Considerações inciais
O Brasil é um país com milhares de atiradores que se capilarizam por diversos seguimentos. Normalmente os atiradores desportivos são os que mais fomentam as atividades de tiro, ao desenvolverem treinamentos semanais e constantes competições nas mais diversas modalidades. Há também aqueles que vão ao estande de tiro para treinar protocolos defensivos, fazer cursos táticos e desenvolverem procedimentos de autodefesa.
Certamente, para que seja considerado um atirador, independente do seguimento a que pertença, o cidadão deve frequentar constantemente um estande de tiro. Caso contrário ele apenas se autodenomina atirador, não passando, na verdade, de apenas um admirador da atividade.
No entanto, com já é consenso que o atirador é um frequentador habitual de um estande/clube de tiro, como poderíamos estabelecer parâmetros para crermos que um homem que dispara rotineiramente armas de fogo em um estande de tiro, esteja pronto para o confronto armado?
Creio que não há uma resposta exata para esse questionamento, até porque um ser humano nunca estará pronto para infinitas possibilidades de confrontos que poderão ocorrer. Entretanto, iremos investigar, por meio desse artigo, elementos e parâmetros que possam levar um homem a um nível satisfatório de enfrentamento no confronto armado.
O ambiente operacional
Um primeiro aspecto a ser observado é que as características do confronto certamente influenciarão no resultado do operador de armas em sua finalidade. Ou seja, o atirador terá que conhecer muito bem as peculiaridades e as problemáticas que encontrará em um confronto armado, para somente assim conseguir obter alguma vantagem sobre prováveis oponentes.
Com esse entendimento inicial, torna-se bastante claro que apenas disparar bem, em um alvo de papel a distâncias pré-ajustadas, não configura que o atirador estará com técnicas de combate/autodefesa apuradas e em condições de sobreviver ao combate, apenas caracteriza que ele sabe utilizar corretamente os fundamentos de tiro ao disparar uma arma de fogo e mais nada. O fato é que existem diversos outros elementos fundamentais para forjar um operacional ou mesmo um cidadão para o confronto.
Massad Ayoob, um dos grandes especialistas no assunto, aborda sobre o importante tema, ao transcrever em uma de suas relevantes obras um trecho de uma entrevista com um policial americano ferido em um confronto armado: “Não entendo o que aconteceu, consegui ótimos resultados nos treinos de qualificação, atirando a oito metros, porém errei um ladrão a dois metros, que acabou me atingindo com um tiro”.
Os estandes não são as ruas
Talvez a ideia de que ser um bom atirador no estande faz um bom combatente no confronto, seja umas das mais assassinas que possa acometer a cabeça de uma pessoa. Ocorre que o confronto armado é bastante diferente do estande de tiro e no estande os eventos não acontecem como no confronto.
“Não entendo o que aconteceu, consegui ótimos resultados nos treinos de qualificação, atirando a oito metros, porém errei um ladrão a dois metros, que acabou me atingindo com um tiro”.
Relatos de um policial americano
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Geralmente no tiroteio as atividades são violentas e ocorrem a reduzidas distâncias entre os envolvidos, corroborado com o agravante do fator surpresa do oponente. Sendo assim, o tempo de reação torna-se muito curto, valorizando sempre o condicionamento que deveria ser adquirido previamente nos treinamentos.
Além do pouco tempo, ainda é possível encontrar pessoas inocentes circulando, e também pequenos ambientes com pouco espaço para combater. Tudo é muito complexo para quem passou apenas algumas horas, de alguns dias, atirando somente em um papel pardo ou colorido na sua frente ou realizando procedimentos sem um fim específico.
As pequenas distâncias também tornam o combate muito mais pessoal, quase particular. E isso tem um efeito devastador sobre o nível de estresse do combatente. O perigo de morte espreita a todo o momento, elevando o grau de atenção ao máximo e consequentemente acelerando o desgaste mental e físico do atirador.
Começa então a surgir o medo da morte e os efeitos do estresse se manifestam no atirador, podendo se tornar o seu maior inimigo. Para isso, é essencial ao atirador entender previamente os efeitos psicológicos para tentar controlá-los e conseguir continuar na ação proposta de defender-se e sobreviver. Todavia, normalmente o atirador nas suas idas ao estande não realizou treinos mais elaborados que viessem a simular cenários com esse contexto, ou por desconhecimento de como treinar assim ou mesmo pela falta de motivação para realizar treinos um pouco mais complexos e com essa natureza.
Efeitos psicológicos do confronto e suas influências
Sempre que o homem desencadear uma reação de sobrevivência, será ativado o Sistema Nervoso Simpático (SNS) que, quando em atividade elevada, afetará o corpo humano na questão psicológica e fisiológica.
O ser humano, em situação de estresse, tende a perder o seu raciocínio intelectual, trabalhando apenas com seu raciocínio intuitivo ou por meio de seu condicionamento psicomotor. Assim, por exemplo, o seu conhecimento de quando atirar e se defender fica prejudicado e em situações como essas podem gerar consequências irremediáveis, como alvejar pessoas inocentes ou se deixar ser alvejado.
Oliveira, Gomes e Flores, autores da obra Tiro de Combate Policial – Uma Abordagem Técnica (2001, p. 286), descrevem em detalhes a reação do organismo em situação de estresse e quando se teme perder a vida:
O cérebro manda o resultado de sua análise para o hipotálamo, glândula que controla as atividades mais importantes do organismo, e este envia comandos à hipófise, glândula de funções múltiplas, situada no crânio. A hipófise libera substâncias químicas para a glândula suprarrenal, que, por sua vez, joga adrenalina, noradrenalina, cortisona e outras substâncias ativas no sangue. Começam a seguir as reações de defesa: o coração acelera, a pressão sobe, os músculos se contraem, tudo em questão de segundos. […]
Nessa circunstância o atirador passará por grande estresse originado pelo real temor em perder a vida. Este temor causa uma série de efeitos sobre seu organismo. Inicialmente há a chamada reação de alarme, quando a mente, através de um ou mais sentidos, percebe a existência do perigo, desencadeando uma reação imediata no metabolismo.
A pressão arterial aumenta, o pulso acelera, a concentração se intensifica, a respiração acelera e se torna ofegante, a adrenalina é secretada em grande quantidade pelas glândulas suprarrenais diretamente na circulação sanguínea. O sangue é desviado para os grandes músculos prejudicando a irrigação para o cérebro, em consequência, há interferência no raciocínio lógico, e o corpo se prepara para reagir à fonte de perigo e para, em última instância, sobreviver. Por fim a adrenalina é lançada na corrente sanguínea, buscando instintivamente aumentar a força física do indivíduo e seu rendimento e diminuir a sensação de dor.
Oliveira, Gomes e Flores contribuem novamente esclarecendo sobre os efeitos complicadores de uma ação dessa natureza:
A noção do tempo é perdida, e tem-se a impressão de que as coisas acontecem em câmera lenta, além da sensação de que o policial participante da ação sob estresse é apenas um telespectador desta, assistindo a tudo, criando ilusões psicológicas e defensivas de que não participa momentaneamente da ocorrência, tornando-se ainda mais vulnerável. Entretanto, estes efeitos podem não se manifestar em sua totalidade, ou com total intensidade, variando em função do organismo e do treinamento e da própria avaliação que o policial faz do grau de perigo a que está submetido. […]
Consequências da variação do organismo
Invariavelmente o atirador poderá passar pelos diversos efeitos elencados, além de, na ocasião em que necessitar realmente usar a arma, ficar em dúvida se realmente é capaz, pode ou deve fazer aquilo. Sendo assim, poderá desenvolver diversos bloqueios para a tomada de decisão, tais como o medo de responder a um processo judicial pela sua ação ou não aceitar de imediato a decisão de ter que tirar a vida de alguém, principalmente se for a primeira vez. O atirador ainda, nessa situação complexa, poderá desenvolver bloqueios de ordem ideológica ou religiosa.
O grande problema é que estando nos tenebrosos cenários do confronto e influenciado por diversos fatores de todas as ordens, o atirador poderá ter seus disparos gravemente comprometido, pois ocorrerão contrações musculares que desviarão os disparos da área a ser atingida, os tornando parcialmente ou totalmente imprecisos.
Nesse caso específico será nítido o aumento de gatilhadas – puxadas violentas no gatilho – por parte do atirador, fazendo com que os seus disparos sejam perdidos ou atinjam pessoas inocentes. Hipóteses que poderão comprometer a vida do próprio atirador ou de terceiros próximos.
Conclusão
Após análise do conteúdo elencado, fica caracterizado que apenas disparar bem não é condição necessária para que uma pessoa obtenha significativa vantagem e sobreviva ao confronto armado. Na verdade, a qualidade de ser um bom atirador de estante é apenas um característica importante a se somar a outros elementos com propósitos específicos à sobrevivência no combate.
Na busca do sucesso, primeiramente o atirador deve ter em mente que o seu treinamento deve evolver protocolos que vão além dos treinamentos de tiro. Os treinos de tiro serão elementos meio para levá-lo ao fim, que é o sucesso no combate.
Isso posto, longe de querer exaurir quais os elementos são necessários para deixar alguém pronto para o combate (até porque entendo que nunca estamos prontos e sim sempre buscando a melhor performance), elenco a seguir algumas propostas que aplicadas em conjunto trarão uma vantagem significativa ao atirador que venha a entrar em um enfrentamento armado:
- Os treinamentos de tiro sempre deverão estar alinhados aos protocolos de defesa. Todo o treinamento deve ter um propósito e estar lastreado no que costumamos chamar de Vetores do Tiro de Autoproteção, que são as PPS (Procedimento, Precisão e Segurança). O que quer dizer que não adianta o atirador ser preciso nos seus disparos, mas não saber trocar rapidamente os seus carregadores, por exemplo; ou então ocupar corretamente um abrigo, mas não acerta a ameaça a poucos metros de sua frente; ou ainda, o atirador é preciso ao disparar, sabe se abrigar, realiza a troca de carregadores corretamente, saneia as panes corretamente, mas compromete a sua segurança e a de terceiros ao manusear a sua arma, deixando o dedo no gatilho quando não era para estar ou não controlando o cano da sua arma devidamente, apontando desnecessariamente para posições indesejáveis. Ocorre que para a sobrevivência o que mais valerá será o equilíbrio entre esses (03) três vetores e não o destaque de algum deles isoladamente.
- O atirador deverá buscar treinamentos que o façam trabalhar a sua área cognitiva e afetiva, vindo a serem colocados gradativamente, em seu treinamento, elementos estressores para que o seu corpo possa ir se adaptando e conhecendo os desconfortos próximos aos que surgirão no enfrentamento.
- Sabe-se que é impossível prever todas as formas que o combate pode ocorrer, porém desenvolver atitudes saudáveis de como se portar e como se antecipar às ameaças é de fundamental importância. O que quer dizer que o atirador começa a salvar a sua vida antes mesmo de sacar a sua arma e isso ocorre ao tomar atitudes preventivas e proativas que o coloquem em vantagem sobre o oponente, por justamente ter se antecipado ao cenário. Para isso deve-se treinar exaustivamente o que chamamos de Protocolos de Percepção e Identificação da Ameaça.
- Assim como esclarece Humbeto Wendling , o atirador deve aceitar o ferimento como consequência do combate, mesmo evitando copiosamente esse acontecimento. Para isso deve-se buscar simulações em treinamentos de como se comportar em caso de ferimento e, ainda, obter conhecimentos específicos em APH de combate.
Por fim, estar pronto taticamente é muito além do que possamos imaginar, talvez algo inatingível, assim como se manifesta o Dr Maniglia :“Pronto ninguém nunca está, quem aqui não queria ter tido mais um treino que pudesse prever o que iria ter em um confronto armado? “. Entretanto o que não poderemos abrir mão é de estarmos prontos de espírito e totalmente aguerrido, isto sim nos levará à vitória.
Então, combatente, você está pronto?