Podemos comparar futebol com confronto armado?
Introdução
Quando se pensa sobre o nome “tático” e suas variações, de maneira intuitiva, somos remetidos às questões relacionadas com o confronto armado, ações policiais ou de guerra. Ao menos é o que vai passar na cabeça de qualquer agente de segurança ou entusiasta da temática, ainda mais ao ler um artigo sobre “mentalidade tática”, que foi escrito por um Policial Militar. Porém, quando se digita “mentalidade tática” nas páginas de busca da internet, uma das primeiras respostas remete ao trabalho do Professor Ricardo Luiz Pace Júnior, profissional de educação física com atuação voltada para a “mentalidade tática” no treinamento de futsal. Isso mesmo, futebol de salão!
Diante disso, você poderia se questionar: mas qual seria a relação entre o conceito de mentalidade tática do futsal, a atividade de segurança pública e confronto ar- mado? É aí que a coisa fica interessante, pois a relação é curiosamente intensa!
Nesse artigo pretendo apenas beliscar o tema, tentando destrinchar o conceito do esporte, sua similaridade com as necessidades da atividade policial e sua aplicabilidade prática no policiamento ostensivo, no confronto armado dentro e fora do serviço.
O conceito do futebol de salão e a mentalidade em uma concepção prática
Segundo a definição do professor Ricardo, Mentalidade Tática é:
“A capacidade que deve possuir o jogador de futsal, para analisar com rapidez as ações do jogo durante uma partida. Desta forma, poderá assumir responsabilidade de realizar gestos téc- nicos tanto quando tem a posse de bola ou não, tenha a sua equipe a posse ou não.”
(JÚNIOR, 2009, p. 02)
A importância desse conceito no futsal, deve-se ao fato de que, por conta das dimensões da quadra serem bem menores do que as de um campo de futebol, o jogo acontece de forma muito mais rápida, o que faz com que os jogadores não tenham muito tempo para pensar, pois eles precisam agir. Dessa forma, devem realizar gestos técnicos que ajudem a atingir o objetivo do time, que é fazer gols e não sofrê-los. Os jogadores precisam entender qual o posicionamento mais eficiente para receber ou passar a bola, num cenário que é extremamente dinâmico, que muda o tempo todo, onde uma interpretação errada pode significar a derrota.
Essa capacidade de compreender o jogo e estar preparado para atuar nele da forma mais eficiente e proativa possível é o que chamamos de “Mentalidade Tática”. Ao analisar esse conceito do esporte, podemos notar a impressionante semelhança com o que é exigido de um operador de segurança pública durante sua atividade.
As ocorrências policiais são como os jogos de futsal, pois se desdobram de forma muito rápida e exigem que o operador possua a capacidade de compreender tudo que está ocorrendo em fração de segundos, adotando uma postura que salvaguarde sua vida, da sua equipe e da sociedade em geral. Essa é a Mentalidade Tática Policial.
Nas discussões sobre o conceito esportivo de Mentalidade Tática (que alguns também chamam de “Leitura de Jogo” ou “Leitura Tática de Jogo”), presentes não apenas no futsal, mas também em diversos esportes, pois é comum observarmos princípios a serem seguidos pelo jogador, com objetivo de ter mais eficiência na partida. No futsal, por exemplo, o professor Ricardo Pace fala em:
1. Fazer sempre o mais fácil (no mundo da atuação policial chamamos isso de simplicidade tática);
- Assegurar o controle da bola;
- Procurar as linhas diagonais de passe.
Esses princípios possibilitam que o jogador tenha um comportamento mais eficiente durante a partida, além de permitir maiores oportunidades para quem possui a melhor “leitura do jogo”.
Porém, esse material não é sobre futsal. Precisamos entender como esse conceito influencia ou deveria influenciar o comportamento no serviço policial, bem como fora dele.
E qual a diferença entre o esporte e a atuação policial?
O grande diferencial da Mentalidade Tática Policial é o risco de morte envolvido em toda e qualquer ação, o que faz com que detalhes não percebidos ou até menosprezados pelas pessoas comuns, tenham grande importância e caráter decisivo no desfecho de ocorrências. O operador de segurança precisa prever comportamentos, posicionar-se de maneira favorável para mitigar riscos, fazer análise legal de suas ações, dominar as técnicas e táticas que irá aplicar, realizar um planejamento mínimo antes de agir, além de possuir a resiliência necessária para transpor os obstáculos que, sem dúvida, irão aparecer no desenrolar de suas ações.
O número de demandas cognitivas é muito grande. Por esse motivo, é fundamental seguir princípios e protocolos de atuação e treinamento adequados à realidade, para reduzir o número de possibilidades de erro. Erro, na atividade policial, geralmente significa a morte do operador, de outras pessoas inocentes ou a liberdade do infrator.
Estamos treinando da forma correta?
No que diz respeito ao treinamento, é possível observar que a estrutura e metodologias aplicadas no ambiente de formação dos operadores de segurança pública, muitas vezes é inadequada ou completamente alienada da realidade operacional vivenciada posteriormente por estes profissionais. Seja por falta de investimento em capacitação ou por falta de pesquisa e desenvolvimento de uma metodologia eficiente de instrução. A verdade é que as instituições, não raramente, capacitam os operadores de forma equivocada, ensinando técnicas muitas vezes inúteis e deixando de ensinar aquelas que o operador utilizaria todos os dias. Outro fator constantemente ignorado é de que muitas escolas de formação constantemente relacionam o desenvolvimento de habilidades com a competência que será demandada após o curso. Desenvolver uma habilidade não basta para ser competente em algo e o surgimento de uma mentalidade tática eficiente demanda a confiança de ser capaz de solucionar um problema real, utilizando as habilidades treinadas em ambiente controlado.
A ciência tem ajudado as forças de segurança do mundo todo a treinar melhor e de forma mais eficiente, ajudando a entender quais são as necessidades do Policial e como melhorar sua performance tática. As discussões sobre questões como a influência da visão de túnel e como ela deve ser considerada no treinamento, ou a respeito do ciclo cognitivo sob estresse e como simular esses fatores estressores, bem como de que forma adquirir o programa motor adequado, e até a maneira de treinar a visão e capacidade de “ler” cenários com maior eficácia nos mostram o quanto a ciência pode ser um poderoso impulso para formas mais eficazes de capacitar. A imagem abaixo é do fruto de um grande esforço nesse sentido, de trazer a ciência para o treinamento e ofertar aos operadores de segurança pública e proprietários legais de arma de fogo uma visão sensata, metodológica e realista do confronto armado.
Destrua mentalidades criadas sob falsas premissas
Graças ao trabalho de Boyd e Darwin (trabalhos distintos, claro) sabemos hoje que uma característica fundamental dos seres vivos que se perpetuam é a capacidade de destruir uma mentalidade com a mesma força e velocidade com a qual ela é formada. Em geral uma mentalidade surge rapidamente, mas resiste a ser destruída. Quando falamos sobre a mentalidade esperada de um policial, precisamos esclarecer que já entramos na profissão com uma série de crenças e pressupostos (outro jeito de chamar a mentalidade) que atribuem valor específico ao mundo. Quem quiser entender e se adaptar mais rapidamente, precisará ser capaz de destruir com urgência a antiga concepção sobre a natureza do homem, da violência principalmente do confronto armado, para só assim aceitar e se preparar para a realidade da atividade.
Dito isso, quero que você leia esse relato de um amigo Policial Militar do Distrito Federal, descrevendo uma ocorrência em seu primeiro dia de trabalho no patrulhamento com viatura (Para mim um dos melhores relatos possíveis dessa destruição para posterior construção de uma mentalidade tática policial):
“Era um sábado e eu dirigia a viatura pelo Itapoã/DF, junto a outro policial do meu curso. Dois novinhos, pouco experientes, mas vibrando e, de uma forma um tanto quanto prepotente, acreditando que seriam capazes de desenrolar qualquer cenário que se apresentasse. Até que, ainda sob a luz do dia, um cidadão nos fez parar e informou que, dobrando a esquina, havia “4 caras encapuzados roubando uma casa e fazendo reféns. Todos armados. Já tinham tentado ontem, mas não conseguiram”. Confesso que, em um primeiro momento, duvidei daquela narrativa. É que o cidadão, muitas vezes, tem um dom para aumentar histórias, quando faz contato com a polícia. Dobramos a esquina. A rua estava calma. Visualizamos um gol vermelho parado de ré na en- trada da garagem de uma casa. Havia um homem na frente do carro, com as mãos nos bol- sos, mas nada de capuz. Fora esta situação, nada chamava atenção. Parei a viatura, no mo- mento em que o homem olhou para nós e demonstrou aquele nervosismo, aquela colada de placas típica. Íamos pedir apoio pelo rádio, mas ele funcionava muito mal naquela área… E nem deu tempo. Desembarcamos e verbalizei para que ele colocasse as mãos na cabeça. Ele correu para dentro da casa. Fui atrás. Ao chegar na entrada da garagem, ouvi os disparos, vi a silhueta do criminoso atrás do carro e uma senhora atrás dele.
− “Esse filho da puta atirou pra cima de mim”? Revidei, mas não como eu gostaria. Atirei no carro. Não tinha ângulo para atirar contra ele, fiquei muito nervoso e, como o cidadão havia relatado, havia mesmo mais gente na casa. Meu parceiro caiu no chão e, por um breve instante, pensei que ele havia sido alvejado. Ele levantou. Estávamos totalmente vendidos no meio daquela rua estreita. A vantagem tática estava com quem quer que estivesse dentro daquela casa. Tentamos nos abrigar em uma chapa de metal que estava na frente da casa ao lado. Era uma chapa de zinco. Não seguraria nada. Vi uma casa com o portão aberto do outro lado da rua. Corremos para lá. E eu atirando no carro. Íamos pedir apoio pelo rádio. Mas o único rádio que tínhamos havia caído do colete do meu parceiro, no meio da rua. Ele fez contato via celular para o Batalhão, enquanto eu atirava no carro. Foi um pedido confuso. No calor do momento, não soubemos informar a quadra com precisão. Se os 4 criminosos relatados resolvessem entrar com tudo no confronto para fugir, a gente estaria em um cenário ruim. Era melhor desencorajar eles atirando. Foi tudo muito rápido, mas, contraditoriamente, durou uma eternidade. Neste meio tempo, desacelerei a cadência dos disparos no carro. Eu só enxergava o carro. E repetia mentalmente que eu não acreditava que aquele filho da puta tinha atirado em mim. Verbalizamos pouco, eu e meu parceiro, naquela situação. Faltavam palavras. Primeiro dia, como pode? Até que duas mãos apareceram levantadas no canto da garagem da casa onde os criminosos estavam e quebraram este ciclo. “Eles estão se rendendo”, pensei. Saíram 2 homens, um idoso e um adolescente. Mandamos que deitassem. Saiu uma senhora. Não consegui pensar direito, mandei que ela deitasse também, mas ela estava nervosa demais para me obedecer. O apoio chegou, guiado pelo som dos disparos. Saímos da casa em que estávamos. Confirmamos que aqueles que saíram eram as vítimas. Iniciou-se um cerco na casa. Mais viaturas chegaram. Entramos. Um buraco imenso no forro da casa, telhas retiradas. Eles haviam fugido pelo telhado. Iniciou-se uma busca nas redondezas, com todos os policiais disponíveis na área, que resultou em 3 criminosos presos e 2 armas de fogo apreendidas. O carro? Nem ligava. Um policial de minha unidade, o primeiro que chegou em apoio, disse que só conseguiu nos localizar pelo som dos disparos. “Porra, foram tantos assim? Que bizarro, nem percebi”. Meu parceiro se aproximou de mim, após a situação acalmar.
− “Ele atirou mesmo”?
− “Porra, você não ouviu? Que bizarro”.
Eu estava gelado, com uma fotossensibilidade imensa. E um cansaço incomum. Bizarro, bizarro. Descobrimos que a casa era um depósito de mídias piratas (havia milhares) e que os criminosos estavam lá para roubarem os lucros da atividade. Para piorar, horas depois, dois dos criminosos fugiram da delegacia, que estava com um contingente muito reduzido à época, o que, de fato, prejudicava a correta execução das inúmeras atribuições daqueles agentes comprometidos – e camaradas – que nela trabalhavam. O que importa é que ambos foram presos por nossas equipes dois dias depois. Mas esta é outra história. O que importa é que sobrevivemos – e inocentes também – a uma experiência que me abriu os olhos para o seguinte fato: o combate não é igual aos filmes e minha percepção sobre ele era totalmente equivocada. E isso me fez buscar conhecimento, através de cursos, treinamentos e estudos. E me considero um profissional muito melhor, graças a essa primeira experiência tão cedo em minha carreira.”
Conclusão
O objetivo desse artigo, tal qual o do relato acima, foi mostrar a realidade do treinamento e atuação policial. Aceitar a realidade e trabalhar em cima dela é crucial para o desenvolvimento de uma mentalidade que te deixe vivo.
Todo esse texto foi apenas para trazer a maior das obviedades: Discutir sobre mentalidade tática policial deve ter alicerce básico em discutir sobre a mente humana e sua forma de interpretar o mundo, bem como de reagir ao que acontece como estratégia de sobrevivência.
Essa foi apenas nossa primeira discussão. Até breve!
obs: grande parte do conteúdo desse artigo foi extraído do livro: ˜Mentalidade Tática Policial & as quatro etapas do treinamento de alto rendimento”, de minha autoria e disponível através do site www.lojafator3.com.br