Beabadotiro por Luciano Lara
Mais uma vez fui provocado a falar sobre um tema com base em artigo publicado em Revista Americana intitulado “Fugir ou não? Devo sair da cena após uma defesa com disparos?” em tradução nossa.
De autoria de Massad Ayoob o artigo analisa três casos reais defendendo porque normalmente você não deve abandonar a cena do crime, mesmo que se trate de uma clara legítima defesa.
Mestrão Marcelo Esperandio, da Esperandio Tactical Concept, me encaminhou a publicação[1] que segue ao final do presente artigo, e por convergir com um dos capítulos do nosso livro Legítima Defesa Armada, já em fase final de revisão, adianto aqui, com spoilers, a nossa posição, ademais já apresentada em algumas lives que realizamos sobre o tema, em especial uma bem extensa que está disponível para a Comunidade Infoarmas que fiz com o Jorge Ohf.
Dúvida recorrente, motivo de variadas lendas por aqueles incautos filósofos de churrasco e boteco, profundos conhecedores dos traquejos com armamento e legislação correlata que jamais colocaram uma arma legal na cintura ou se envolveram em qualquer situação tutelada por lei, mas que não se furtam em espalhar suas crônicas como se verdade fossem.
Não meus amigos, não tem nada disso de fugir e aguardar 72 horas para se apresentar para escapar do flagrante.
Não existe também fórmula mágica pronta e aplicável a todas as situações.
Legítima Defesa é matéria de fato, análise pontual caso-a-caso, sobre todas as circunstâncias e elementos que constituem a situação e levaram à conduta praticada, como detalhadamente descrevemos na nossa obra a ser lançada LDA.
Ocorre que superada a análise de se configurada está a legítima defesa, partindo da premissa de que agiu assim o cidadão, a primeira e sempre presente preocupação deve ser a de verificação da integridade física dos envolvidos.
Inicial e prontamente: Estou seguro e bem? Meus parentes, entes queridos, terceiros protegidos estão seguros e bem? Nenhum ferido?
Por óbvia que pareça a constatação essa primeira análise é fundamental e por vezes esquecida ou sobreposta pelo cidadão, seja pela adrenalina, seja pelo turbilhão de emoções que a reação armada gera, seja ainda pela visão de túnel e dificuldades decorrentes do alto stress da ação provocada no organismo e todas as demais consequências conhecidas e presentes (em maior ou menor intensidade) a todas as pessoas (dificuldade de raciocínio, perda de função motora fina, etc).
Não a toa que cursos de tiro de combate ensinam e forçam movimentação de cabeça escaneando ampla e lateralmente, movimentação de tronco para varredura do ambiente logo após os disparos realizados: menos que para coreografar cinematograficamente a atividade, como pregam alguns maldosos, mas sim para reforçar a necessidade de atenção e preocupação com novas ameaças e riscos do momento da ação.
Quebrar a fixação no agressor inicial e na ação decorrente dos disparos efetuados e garantir manutenção da atenção ao cenário, desnaturando a visão de túnel e gerando protocolo de garantia da segurança sem perder a orientação.
Tudo isso para dizer: primeira coisa a ser feita é garantir que não haja mais risco de agressões (novos agressores, comparsas, parceiros, defensores que surjam no local ou mesmo o agressor inicial retomando a ação) e garantir que as agressões até então sofridas não levaram a lesões graves.
Um disparo recebido pode ainda não ter sido sentido/percebido, um terceiro atingido pode não ter sido notado, o agressor incapacitado parcialmente pode continuar a agressão se não detectada a sua movimentação.
Isso tudo já mostra que a decisão a tomar após o 1º contato com o agressor e disparos efetuados… DEPENDE.
Depende do cenário encontrado após esse embate inicial e não há fórmula mágica para isso e sim conhecimento, ferramental desenvolvido e treinamento para abarcar as diversas situações que podem se seguir ao combate inicial.
Considerando que o agressor foi incapacitado e não mais apresenta risco (largou a arma, se entregou ou veio a óbito p.ex.), cessada a agressão cessa a autorização para a defesa legítima, do que terá o cidadão a chance de verificar os ferimentos e constatando que não foi ferido, nem mesmo nenhum terceiro foi ferido ou atingido, daí algumas possibilidades se abrem para a sequência dos eventos.
Detalhe que tendo sido ferido a adoção das medidas de APH mínimas devem ser adotadas, empregar seu torniquete em caso de lesão em membros, sua combat gauze em junções, seu selo de tórax em caso de lesão na caixa… não tem curso do APH de Combate? Não porta seu equipamento mínimo de APH?
Pela doutrina do Stop the Bleed todos os que portam uma arma no mínimo devem portar um TQ, vários autores do Infoarmas são instrutores de APH de Combate, Doc Maniglia, Doc Lessa, o próprio Esperandio, e não cansam de ensinar isso.
Sigamos com a melhor das hipóteses, sobrevivi e não fui lesionado! Sorte e mais sorte!
Uma opção seguinte seria a de ligar para o 190 se identificar como vítima de agressão e que se encontra armado e reagiu para se defender.
Nesse caso já apresente sua descrição física e vestimentas, forneça elementos de identificação do local dos fatos e aguarde a presença da polícia.
Tome a cautela de coldrear sua arma enquanto adota essa providência, já que tendo havido um confronto armado sua ligação para a polícia pode não ser a primeira realizada e uma viatura já pode estar em deslocamento, bem como uma guarnição já pode ter ouvido os tiros e estar se deslocando para a cena.
A pior coisa que pode lhe ocorrer é ser confundido com o marginal que o atacou e não são raros os casos até de policiais paisanos que são alvejados em cenas de legítima defesa quando a polícia chega e não identifica corretamente o agressor – essa confusão pode lhe complicar e a sorte de ter sobrevivido ao ataque de nada lhe adiantar.
Em seguida contate o serviço do SAMU e peça socorro ao atingido.
Por fim ligue para seu advogado porque você vai precisar.
Disse que essa é uma opção porque há outras, em especial apresentada pelo articulista Massad Ayob no seu “To flee, or not?” em que ele traz três casos americanos em que a pessoa, com medo, fugiu da cena e acabou, seja por peso na consciência, seja por receio da imagem que essa fuga pode ter gerado, sendo condenados ou realizando acordos de condenação para resolver os processos que se seguiram, e apenas em um dos casos houve absolvição pelo júri.
Sustenta o autor que existiria algo chamado “consciência de culpa” o que estaria demonstrado caso ao envolvido no ato se ausentasse da cena do crime.
Invocando ainda a passagem bíblica de Provérbios 28:1 para lembrar que “fogem os ímpios sem que ninguém os persiga” lembrando que quem não deve não teme.
A saída e exceção a essa regra, diz ele, seria apenas para o caso de deslocamento do envolvido para o hospital, buscando socorro próprio ou de terceiro, ou para a Delegacia se apresentar para esclarecimentos.
Tendo a concordar com a questão levantada.
Como dito no começo não existe a necessidade de aguardar-se 72h para se escapar do flagrante.
Não está em flagrante delito, na definição legal, quem se apresenta espontaneamente à Autoridade Policial, do que sempre foi minha recomendação de que constatada e garantida a cessação da agressão, verificado que não mais há risco pessoal ou para terceiros, deve o cidadão de bem apresentar-se (com advogado) em Delegacia de Polícia para não só não estar em flagrante mas como também manter a confirmação de que sua conduta é lícita e válida tanto que se apresenta para esclarecimentos sem qualquer receio.
Fato distinto se dá quando não há certeza de que o risco se encerrou.
Incapacitado o agressor, caiu, largou a arma, não mais avança contra o cidadão, esse não está morto e está dentro do terreno da residência do cidadão onde moram outras pessoas que permaneceriam no local, por exemplo.
Nesse caso eu não saio da cena e sim aguardo a polícia no local, garantindo que nada de pior aconteça com meus parentes e demais moradores.
Receber a polícia faz com que o cidadão seja encontrado na cena do crime, com instrumento do crime, logo após a sua ocorrência, estando em uma das modalidades de flagrante delito, nos termos da definição legal.
Em regra, a esse cidadão será adotada a prisão em flagrante uma vez que não cabe, majoritariamente posicionada doutrina e jurisprudência, a liberação com caracterização da excludente pela Autoridade Policial a que se apresente o caso.
Caracterizada a legítima defesa essa será reconhecida pelo Ministério Público ao analisar esse flagrante e poderá ocorrer a revogação do flagrante e aguardo do término das investigações em liberdade.
Sim, claro, investigações, porque sempre que se empregar uma arma de fogo haverá investigação, seja apontando a arma para terceiros, seja disparando mesmo sem atingir alguém, como é claro será investigado se o resultado lesão ou morte for alcançado com os tiros disparados.
Só pra constar nos três casos analisados no artigo americano, em tradução nossa, assim ocorreram as situações:
- no 1º caso um cidadão ameaçado constantemente encontra o algoz muito maior e mais agressivo, brigador de bar, que inclusive por vezes andando armado, e este ataca sua esposa e em seguida avança contra si, o cidadão 1 encurralado saca e dispara uma só vez fatalmente, foge em pânico com sua esposa, se apresenta posteriormente e faz um acordo com a promotoria no dia de seu julgamento (guilty plea) com receio de ficar décadas preso prefere um acordo de alguns anos;
- caso 2 um cidadão convalescente de câncer, debilitado pela doença, segue a noite para a casa de um amigo também doente e no caminho é atacado por dois jovens, um armado de faca, treinado saca sua arma e dá um disparo os agressores fogem e o atingido morre posteriormente, ele em pânico foge da cena e é preso posteriormente, processado por homicídio simples acaba sendo absolvido pelo júri;
- caso 3 um cidadão armado com uma faca e um mini revólver .22LR, ex policial treinado, se envolve numa briga e o agressor consegue tomar-lhe da cinta a faca e para se defender ele saca o revolver e mata o agressor, imediatamente entra no carro e se dirige à delegacia para se entregar momento em que é preso e explica que estava sem celular por isso se deslocava para apresentação, o itinerário e local da prisão consistem com a sua versão, porém o júri não se convenceu e ele foi condenado por homicídio, a que o Juiz deu pena máxima.
Os casos apresentados reforçam tanto lá como cá que tão importante quanto estar armado e treinado, seu EDC que inclui seu celular (e um advogado em contatos favoritos) é fundamental para potencializar sua chance de boa solução da questão.
Legítima defesa, independente de previsão legal ou local de ocorrência, é sempre questão de FATO então tenha sempre esses a seu favor atuando e demonstrando ter agido para se defender enquanto a defesa se mostrar necessária e cuide para ter adotado todos os atos possíveis para reforçar essa intenção após a ocorrência.
Seja ligando 190, seja buscando socorro ou socorrendo os atingidos (mesmo que o agressor atingido), seja antecipando-se à apuração que se seguira… e acredite tanto lá como cá usada a arma uma investigação ocorre e pode gerar um processo, como também pode resultar numa condenação, caso a situação não se demonstre legítima.
Menos lendas e mais estudo.
Muito treinamento, preparação e condicionamento para nunca precisar usar mas quando chegada a hora que a preocupação não seja o NHS e sim aplicar tudo o quanto se estudou e trazemos de bagagem para aumentar a chance de sobrevivência.
Porque ao final o que interessa é sair vivo – do processo cuidam os promotores, os advogados e os juízes – beijar meu filho em meu retorno pra casa quem tem que fazer sou eu e chegar lá vivo é a missão.
Também destaca o artigo a situação de defesa contra ataque de um membro de gangue e que ligar para a polícia e aguardar é esperar que novos bandidos aparecem e colocariam em risco a situação do cidadão que se defendeu.
Claro que sair do local é uma ótima estratégia nesse caso, pois como apontamos acima, o risco não cessou e a permanência aumenta e potencializa essa situação, por exemplo se o embate se deu em uma região conflagrada ou de risco.
Essa e as demais condições e análises de uma Legitima Defesa Armada estaremos pormenorizadamente trabalhando no Livro LDA que segue o Papa Alpha – Porte de Arma para Defesa Pessoal, que lançaremos em breve, já em final revisão.
E pra finalizar, em nenhum momento do texto se buscou orientar a reagir, a portar arma ou a atirar para se defender – a proposta foi esclarecer dúvidas sobre como agir após ter atuado em legítima defesa, sendo clara a ação em defesa pessoal nos limites da legislação.
O que você vai optar por fazer e como seguirá sua trajetória de vida quem decide é ninguém outro que você.
Só não dá para continuar ouvindo que “dê um no peito, um pra cima pra falar que deu tiro de aviso, foge três dias e se apresenta que nem investigação tem” porque de mal conselho já basta quem manda usar kit embuste.
Treinem, sempre e muito, estudem bastante e não se calem ante a propaganda contra o cidadão de bem, por quem nem colocar uma arma na cintura já fez ou sabe o que significa, dispara o like e até a próxima.
[1] To Flee, Or Not? Should You Leave the Scene After a Defensive Shooting? – Personal Defense World