Eu tenho uma lembrança do dia em que o meu pai comprou um videocassete e instalou na sala para assistirmos “Rambo: Programado para Matar”. Era início da década de 90 e possuir um videocassete era artigo de luxo na época, mas não era um videocassete qualquer, era um videocassete de quatro cabeças e que ao final da execução ele rebobinava a fita VHS de forma automática.
Os tempos mudaram e aquele videocassete ficou apenas na memória, os anos passaram e em 1997 o VHS foi substituído pelo DVD “Digital Versatile Disc“, logo depois chegou a tecnologia Blu Ray com melhor resolução e hoje temos o Streaming com filmes em resolução 4K e que permite enviar dados em alta velocidade e sem necessidade de armazenamento em discos rígidos. Resumindo: eu posso baixar um filme no meu celular e assisti-lo enquanto estou dentro do avião e por R$ 29,90 tenho acesso a uma lista de filmes que demorariam anos para serem assistidos.

Depois de todas essas informações eu posso lhe afirmar que ainda é possível assistir filmes nas antigas fitas VHS utilizando o bom e velho videocassete, mas convenhamos, eu prefiro utilizar o serviço de Streaming. Então hoje eu vou apresentar à você o “Streaming” da posição de tiro utilizando abrigos e coberturas.
A Evolução e os Predadores
Primeiro vamos entender como o nosso corpo se comporta sob estresse. Basicamente durante o processo evolutivo fomos aprendendo habilidades que possibilitaram que sobrevivêssemos a predadores e a fatores ambientais. Essa construção ocorreu durante milhares de anos e programou nosso cérebro a executar reações estereotipadas de forma automática toda vez que ele entender que estamos diante de uma ameaça.
Você não aprende estas reações, elas são inatas e chamamos de reflexos ou reações instintivas. Não exigem processamento cognitivo consciente e o seu treinamento não é capaz de mudá-las, porém podemos mitigá-las, quer dizer, suprimir a sua amplitude ou convertê-las em respostas intuitivas mais eficientes. Isso exige que o seu treinamento seja pautado numa metodologia científica que permita alinhar reações naturais e realidade em respostas intuitivas eficazes e simples. Lembre-se que sob estresse seu corpo sofre influências que afetam sua capacidade motora e cognitva: Você fica mais rápido, mais forte e mais burro.(recomendo a leitura do Artigo “Como treinar na piscina e nadar com tubarões!).
A Plataforma de Tiro
A plataforma de tiro pode ser conceituada como a postura corporal adotada para realizar disparos de forma efetiva no alvo ou ameaça designada. Você busca a estabilidade e mobilidade do seu corpo enquanto gerencia o recuo da sua arma e mantém ela alinhada com o alvo. O ponto positivo disso é que se você souber gerenciar o seu centro de gravidade, usar a sua estrutura óssea e utilizar o seus pontos naturais de pontaria (quadril, nariz, coluna) de maneira a aproveitar a biomecânica do seu corpo, este processo se torna mais fácil e efetivo. No entanto, tudo isso provavelmente irá acontecer sob alto nível de estresse e compressão de tempo enquanto você luta para sobreviver e vencer um confronto armado contra duas ou mais ameaças.
Máquina de Combate
Analisando de uma perspectiva pessimista ou o pior cenário, você precisa tomar uma plataforma de tiro num confronto repentino, a curta distância, sob compressão de tempo e talvez contra uma ou mais ameaças. Inevitavelmente o seu corpo entrará no modo “Máquina de Combate” e os efeitos gerados pelo Sistema Nervoso Simpático responsável em otimizar e executar o nosso “Protocolo de Sobrevivência” irá desencadear algumas reações que podem ser visíveis, enquanto outras não perceptíveis visualmente mais que ocorrem dentro do nosso cérebro e no nosso corpo.

As reações invisíveis são o estreitamento de percepção visual ou Visão de Túnel (mantém o seu foco na ameaça e faz você ignorar outras “distrações” ambientais), aumento da pressão arterial e aumento dos batimentos (acelera o transporte o “coquetel hormonal” para todo o seu corpo), constrição de vasos sanguíneos periféricos (evita que você sangre nas extremidades), estas reações não visíveis geram as reações visíveis em nosso corpo como diminuir o centro de gravidade(flexão das pernas para facilitar a resposta de fugir ou lutar), projetar a cabeça para frente(esquiva contra ataques de predadores), levantar as mãos na frente do rosto (proteção da cabeça e do sistema visual), colocar o nosso corpo de frente para ameaça para ajustar o nosso sistema visual (visão binocular aumentando o nosso campo visual) e possibilitar o uso efetiva das nossas “ferramentas de combate” (braços e pernas).
Alinhando a Resposta de Sobrevivência ao Tiro
O que eu faço como Instrutor é alinhar a sua Reação Instintiva com as suas Respostas Intuitivas através do treinamento, logo, manter uma postura de tiro que coloque o seu corpo na direção da ameaça, mantenha a sua cabeça posicionada para aproveitar a capacidade binocular e auxilie você no controle da arma durante disparos rápidos e precisos faz todo o sentido do ponto de vista dos Princípios da Eficiência e da Simplicidade. O desafio está em levar esse conjunto para trás de uma barricada, enquanto você ajusta a sua postura para realizar disparos e evita ser baleado durante o confronto.

Vou definir alguns conceitos como cobertura e abrigo:
Cobertura é tudo que pode te esconder da ameaça, porém não lhe dá proteção balística.
Abrigo é tudo que oferece anteparo balístico, logo pode absorver impactos de projéteis e lhe proteger por um tempo determinado. Saliento que os abrigos na maioria das vezes são temporários, principalmente no ambiente veicular.
Agora para resumir vou tratar tudo como barricada, entenda que a barricada é uma proteção temporária que serve de abrigo e cobertura, porém sua resistência depende da velocidade e massa do projétil que está sendo enviado contra ela.
Batalha de Ângulos
Combater atrás de uma barricada é uma “batalha de ângulos”, os melhores ângulos vencem o confronto. Melhores ângulos podem ser traduzidos como mais informação e menos exposição, quer dizer que você consegue ter uma melhor leitura do cenário e descobrir onde está a sua ameaça enquanto busca neutralizá-la sem expor o seu corpo evitando ser atingido.
Existem algumas regras que permeiam a utilização dos abrigos, uma delas diz que você vai expor o mínimo possível do seu corpo, literalmente vai buscar expor apenas sua cabeça (olhos), braços e mãos (arma). Faça isso mantendo uma postura estável e que lhe dê alguma mobilidade já que você precisa ganhar ângulo para melhorar a coleta de informações. Uma técnica muito utilizada é traçar uma linha imaginária paralela ao limite do abrigo e posicionar o seu pé antes desta linha, utilizando-a como referência e limitando passar o pé daquela linha. Quando você faz isso, seus pés ficam paralelos e você projeta o corpo lateralmente para ganhar ângulo atrás da barricada, vou chamar essa técnica de Regra dos 90°. A maioria dos instrutores que eu conheço, para não dizer a totalidade (exceto aqueles que já estiveram nas linhas da ESPERANDIO TACTICAL CONCEPT®) utilizam esta técnica.

Os Anos 90
Então, a Regra dos 90° me faz lembrar dos Anos 90, e nessa década o videocassete estava no seu auge, porém estamos trinta anos a frente e eu prefiro o serviço de Streaming ao videocassete, da mesma forma que eu abandonei a Regra dos 90° em detrimento a Regra dos 45°, agora vou te colocar naquilo que tem de mais efetivo e alinhado com a biomecânica do seu corpo.
Esqueça esse conceito de trabalhar lateralmente atrás da barricada, vamos entender o seguinte, de acordo com Ron Avery a sua postura de tiro é influenciada por três forças:
Gravidade: ela é constante, independente de você estar se movendo ou parado.
Impulso: quando você está se movendo para qualquer direção ou sentido, frente, trás, direita, esquerda, cima ou baixo.
Recuo: durante os disparos o momento gerado pelos disparos exige que você gerencie o recuo da arma.
Ron Avery diz ainda que “a maneira como você interage com essas forças determinará o quão eficiente você será”.
Vamos nos ater a gravidade e como ela irá influenciar a sua postura correta e eficaz atrás da barricada.
“Gravidade é a propriedade que faz com que os corpos sejam atraídos para o centro da terra”.
“Centro de Gravidade é o ponto no seu corpo onde é considerada a força da gravidade”.
Falar sobre plataforma de tiro é falar sobre gerenciar o centro de gravidade, ele vai mudar de acordo com a sua postura, peso, estrutura física. Em regra considere que quatro aspectos definem esse gerenciamentos:

- Altura do centro em relação ao solo, quanto mais próximo ao solo mais estável. Atirar de pé com os joelhos esticados é menos estável do que atirar com os joelhos flexionados.
- Peso do corpo. A forma como a força peso age no seu corpo.
- Alinhamento do eixo com a base do corpo, quanto mais no centro maior a estabilidade. Inclinar o corpo muda o eixo de lugar, você precisa manter o equilíbrio para evitar cair.
- Área de contato, quanto maior a área, maior a estabilidade. Pés juntos mais instável, distanciar os pés na largura dos ombros melhora o seu equilíbrio.
Chegou a hora de mudar o conceito sobre atirar atrás de abrigos e melhorar a forma como você domina o cenário e resolve as ameaças.
Considere a barricada e a sua linha invisível, porém lembre-se que toda vez que você deslocar o seu corpo lateralmente para tomar ângulo e realizar disparos, você estará tirando os seus ombros de cima dos pés, isto quer dizer que estará desalinhando o eixo do centro de gravidade com a base, seu corpo estará prestes a entrar em movimento, chamamos isso de torque, ficando numa posição de desequilíbrio. Outro aspecto a ser considerado é que a tomada da posição de forma lateral (Regra dos 90°) limita a sua amplitude de movimento, diminuindo a sua observação e ângulo de engajamento da ameaça.
Como vencer este problema?
Saia dos 90! Ao invés de inclinar seu tronco para os lados você irá incliná-lo para frente em diagonal com o abrigo (Regra dos 45°), chamo isso de “Ângulo Agressivo” (utilizo esse termo nas minhas instruções de VCQB®). Além da projeção em 45° você irá avançar a perna do lado de abordagem da barricada (abordagem pelo lado direito, avance com a perna direita, se for pelo lado esquerdo avance com a perna esquerda), respeitando a linha imaginária que limita o ponto de contato do pé que está a frente.

Esta postura agressiva irá lhe proporcionar uma base maior e consequentemente maior estabilidade quando deslocar o eixo do centro de gravidade, seus “ombros ainda estarão sob os pés”. Agora você tem maiores amplitudes o que lhe dará menos exposição e economia de movimentos, pois evita que você movimente os pés para fora do abrigo para melhorar o seu ângulo de engajamento.

Um segredo, mantenha o seu quadril voltado para a direção da ameaça, além de facilitar a utilização dos seus pontos naturais ( o quadril é um deles), o quadril na Regra dos 45° impede que seu pé ultrapasse a linha imaginária no extremo da barricada. Diferente de você ficar posicionado de lado para o abrigo, forçando a inclinar-se para frente e perdendo a estabilidade (ombros desalinhados com os pés), além de deixá-lo lento se precisar se esconder repentinamente atrás da barricada. O posicionamento atrás do abrigo é idêntico à técnica de fatiamento utilizada em portas nas operações em ambientes de recinto fechado (CQB).

A Falácia da Troca de Empunhadura
Neste artigo eu não irei abordar ambidestria em armas longas, vou limitar-me a falar sobre armas curtas, em especial pistolas. Alguns instrutores defendem que você deve trocar a pistola de mão (empunhadura dupla) quando faz a transição de lado na utilização do abrigo. Desta forma, quando você abordar o abrigo pela direita varia a empunhadura dupla utilizando a mão direita e ao abordar pelo lado esquerda a empunhadura dupla seria feita com mão esquerda segurando o punho da arma. Talvez seja uma das coisas mais estúpidas que eu já tenha ouvido no mundo do tiro! Ela fica no mesmo patamar dos “Speeds Rocks”, Ciclo OODA, NHS, atravessar o carro e lançar carregadores…
A troca da empunhadura dupla com pistola talvez seja uma das coisas mais estúpidas que eu já tenha ouvido no mundo do tiro! Ela fica no mesmo patamar dos “Speeds Rocks”, Ciclo OODA, NHS, atravessar o carro e lançar carregadores…
Análise rápida sobre trocas de empunhadura com armas curtas:


- Primeiro entenda que você realiza uma empunhadura simétrica isso quer dizer que diferente do fuzil que você estabiliza a coronha em um dos ombros e precisa colocar a arma numa área mais lateral do corpo, a pistola fica no centro do seu eixo (tórax) e colocá-la mais para um lado não exige mudança da postura, mas trabalhar a posição dos braços e inclinação do tronco.
- Levando em consideração o primeiro ponto, o seu problema é mais postural do que de silhueta reduzida, a maioria dos alunos que frequentam as linhas da ESPERANDIO TACTICAL CONCEPT® precisam de correção na postura que realizam atrás do abrigo. Posição dos pés, inclinação do tronco e consciência corporal, já que a maioria se super expõe quando realizam os disparos.
- Lembre-se o quanto você treina empunhadura dupla com o seu lado reativo, basicamente o seu manuseio (recargas e resoluções de panes) estão num patamar muito inferior que o seu lado ativo (maior habilidade), então eu nem preciso mencionar o controle da arma (empunhadura consistente) nesta situação.
- Mesmo que você seja o “Bichão” da ambidestria, lembre-se que o seu equipamento está configurado para favorecer operações com o seu lado ativo, a troca de empunhadura irá influenciar o seu acesso ao seu carregador reserva, lanterna ou qualquer outro material essencial.
Considere que utilizar um abrigo durante um confronto armado é algo que deve estar alinhado com a sua postura natural de combate, trabalhar ângulos te dá uma grande vantagem pois estabiliza a sua posição, diminui a exposição e aumenta a sua amplitude para melhorar a leitura do ambiente e o engajamento da ameaça. Para tudo isso acontecer da melhor maneira você precisa sair dos Anos 90 e entrar na Regra dos 45°, desta forma você aproveita as vantagens que a mecânica do seu corpo tem a oferecer te tornando mais letal e eficaz nos disparos abrigado.

Outro ponto é desmistificar e desconstruir as falácias que envolve o tiro barricado e a ambidestria de arma curta na empunhadura dupla, considere trocar a sua arma de mão como o pior cenário, faz sentido na empunhadura simples por uma contingência como um ferimento por exemplo que impossibilite utilizar as duas mãos, caso contrário trabalhe com a empunhadura dupla e sempre com a sua mão ativa segurando o punho da arma.
O videocassete teve o seu espaço, mas a ciência revolucionou a forma de armazenar e distribuir dados da mesma forma que a ciência por trás do tiro evoluiu, não considerar aspectos da biomecânica, neurociências, psicologia do combate e outras disciplinas e fechar os olhos para aquilo que te dará uma vantagem em combate.


“Lembre-se que a sua ignorância não invalida as minhas evidências”.