Talvez um dos assuntos mais abordados quando se fala de confronto entre alguém portando uma arma de fogo contra um sujeito com faca, é a famosa – e suposta – “regra dos 21 pés”. Todos falam dela, embora poucos a compreendam. Mas, vamos do começo.
A “regra dos 21 pés” decorre de um entendimento equivocado do que foi abordado pelo policial Dennis Tueller, do Departamento de Polícia do Salt Lake City, em 1983. Tueller, em seu artigo “How Close is Too Close?” (algo como “Quão perto é perto demais?”), argumentou que uma pessoa saca e efetua um disparo em algo em torno de 1 a 1 segundo e meio. Neste tempo, um homem médio percorre cerca de 21 pés (ou aproximadamente 7 metros). Juntando as peças, estimou então que, estando a menos de 21 pés, um agressor com uma faca poderia atacar antes de ser alvejado pelo disparo. Parece simples, não? (para mais, acesse A Regra dos 21 Pés)
Sim. É um raciocínio simples e muito bom. Porém, não é uma regra!
Deste bom juízo não se depreende que 21 pés – 7 metros, daqui em diante – é uma distância segura, e que a menos que isso o portador da arma de fogo estará em perigo, sempre. E talvez daí surjam tantos equívocos e confusões. Vamos por partes.
Alguns dos muitos problemas
Ao longo dos anos, vários problemas foram apontados nesta simplificada interpretação do argumento, que culminou na “regra dos 21 pés”. Há várias críticas e diversos outros artigos apontando problemas quase sempre relevantes. Por hora, vejamos alguns destes:
- O primeiro – e talvez mais óbvio -, é que a regra não considera a diferença de tempo entre a ação e a reação. Parece óbvio, mas entre a leitura do cenário, percepção do perigo, tomada de decisão e ação reativa, decorre um tempo razoável. Isso fica ilustrado no conhecido ciclo OODA, onde a tomada de decisão necessita dos passos Observar, Orientar, Decidir e Agir. Sem entrar nos controversos meandros do famoso ciclo, é nítido que há uma perda substancial de tempo. Esta perda pode ser mitigada pela consciência situacional apurada e pelo treinamento. Mas nunca negligenciada.
- Um segundo seria que estes são tempos médios. E o problema é: será que você está melhor ou igual a média? Pior, será que seu agressor estará melhor? Nos famosos – e excelentes – experimentos conduzidos por Pete Blair*, sugere-se uma média de 1,8 segundos, com o melhor tempo de 1,03 e o pior de 3,40 segundos. Uma enorme diferença! Para alguns, talvez sete metros não sejam sequer perto do suficiente, não? É verdade que esta média melhora sob estresse (para 1,43 segundos, no mesmo estudo em experimento conduzido com simulação de ataque), mas ainda é uma média e, pior, as chances de acerto também caem.
- Outro é a precisão. Não é novidade que, mesmo que haja tempo para sacar e disparar, é possível que este disparo não seja certeiro. No mesmo estudo anterior, sugere-se que apenas 86% dos atiradores acertaram seu alvo. Não é uma estatística ruim, mas, somada aos demais problemas, é certamente mais um problema a ser enfrentado pelo atirador. Não basta atirar, mas sim acertar.
- Um quarto problema – e vou parar por aqui, prometo – é que acertar não é incapacitar. Sim, eu sei que você sabe disso, mas não custa lembrar. Tem sido consenso que se tem três formas comuns de incapacitação: psicológica; por comprometimento do SNC; e por hipovolemia. (para mais, acesse Por que atiramos em alguém?) Em um cenário de um agressor com uma faca atacando um homem armado, não parece razoável contar com a incapacitação psicológica. Comprometer o SNC parece difícil em um confronto frente a frente. Resta, talvez, a por hipovolemia, ou perda de sangue. O problema é que ela costuma ser lenta, e pode precisar de mais que um disparo certeiro. Um grande problema, certo? E tempo, lembremos, é nossa principal variável aqui. Cada segundo pode representar alguns golpes de faca, o que não é nada bom.
Então basta ficar longe?
Um argumento comum então é que basta ficar longe. Será?
Me parece que ele decorre de uma percepção meramente teórica, de quem nunca experimentou uma aplicação prática da teoria. Em especial, da falta de vivência da experiência policial. Explico.
Não é incomum que policiais precisem abordar pessoas portando lâminas ou objetos similares. E, nestas abordagens, os cenários variam enormemente. Por vezes, são potenciais suicidas. Noutras, pessoas que utilizam instrumentos para trabalho. E, mesmo em casos de evidentes potenciais agressores, o cenário por vezes não permite o afastamento ou necessita de alguma aproximação.
Imagine-se abordando um empregado de um açougue. Ou um mecânico em uma oficina. As chances de eles estarem com objetos perigosos em mãos são razoáveis. Porém, dependendo do cenário, não parecerão – a priori – ameaças iminentes. Exigem cuidado? Certamente. Mas é apenas o cenário que dará a real medida das coisas. O ambiente confinado ou barulhento por vezes também exigirá alguma proximidade. Ou um potencial suicida talvez convide à uma presença confiante. Talvez um agressor pode tenha potenciais vítimas nas proximidades, cuja distância do policial os deixe em maior risco. Apenas o contexto concreto pode fornecer as múltiplas variáveis envolvidas.
Certo é que a leitura do cenário no caso real certamente tornará a tomada de decisão dos policiais muito mais complexa que apenas ganhar – e manter – distância. Variáveis até mais sutis, como percepção de feições, linguagem corporal, ambientação posicional no cenário, etc, serão tão importantes quanto a distância. E são apenas algumas.
Em resumo, é um erro avaliar o problema baseado apenas na variável “distância”. Ela é, juntamente com tantas outras, uma das variáveis relevantes, mas nem de longe é a única.
Movimento é vida
Todavia, um ataque pode acontecer. Ele provavelmente será repentino e rápido. E pode ser fatal. Assim, sua vida pode depender de suas pernas. Movimente-se. Neste caso, movimento é vida.
SAIA DO X!
Sair do X significa sair do local onde está sendo atacado. Esta expressão popularizou-se como mecanismo de sobrevivência em confrontos armados, quando sair do local e buscar abrigo é uma estratégia eficiente de sobrevivência. Movimentar-se pode também ser uma das manobras mais valiosas para a sobrevivência contra um ataque de faca.
Segue um vídeo com situações reais em que a movimentação ajudou na sobrevivência do policial:
Dentre as possibilidades de movimentação, algumas parecem melhores que outras. Como saber?
No mesmo estudo citado, foram feitas simulações com deslocamento em três direções enquanto o atirador sacava e disparava: (1) para trás; (2) lateralmente em 90 graus; e (3) obliquamente em 45 graus. Observou-se que há significativas diferenças entre elas.
O agressor com a faca atingiu o atirador quando este permaneceu parado em 33% das vezes. Quando se moveu em 45 graus na direção do agressor, foi acertado 26% das vezes. Se se moveu para trás, foi atingido pela faca em 8% das vezes. E, por fim, quando se deslocou lateralmente, foi atingido apenas 5% das vezes!
Assim, a movimentação lateral parece uma excelente opção! Ela permite o aumento da distância, exige uma tomada de decisão e mudança de rumo da corrida pelo agressor e ainda evita obstáculos no caminho, pois permite a percepção do cenário através da visão periférica.
Uma manobra que não parece boa é deitar-se com os pés para frente, bloqueando o agressor com as pernas. Ela diminui o que talvez seja o mais essencial: sua mobilidade. Talvez – e apenas talvez – seja uma possibilidade em um cenário muitíssimo confinado, mas isso não é assunto para o momento. Porém, vale lembrar, em ambiente real, nunca é nunca, e nunca é sempre.
Não menos importante é observar que, em distâncias muito curtas – como de entrevista -, sequer sacar a arma talvez seja razoável como primeiro movimento. Experimentos anedóticos sugerem que talvez um bloqueio, seguido de movimento e saque, podem ser mais eficientes. Porém, esse é um assunto que ainda merece mais estudos. Talvez fique para um próximo artigo.
Outras sugestões
Além da movimentação e da distância, outras dicas parecem valiosas. Elas se baseiam nas orientações do próprio Dennis Tueller e estão presentes também no outro artigo que escrevi sobre o assunto. Confira:
- Treine! Quanto maior sua habilidade com a arma de fogo, menor será seu tempo de reação e melhor será sua precisão. Inclua nos seus treinamentos exercícios simulados, com experiências similares. Treine!
- Esteja atento! O tempo de reação depende de sua percepção, da leitura de cenário e da sua consciência situacional. Lembre-se: sua vida pode depender disso.
- Verbalize. “Pare!”, “Não se mova!” ou “Largue a arma!” podem ser eficazes. Treine verbalização! Comandos claros, concisos, imperativos e firmes não são sempre triviais, sobretudo sob estresse.
- Ao perceber um perigo iminente, saque a arma. Isso pode reduzir o tempo de reação, caso seja necessário.
- Procure posicionar-se de modo a haver obstáculos entre você e o agressor. Um veículo, uma lata de lixo. Qualquer coisa que dificulte o caminho do agressor pode ser útil para ganhar tempo.
* Sandel, W.L., Martaindale, M.H., & Blair, J.P. (2020). A scientific examination of the 21-foot rule. Police Practice and Research. DOI: 10.1080/15614263.2020.1772785.