1. Considerações Iniciais
Excesso é sem dúvidas um assunto bastante polêmico no universo da excludente da Legítima Defesa, justamente pela subjetividade do seu entendimento. Ao ocorrer situações consubstanciadas em ações de legítima defesa, se não houver um cuidado e análise de diversos elementos, o operador que se encontra na ocorrência poderá ser facilmente prejudicado pelo entendimento de que suas ações foram desproporcionais e excessivas. Ocorre que o instituto em comento não é algo tão simples de ser conferido e isso é atribuído a vários fatores, principalmente pela própria dificuldade de se provar e medir a proporcionalidade e intensidade da ação.
Bem verdade que o excesso na legítima defesa está intrinsecamente relacionado ao rompimento da relação de proporcionalidade, requisito importantíssimo para a configuração do instituto. No excesso pressupõe que agente agiu em conformidade com todos os elementos da legítima defesa, porém extrapolou na sua conduta, vindo a avançar no limite de até aonde poderia ir a sua ação de neutralizar a injusta agressão.
“ O agente tem um ponto limite a atingir que caracteriza a ação legítima, rompendo esse ponto ele já entraria no excesso.“
Em 2016, por exemplo, houve um caso bastante intrigante envolvendo uma apresentadora conhecidíssima da televisão brasileira. Na época se instalou uma indignação sem precedentes na sociedade civil brasileira.
O que foi amplamente noticiado foi que a apresentadora Ana Hickmann estava em um hotel e um homem armado entrou no mesmo e abordou o seu cunhado. O marginal o obrigou a levá-lo até o quarto da apresentadora. Dentro do quarto ficaram a apresentadora e o seu cunhado com a sua esposa, assessora de moda da apresentadora, além do marginal.
Naquele momento, o marginal os obrigou a ficarem de costas. O cunhado da apresentadora, portanto, resistiu. O fã, ou seja, o marginal, então, disparou a arma, atingido dois tiros na concunhada da apresentadora, um no ombro e outro na barriga. Com os disparos, o cunhado da apresentadora entrou em luta com o atirador e conseguiu desarmar o meliante, atirando no mesmo logo na sequência.
O cunhado da apresentadora foi denunciado pelo Ministério Público. Após ser noticiado o fato da denúncia, grande parte da sociedade não conseguiu entender como o cunhado da apresentadora pôde ser colocado na condição de réu e, consequentemente, ser acusado de homicídio. Por outro lado, significativa parte da sociedade aplaudiu a sua acusação e endossaram opiniões de que houve claramente um excesso e exagero na ação do cunhado da apresentadora, já outros chegaram inclusive à conclusão que nem excesso houve e sim um crime de execução.
Estabelece o parágrafo único do artigo 23, do código penal, que o agente pode responder pelo excesso, doloso ou culposo, quando agir em alguma situação de excludente de ilicitude. Sendo assim o Ministério Público, amparado nesse dispositivo, pediu a condenação do cunhado da apresentadora.
Segundo a denúncia, o cunhado da apresentadora teria desferido três tiros na nuca do dito fã, situação que, para o acusador público, teria ultrapassado os limites da legítima defesa e atingido o dito excesso punível.
A partir de agora, após abordar esse caso concreto, vamos permear pelos elementares do excesso da legítima defesa, voltando ao caso da apresentadora oportunamente.
2. Entendimento sobre o Excesso
No Parte 1 e 2 do compêndio de artigos sobre o tema Legítima Defesa, publicadas nos meses anteriores, que denominamos “A LEGÍTIMA DEFESA E O EXCESSO À LUZ DAS REAÇÕES NATURAIS DOS SERES HUMANOS”, disponíveis nos links https://infoarmas.com.br/a-legitima-defesa-e-o-excesso-a-luz-das-reacoes-naturais-dos-seres-humanos-parte-1-aspectos-conceituais/ e https://infoarmas.com.br/a-legitima-defesa-e-o-excesso-a-luz-das-reacoes-naturais-dos-seres-humanos-parte-2-aspectos-tecnicos-das-reacoes-armadas/#_ftn1, podemos entender inicialmente sobre o Instituto da Legítima Defesa (LD), seus elementos constitutivos, as espécies de LD e, ainda, correlacionamos tudo aos aspectos técnicos das reações armadas, navegando um pouco pelas condições psicológicas que o homem encontra-se ao combater e, ainda, pelo universo da balística e suas influências na neutralização de uma ameaça. Tudo foi muito importante para chegar a investigação do tema deste capítulo, o excesso de legítima defesa.
Greco [1] explica que quando falamos em excesso, o primeiro raciocínio que devemos ter, uma vez lógico, é que o agente, inicialmente, agia amparado por uma causa de justificação, ultrapassando, contudo, o limite permitido pela lei.
Ocorre que o agente tem um ponto limite a atingir que caracteriza a ação legítima, rompendo esse ponto ele já entraria no excesso. Pois se após ter afastado a agressão injusta, o agente não interromper seus atos e continuar em ação repulsiva, estará entrando na ocorrência do excesso.
Nos precisos esclarecimentos de Greco [2]:
Geralmente, o excesso tem início depois de um marco fundamental, qual seja, o momento em que o agente, com a sua repulsa, fez cessar a agressão que contra ele era praticada. Toda conduta praticada em excesso é ilícita, devendo o agente responder pelos resultados dela advindos
O excesso pode ocorrer também, segundo Mirabete “[…] do uso inadequado do meio, quando o sujeito podia utilizar meio menos vulnerante, ou da falta de moderação na repulsa. Haverá então o excesso culposo ou doloso.” [3]
O Código Penal Brasileiro dispõe no artigo 23, parágrafo único, que o agente responderá pelo excesso doloso ou culposo nas descriminantes (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito). Em todas as justificativas é necessário que o agente não exceda os limites traçados pela lei. Portanto, para que não aja em excesso, o agente deve utilizar-se dos meios necessários que dispõe no momento e com a finalidade de eliminar o perigo, mantendo-se dentro da moderação e coerente entre o ataque e a reação.
Por fim, a conceituação de excesso doloso e culposo irá se remeter à mesma classificação que o Código Penal estabelece para os delitos componentes do Art 18 que caracteriza o crime doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; e culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
2.1 Excesso Doloso
O excesso doloso ocorre quando o agente após neutralizar a agressão injusta, continua atacando no intuito de causar mais lesões ou na intenção de causar a morte do agressor.
No excesso doloso o indivíduo age intencionalmente, pois quer de propósito se exceder na conduta de afastar a agressão injusta, ou seja quer conscientemente causar uma punição no agressor.
O excesso doloso exclui a legítima defesa, porém somente a partir do momento em que o agente pratica a conduta constitutiva do excesso. Portanto, caracterizado o excesso doloso, o agente responde pelo fato como um todo doloso, beneficiando-se apenas com a atenuante do art. 65, III, c, parte final, ou, quando for o caso, com a causa de diminuição do § 1º do art. 121, tudo do Código Penal.
No entanto, o excesso doloso também poderá ocorrer quando o agente, em virtude de erro de proibição, acredita que possa ir além do permitido descriminado na legítima defesa, sendo então a conduta prática derivada de erro sobre os limites de uma causa de justificação. Nesse caso deve ser verificado se o erro poderia ser evitado ou então se transfigura de um erro inevitável.
No erro de proibição o agente pensa que é lícito o que, na verdade, é ilícito. Geralmente aquele que atua em erro de proibição ignora a lei. Há o desconhecimento da ilicitude da conduta.
Melhor esclarecendo, para que o erro de proibição exclua por completo a culpabilidade do agente, não é suficiente apenas a alegação de desconhecimento da lei. É preciso verificar se o erro é vencível ou invencível. O agente só responderá se tinha ou, pelo menos, se poderia ter a consciência da ilicitude do fato.
Se o erro for vencível, ou seja, se o agente poderia ter tido consciência da ilicitude do fato, responderá pelo crime com diminuição da pena de 1/6 a 1/3. Porém, se o erro era invencível, ou seja, não havia como ter consciência da ilicitude do fato, a culpabilidade estará excluída.
Na segunda hipótese do erro doloso, quando o agente acredita que possa ir até o fim, mesmo depois de cessada a agressão contra a sua pessoa, em virtude de um erro sobre os limites de uma causa de justificação, deve ser analisada a partir do artigo 21 do Código Penal: O desconhecimento da lei é inescusável ( indesculpável) . O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena: se evitável, poderá diminuí-la de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço).
2.2 Excesso Culposo
No excesso culposo o agente alcança o resultado de forma acidental. Não é a intenção do agente agir para causar dano além do necessário para se desvencilhar da agressão, porém acaba agindo dessa forma por incidência de três variantes: imprudência, negligência ou imperícia.
O excesso culposo ocorre normalmente quando o agente cometeu a agressão por avaliar mal a situação que o envolvia ou por erro de cálculo.
Na primeira hipótese, o agente ao avaliar mal a situação que está envolvido, acredita que está sendo ou que ainda poderá sofrer a possibilidade de ser agredido e, ao crer nessa possibilidade, continua em ação repulsiva. Nessa seara Greco esclarece sobre, ao discorrer o seguinte exemplo:
Alfredo, campeão de luta livre, começa, injustamente, a agredir Patrocínio. Este último, agindo com animus defendi, querendo fazer cessar a agressão que era praticada contra a sua pessoa saca um revólver e atira em seu agressor que cai ferido gravemente. Patrocínio, ainda supondo que Alfredo daria continuidade ao ataque, mesmo ferido, por avaliar erroneamente a situação de fato em que estava envolvido, efetua o segundo disparo, quando já não se fazia mais necessário. [3]
No exemplo mencionado está bastante claro que o agente agiu por uma situação que jamais poderia acontecer, que por erro de uma situação de fato, sua imaginação o levou a acreditar que fosse possível. Nessa hipótese, como já mencionado, será penalmente possível a aplicação da discriminante putativa. Pois, o agente Patrício agiu em legítima defesa putativa que, determinado pela primeira parte do § 1 º artigo 20 do Código Penal, embora tenha agido com dolo, responderá com as penas correspondentes as de um crime culposo. No entanto se o erro for inevitável haverá a isenção de pena, porém se evitável responderá pelas penas correspondentes ao delito culposo, isto denomina-se culpa imprópria.
A segunda hipótese de excesso culposo, ocorre quando a ação do agente desde o início é desnecessária atuando de forma ininterrupta, uma repulsa desmedida em um único instante, quando na verdade, não havia necessidade da intensidade como atuou, havendo, portanto um erro de cálculo quanta a gravidade do perigo ou de como reagir. Nesta segunda hipótese não há um intervalo de tempo, como ocorre na primeira hipótese.
Em relação às penas, em ambas as hipóteses o entendimento é o mesmo sobre o erro evitável ou inevitável, sendo assim será preciso uma grande e detalhada avaliação para entender o grau de culpa do agente, pois o mesmo em qualquer das hipóteses atua com dolo em sua conduta, mas vistas para efeitos de punição com as penas correspondentes às de um crime culposo.
Por regra o excesso é sempre punível, gerando a responsabilidade do agente de forma culposa ou dolosa. Assim, o artigo 23 do código penal, elenca apenas as duas modalidades de excesso, doloso e culposo, entretanto, segundo a melhor doutrina, existem outras possibilidades de excessos, inclusive a permissão pelo excesso não punível.
2.3 Excesso Intensivo e Extensivo
O excesso intensivo ocorre quando o agente intensifica-se imoderadamente, mesmo quando poderia atuar de forma mais branda.
Se alguém, ao ser atacado por outrem, em razão do nervosismo em que se viu envolvido, espanca o seu ofensor até a morte, pois não conseguia parar de agredi-lo, como o fato ocorreu numa relação de contexto, ou seja, não foi cessada a agressão para, posteriormente, decidir-se por continuar a repulsa, o excesso, aqui, será considerado intensivo. [4]
Se alguém, após ter sido agredido injustamente por outrem, repele essa agressão e, mesmo depois de perceber que o agressor havia acessado o ataque porque a sua defesa fora eficaz, resolve prosseguir com golpes, pelo fato de não mais existir agressão que permita qualquer repulsa, o excesso será denominado de extensivo. [5]
2.4 O Excesso Exculpante
Aqui está uma classificação que é merecedora de uma atenção especial, uma vez que o objetivo deste excesso é exculpar, eliminar a culpabilidade, ou seja, não merece reprovação quem atuar nesse tipo de excesso, pois não poderia ser exigida outra conduta do agente senão aquela realizada, sendo, portanto, o fato típico e ilícito, no entanto não culpável.
Nesse caso o agente está agindo baseado na inexigibilidade de conduta diversa – que se caracteriza quando o autor age de maneira típica e ilícita, mas não merece ser punido, pois naquelas circunstâncias fáticas, dentro do que revela a experiência dos homens, não lhe era exigível um comportamento conforme nosso ordenamento jurídico.
Segundo Bayer [6] no excesso exculpante, o estado psíquico do agente, elemento de caráter subjetivo, faz com que este ultrapasse a fronteira do que lhe é permitido fazer, onde essa violação ocorre além do devido, em virtude da não consciência e não previsão, não se dando conta o agente que está se excedendo, ao contrário, este acredita ainda que a agressão persiste ou que ainda irá ocorrer. Age este com medo, pavor, surpresa. É o chamado estado de confusão mental.
Neste caso entende-se que estamos diante de causa de exclusão de culpabilidade, pois nas circunstâncias em que o agente encontrava-se, não seria possível exigir um comportamento diferente, sendo, portanto, uma situação de inexigibilidade de conduta diversa.
3. CONCLUSÃO
Para que o presente artigo não fique demasiadamente grande , portanto, cansativo, deixaremos para analisar em profundidade os aspectos do Excesso Exculpante no próximo e último artigo do compêndio “A LEGÍTIMA DEFESA E O EXCESSO À LUZ DAS REAÇÕES NATURAIS DOS SERES HUMANOS”. Ainda, fins de contextualizar sobre os excessos de Legítima Defesa, voltaremos ao caso na apresentadora Ana Hickmann e correlacionaremos tudo que estudamos até aqui na busca de um melhor esclarecimento sobre o assunto.
Aguardo vocês no próximo mês.
[1] [2] [4] [5] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 18. ed. Rio de Janeiro: Impetus, v. 1, 2016.
[3] Mirabeti, Julio Fabbrini; Fabbrini, Renato N. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 24. ed. São Paulo: Atlas S.A, v. 1, 2008.
[6] bayer, Diego Augusto. Legítima defesa: a linha tênue entre o excesso doloso e o excesso exculpante. jusbrasil. Disponível em: <https://diegobayer.jusbrasil.com.br/artigos/121943186/legitima-defesa-a-linha-tenue-entre-o-excesso-doloso-e-o-excesso-exculpante>. Acesso em: 31 ago. 2022.