas. O novo calibre da H&H tinha características balísticas idênticas ao 450. A inglesa Eley também não perdeu tempo e lançou o 450 n2 com cápsulas mais comprida e balística semelhante. E esses não tiveram sequer o trabalho de mudar o nome do calibre. Porem quando os dois novos calibres conseguiram ser produzidos em escala industrial a Kynoch já tinha resolvido o problema do 405 NE ao reforçar a parede das cápsulas e criar as “cargas tropicais” com propelente reduzido, para que fossem usadas sem problemas na África e na Índia sem comprometer a potência do mesmo. De modo que o 450 NE “reformado” que já contava com armas espalhadas por todo o mundo, tornou-se o calibre mais popular daquela época para a caça de elefantes bem como leões, tigres e todo tipo de caça perigosa ao redor do mundo.
O 450 NE só não reinou absoluto no século seguinte porque em 1907 iniciaram-se violentas rebeliões nas colônias inglesas da índia e do Sudão. Na índia as tribos Pathan se rebelaram contra os seus colonizadores e usavam a pólvora (em quantidade menor) e o projétil dos modernos cartuchos 450 NE para recarregar a munição dos seus antigos rifles 577-450 Martini-Henry (de pólvora negra) e de carregamento pela culatra com sistema de tiro único. Com os componentes da munição 450NE a arma tornava-se muito mais efetiva a longas distancias. E isso era um grande problema para o exército inglês que proibiu imediatamente a fabricação e comercialização da munição 450 NE bem como a venda dos estoques existentes para a África e para a Índia.
Isso provocou uma corrida entre os armeiros ingleses que precisavam substituir o renomado 450 NE por um calibre de diâmetro diferente, mas com características balísticas iguais ou superiores. Foi quando surgiram dezenas de outros calibres. Foi nesse período que nasceu o 500/465, 470 Nitro, 475 Nitro e 475 n2. 500 NE, 375 H&H Entre muitos outros. Cada armeiro inglês queria apresentar a sua solução para a substituição do excelente 450 NE. Alguns anos depois a proibição do 450 NE foi suspensa no Sudão, mas continuou na índia. A maioria dos calibres lançados nesse período extinguiu-se com o tempo, mas devido a particularidades, circunstâncias e eficácia alguns deles perduram até os dias de hoje.
Um fato interessante ocorrido logo no início da primeira guerra mundial em 1914, foi que durante a campanha da França os Snipes alemães estavam causando elevadas baixas nas fileiras inglesas. E apesar de serem alvejados não morriam. Uma captura constatou que muitos deles usavam por baixo do uniforme algumas placas de aço moldadas no peito e nas costas o que os tornavam imunes aos disparos dos rifles Lee Enfild 303 então usados pelos ingleses.
O major Hesketh-Pritchard em sua primeira semana de licença viajou para a Inglaterra e levou uma dessas armadura alemãs com ele. Em casa testou vários dos seus rifles de caça na armadura e percebeu que apenas um express Jeffery em calibre 333 Flanged NE. Conseguia atravessá-la. Quando voltou levou então o seu Express a guerra e com ele abateu alemãe. O capitão Richard “Dickie” também havia levado o seu rifle e detalha como consegui abater uma equipe de três atiradores alemães surpreendidos durante uma aproximação em campo aberto usando seu Holland & Holland .450 Nitro Express
– Eu apontei primeiro ao líder, ele desceu como um faisão …disparei em seguida o segundo alemão que também caiu. O terceiro fugiu para o lado errado e eu tive tempo de recarregar e disparar novamente antes que sumisse… e ele também caiu.
Em setembro de 1915, as autoridades da Inglaterra começaram a receber relatórios da França sobre a eficácia desta solução e decidiram investigar de forma mais formal. O resultado foi que o escritório de guerra britânico encomendou a empresa Army and Navy que comprava armas dos grandes fabricantes ingleses e revendia a militares, 62 rifles Express de alta qualidade, mas sem identificação do fabricante. Neles deviam estar gravado apenas: “Army and Navy” que é o nome da empresa mediadora. Essas armas foram produzidas por Holland & Holland, Westley Richards, W. J. Jeffery e Wembley Scoot. 47 deles era em calibre 450 NE e os 15 restantes nos seguintes calibres: 600, .577, .500, .475 No.2, e .470 NE
Essas armas desse contrato valem hoje algumas centenas de milhares de dólares e são muito procuradas por colecionadores do mundo inteiro. O famoso caçador Americano Mark Sulivam é o feliz proprietário de um Army and Navy com cano de 28 polegadas em calibre 450 NE fabricada em 1912 e que atira de maneira precisa e confiável até hoje.
Cristiano Furtado