Há mais de um século, tenta-se estabelecer uma relação entre arma de fogo e sua eficiência em incapacitar o ser humano. Denominado poder de parada ou “stopping power”, esse conceito é dos temas mais discutidos no universo do tiro defensivo. Existem várias versões sobre os fatos históricos que deram origem aos estudos desse assunto e várias teorias que tentam explicar esse complexo fenômeno.
Quando consideramos a utilização de arma de fogo para defesa, tão importante quanto as características do equipamento são as características da munição utilizada. Pode-se dizer, a princípio, que o objeto do estudo em questão é o conjunto arma de fogo e sua munição. Dentre as características da arma, deve-se considerar o calibre. Durante muitos anos, a pergunta que se fazia era: qual calibre tem o melhor poder de parada?
No entanto, nos dias de hoje, não há como definir características de desempenho a um calibre em si. Com a evolução dos materiais, surgiram inúmeros tipos de pólvoras, com composição, granulação e comportamentos de queima diversos, assim como se modernizaram os projéteis, tanto em composição como em estrutura e desenho. Essas mudanças fazem com que cartuchos de um mesmo calibre possam apresentar desempenhos bem diferentes.
No mercado mundial de munições, podem-se encontrar dezenas de configurações de cartuchos de um mesmo calibre, com variações significativas de energia e performance. No Brasil, a oferta é mais modesta, visto que a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) opera solitária, nesse ramo. Ainda assim, podemos ilustrar essa realidade com o seu portfólio. Tomemos o calibre 9mm Luger como exemplo. A CBC oferece cerca de 10 tipos diferentes de cartuchos, no referido calibre, com energia que varia de 420 a 610 joules, utilizando projéteis com desempenhos variados, dentre eles: chumbo ogival, ogival jaquetado, frangível, expansivo ponta oca e expansivo ponta plana.
A complexidade do corpo humano
Se já não bastasse toda essa diversidade técnica de equipamentos, no estudo do poder de parada, temos que considerar, ainda, um ator de complexidade infinita: o corpo humano. Pois, em tese, é nele que o projétil vai agir e suas reações são muito difíceis de serem previstas, em razão da multiplicidade fisiológica e da imprevisibilidade emocional. Até aqui, já dá para se ter uma noção do porquê dos estudos sobre esse tema estarem envoltos em polêmicas metodológicas e questionamentos científicos. Pela dificuldade de se reproduzir, nas pesquisas, o grande número de variáveis envolvidas, de se estimar aspectos subjetivos e pelas limitações dos meios anatômicos utilizados como meio de teste.
Vale ressaltar que o resultado esperado pelo estudo do poder de parada não é o óbito, mas a incapacitação do indivíduo. A doutrina sugere que a incapacitação almejada tem duas causas: psicológica e fisiológica. A incapacitação psicológica, oriunda do choque emocional, é das causas mais comuns de desistência do combate. A natureza do fenômeno torna sua compreensão aleatória e desvinculada das características do equipamento e munição utilizados. Portanto, a incapacitação fisiológica é o foco das investigações sobre o tema.
Incapacitação fisiológica
Quando inserimos o corpo humano como meio de interação do projétil disparado, entra-se na seara da balística terminal, ramo da balística que analisa os efeitos dos projéteis em seus alvos. E passa-se a falar da incapacitação fisiológica, fruto dos ferimentos causados pelo projétil, na estrutura anatômica. A análise do poder de parada busca encontrar a fórmula da incapacitação imediata, ou seja, definir o conjunto capaz de causar a perda instantânea de reação do atingido.
Estudos sugerem que, fisiologicamente, a única maneira de se auferir a incapacitação imediata é através da interrupção das transmissões nervosas. O projétil deve destruir as conexões do cérebro com o corpo humano, que só é possível atingindo uma porção inferior do tronco encefálico, conhecida como bulbo raquidiano. Lesões severas noutras regiões do corpo humano, por mais irrigadas que sejam, do ponto de vista fisiológico, não garantem a imediata incapacitação do indivíduo.
As inferências citadas são de extrema relevância para o assunto, pois, afastam os pesquisadores da solução desejada. A partir do instante em que se limita a ocorrência da incapacitação imediata à lesão de determinada área anatômica, as variáveis arma, calibre e munição perdem um pouco de sua importância. Noutras palavras, independente da munição, do calibre e da arma empregados, à luz dos preceitos da fisiologia humana, a incapacitação instantânea apenas acorre com a lesão do sistema nervoso central.
No geral, nos casos de incapacitação fisiológica, a perda de reação do atingido ocorre em razão de hemorragia severa e, consequente, choque hipovolêmico. Nesses casos, não há incapacitação imediata, o atingido continua com capacidade de reação até a ocorrência do choque, que pode demorar segundos ou até mesmo minutos, a depender da região lesionada e da gravidade dos ferimentos.
Complexidade do tema
Na medida em que avançamos no assunto, nos conscientizamos da complexidade que o envolve. Diante das considerações realizadas até aqui, já temos argumentos suficientes para questionar as teorias absolutas e as simplificações redutoras sobre o tema.
Nas primeiras publicações relevantes sobre o tema, poder de parada era conceituado como a capacidade de um único disparo, de uma munição de determinado calibre incapacitar, ainda que momentaneamente, o oponente. Os adeptos dessa teoria, em geral, tabulam dados de ocorrências reais e elaboram tabelas que elencam as munições presentes em tais confrontos, atribuindo às mesmas o percentual de eficiência com base no conceito acima citado. Assim, nessas tabelas, o valor atribuído a cada munição corresponde ao percentual das ocorrências observadas onde esta foi capaz de incapacitar o atingido, com um único disparo.
Além dos questionamentos científicos aos métodos aplicados nessas pesquisas, o conceito tornou-se ultrapassado à medida em que a incapacitação, em si, não mais era considerada suficiente. Passou-se a perseguir a solução para a incapacitação instantânea ou como chegar o mais próximo dela. Apesar das críticas e observações quanto ao método de pesquisa e obsolescência de suas premissas, não há como negar as contribuições desses estudos para o desenvolvimento da ciência.
As tabelas de “stopping power”
As tabelas de “stopping power” são vistas com severas restrições metodológicas, no entanto, inferências secundárias dessas análises contribuíram para a formulação dos modernos protocolos de avaliação de desempenho balístico. Além de precisão e energia, os protocolos atuais avaliam a performance do projétil quanto à: capacidade de penetração, capacidade de expansão, capacidade de retenção de massa, uniformidade balística, manutenção de trajetória retilínea após transfixação de superfície rígida, dentre outros quesitos. Considerados fonte de informação segura, capazes de balizar decisões, tais protocolos tomaram o lugar das referidas tabelas. Atualmente, as modernas Agências de segurança, mundo afora, utilizam protocolos de desempenho na determinação de seus equipamentos: arma, calibre e munição.
Em razão do que foi exposto, hoje, as explorações do tiro defensivo não têm como escopo o encontro de um conjunto capaz de causar a incapacitação instantânea do oponente, a partir de um único disparo. Têm sim, ampliado o objeto de análise, incluindo o operador do equipamento e a metodologia empregada como determinantes para o alcance da incapacitação, no menor intervalo de tempo.
Assim, podemos concluir: que a temática poder de parada é extensa e complexa; que envolve fatores diversos e poucos previsíveis; que a multiplicidade fisiológica do ser humano, aliada à imprevisibilidade emocional, dificulta a determinação de regras gerais. Pudemos observar, ainda, que, com a evolução e diversificação das munições, não se pode mais criar considerações gerais a um calibre em si. Outro aspecto relevante a ser ressaltado, diz respeito à importância da evolução dos conhecimentos da fisiologia humana como balizadora dos estudos da balística terminal. Por fim, destaco as inovações do pensamento contemporâneo sobre poder de parada, ao ponto em que operador e técnica se equiparam em importância ao equipamento utilizado.