Você já percebeu isso? Durante os treinamentos com armas de fogo é comum após a execução de um exercício de tiro o operador coldrear rapidamente a sua arma, condicionado-o a pensar que após efetuar alguns disparos, o combate está encerrado e não há novas ameaças ou medidas a serem tomadas em decorrência daquele evento.
Cicatrizes de Treinamento! É assim que eu chamo isso nas linhas da ETC. Posso dizer que tal procedimento de recoldrear a sua arma após os disparos irá gerar “cicatrizes de treinamento”, as quais serão replicadas durante um confronto real.
Explica melhor Esperandio!
Sim, vou explicar. Levando para o lado da neurociência, que você já sabe que não tem com o falar de Tiro de Combate sem entender como o cérebro funciona, posso afirmar que o nosso cérebro não sabe diferenciar a Realidade do Treinamento, desta forma tudo que é feito durante o treinamento será espelhado no mundo real. Devemos estar atentos a cada passo e a cada protocolo que treinamos no estande ou em casa, pois o nosso cérebro irá seguir uma sequência programada conforme inserimos os dados em nossa mente. Nossas rotinas no estande tornam-se hábitos durante uma situação de confronto armado.
Certo Esperandio, eu entendi que o cérebro não distingue o real do imaginário, que o que eu treino no estande vou replicar num confronto armado e que isso se chama “cicatrizes de treinamento”. Essas cicratizes irão dificultar a sua performance ou criar protocolos ineficientes quando colocados a prova em um combate.
Perfeito, isso mesmo! Mas agora você deve estar me perguntando…”Então qual é a melhor forma de treinar para não criar essas cicatrizes” ?
Existe uma sequência de ações criada por Lyle Wyatt e Andy Stanford com o objetivo de serem utilizadas durante o contato com o agressor, damos o nome de Protocolo Wyatt. A ideia é manter um rol de opções numa sequência lógica para o combate. Então de uma forma bem resumida é:
- Lutar até neutralizar a ameaça,
- Buscar novas ameaças,
- Manter a arma em condições plenas.
No entanto esta sequência pode ser alterada conforme o evento ou o cenário apresentado.
É imperativo que este protocolo seja treinado durante os exercícios de tiro e cenários simulados, pois o objetivo não reside apenas em manter a mecânica de cada ação, mas de forjar uma mentalidade combativa e levar o seu treinamento para um patamar mais realístico, caso contrário é apenas uma encenação de estande.
A BUSCA E A AVALIAÇÃO PÓS 11 DE SETEMBRO
Após a ameaça ser neutralizada é hora de buscar novas informações no cenário, a lista de prioridades segue uma sequência de acordo com o contexto da situação, porém segue pontos em comuns como: ameaças secundárias, pontos barricados, pontos cegos, equipe, família ou apoio.
Certo, quer que eu explique um pouco da história para entender melhor sobre o novo cenário de combate?
Claro que sim Esperandio!
ENTÃO VAMOS LÁ…
Com a mudança de realidade ocorrida nos Eventos Pós 11 de Setembro no Estados Unidos, a forma de combate convencional mudou para um novo cenário. Agora os confrontos seriam em sua grande totalidade realizados dentro das cidades ou no interior das casas a distâncias curtíssimas e exigindo coordenação dos soldados.
O ambiente de combate a curta distância, na faixa de 25 a zero metros, exige que o operador esteja sempre atento ao cenário em sua volta e entenda que as ameaças podem surgir na próxima porta ou na próxima esquina, assim como do nível do solo ou de andares superiores.
O QUE ISSO SIGNIFICA?
Significa que diante deste cenário a técnica de fatiar ângulos tornou-se preponderante para que o operador conseguisse manter uma vantagem em combate.
Esta técnica consiste em manter os olhos sobre a arma enquanto realiza movimentos de varredura no ambiente, porém o seu plano focal se mantém atento ao ambiente enquanto a arma é apontada para a mesma posição.
Os Royal Marines (Fuzileiros Britânicos) criaram um exercício no qual os soldados após cada sequência de disparos realizam uma varredura por novas ameaças direcionando a arma para a direita e para a esquerda da posição inicial de tiro. Deram o nome para esta técnica de “Shooting and Scanning”, ou “Atire e Escanei”. No entanto esta técnica foi introduzida nos treinamentos dos novos soldados com a finalidade de prepará-los para fatiar ângulos em estruturas ou em cenário que demandasse este procedimento.
Aqui está o mais importante!
Se entendermos a história entenderemos o contexto da técnica!
Agora você já sabe que o “Shooting and Scanning” foi utilizado como exercício de adaptação para as tropas inglesas e não como a técnica mais eficiente para visualizar o cenário em nossa volta. (Aprenda mais aqui)
Esperandio, então qual é a melhor forma de procurar novas ameaças?
A forma mais efetiva de procurar por novas ameaças no ambiente é realizando o giro de cabeça ou a rotação do corpo de maneira a garantir maior amplitude do movimento e melhor campo de visão. Se aplicarmos uma técnica chamada “Shoulder Check” (Check de Ombro) ela nos permitirá verificar o ambiente em nossa volta com uma demanda menor de tempo e movimentos. Basta manter a arma numa posição de pronto emprego e realizar o giro de cabeça por cima do ombro enquanto busca por novas ameaças no cenário.
A PERCEPÇÃO DO NOSSO CÉREBRO
Eu gosto de dados, explicação cientifica, comprovação. Se você também gosta da ciência por trás do treinamento, então continue comigo!
Nosso cérebro possui uma Programação Evolucionária de Sobrevivência que remonta milhares de anos, desta forma os dados coletados no ambiente são processados numa escala de prioridade que pode começar com o valor da ameaça e recebem o foco principal da nossa atenção e percepção.
JÁ OUVIR FALAR DE LUTA OU FUGA?
Enquanto nossos cinco sentidos recebem inputs (informações) do ambiente, numa situação de Luta ou Fuga (resposta instintiva de sobrevivência) onde você opte por lutar com uma arma de fogo, o sentido da visão se sobressai dentre os demais. Afinal de contas você precisa ver aquilo que quer acertar. Desta forma os olhos percebem o ambiente, enquanto o cérebro processa as informações.
Isso mesmo que você entendeu. O SENTIDO DA VISÃO SE SOBRESSAI AOS DEMAIS E É POR ISSO QUE …
Nesta máxima, a qualidade e precisão dos inputs melhoram o processamento que por sua vez melhoram a velocidade e a assertividade das suas ações. A velocidade de processamento visual está relacionada a capacidade de detectar a mudança e o movimento e de conduzir uma busca visual.
Temos um orçamento cognitivo limitado, desta forma o cérebro não pode processar todos os dados que recebe do ambiente externo, por isso somos configurados para ignorar aquilo que não tenha relevância, filtrando as informações importantes e pertinentes
Ótimas explicações Esperandio, mas como saberemos o que o cérebro vai perceber ou ignorar numa situação de combate?
Vou explicar agora!
Somos programados para ignorar o familiar, o inesperado, aquilo que se perde ao contexto ou quando são desagradáveis demais para se imaginar. Chamamos isto de Pontos Cegos Cognitivos, pois nosso cérebro deixa de percebê-los para evitar uma sobrecarga de dados, dando espaço ao que é essencial a nossa sobrevivência. Tudo isso ocorre de maneira rápida, inconsciente e involuntária.
Muitas vezes realizamos esta programação de forma consciente, quando precisamos encontrar algo muito específico ou manter nossa atenção e foco em coisas ou pessoas importantes naquele contexto (ameaça armada é uma delas), chamamos isso de “Busca Seletiva”. Porém quando focamos em algo específico, ignoramos aquilo que não está na nossa lista de prioridades.
Lembrou de alguma situação que passou por isso?
ÓTIMO!
Agora fica fácil de entender por que deixamos de ver ou melhor, de perceber aquilo que é menos essencial ou mesmo informações relevantes, agora temos o que chamamos de “Cegueira por Desatenção”.
Faça um teste e observe todos os que estiverem de camisa azul nas próximas duas horas num local público como um Shopping por exemplo. Seu cérebro irá focar e dar atenção às pessoas que estiverem vestidas de camisa azul, mas irá ignorar todos as demais cores de camisa. Agora troque camisa azul por ameaça armada.
ENTÃO RESUMINDO ESPERANDIO…
- Dos cinco sentidos, a visão é a que se sobressai;
- Os olhos fazem a leitura e o cérebro processa as informações do ambiente;
- A Velocidade de Processamento Visual está relacionada a capacidade detectar mudanças e o movimento e conduzir a busca visual;
- O cérebro processa aquilo que é importante e ignora o que não tem relevância, damos a isso o nome de Pontos Cegos Cognitivos;
- Podemos considerar também como Pontos Cegos Cognitivos quando ignoramos situações que são desagradáveis demais para se imaginar.
EXCELENTE. É isso mesmo! E digo mais…
PODEMOS TRANSFORMAR O CAOS EM VANTAGEM!
Calma, já vou explicar!
Quando você responde a um evento crítico (Luta ou Fuga) o seu corpo recebe uma resposta hormonal e neural desencadeada pelo Sistema Nervoso Simpático que tem a função de sobrevivência. No entanto, nossa evolução nos programou para sermos mais rápidos, mais fortes e mais burros, o efeito de um “galão de adrenalina” em nosso corpo com o aumento dos batimentos cardíacos nos torna suscetíveis ao efeitos da degradação de performance como perda de habilidades motoras complexas, constrição de vasos, oclusão auditiva, estreitamento de percepção visual e outras ilusões perceptivas que o nosso cérebro pode nos pregar
No nosso caso, estamos nos preparando para vencer um confronto armado contra uma ou mais ameaças e treinar nossos olhos e nossa percepção pode ser a diferença entre vencer ou morrer, não pesa tanto até colocarmos sua família nessa equação e lhe darmos a oportunidade de mantê-los vivos.
Vou colocar dois exemplos que eu utilizo nas linhas da ETC para desenvolver nos alunos esse orçamento cognitivo (foco e atenção) naquilo que os leva a vitória:
- Treinamento com alvos cognitivos, fotográficos (ameaça armada)
- Utilização do método force-on-force e simulações de combate nos auxiliam a melhorar nossa resposta sobre o estresse nos tornando mais adaptáveis e assertivos na nossa tomada de decisão e percepção do ambiente.
Lembre-se que a maneira como você prioriza suas informações irá afetar suas ações e sua vantagem em combate ou numa situação de sobrevivência. Treinamento mental não demanda custo ou meios, apenas disciplina e consciência a ponto de torná-lo um hábito no plano inconsciente.
Seu cérebro é treinável e levá-lo ao estande para encenar ações mecânicas ao invés de prepará-lo para um confronto armado faz com que você não aproveite todos os recursos do treinamento, perdendo tempo e dinheiro. Trate o alvo como uma ameaça, o estande como a sua realidade operativa e lembre-se que cada acerto conta!
DEPOIS DESSA CONVERSA VOCÊ PODE ME RESPONDER…
Você trata o seu treino como uma encenação ou prefere treinar baseado na realidade?